O Estado de S. Paulo
Resultaram de seu empenho em arguir a partir da perspectiva do Brasil, que não era e não é uma grande potência, os méritos da reputação e da credibilidade nacional
Rui é um paradigma de advogado que soube
valer-se do Direito como instrumento estratégico da sua ação política. Foi o
que o singularizou no cenário nacional, mas é também a relevante marca de sua
atuação internacional. Dela advém o seu legado para a construção do capital
diplomático do Brasil e a contribuição para pioneiramente afirmar o lugar do
nosso país no mundo.
A Conferência de Paz de Haia de 1907 foi o
primeiro grande ensaio da diplomacia multilateral do século 20, pela
abrangência dos 44 Estados soberanos da época que dela participaram. Foi também
a primeira expressão da “diplomacia aberta”, sensível às aspirações pacifistas
da opinião pública internacional da época.
Rui foi o chefe da delegação brasileira e
atuou em estreita coordenação com o chanceler Rio Branco. Tinha todas as
qualidades para o novo da diplomacia parlamentar do multilateralismo: o pleno
domínio dos assuntos da pauta, a vocação de infatigável trabalhador, a capacidade
de exprimir-se – inclusive de improviso e com perfeição – em francês, a língua
oficial da conferência. A isso se conjugou a combatividade, que sempre o
caracterizou, como advogado, político e parlamentar.
Rui em Haia contestou a igualdade baseada na força e sustentou a igualdade dos Estados lastreada no Direito. Essa contestação colocou em questão o exclusivismo até então preponderante das grandes potências na ordem mundial. Sua posição representou a primeira formulação do Brasil em prol da democratização do sistema internacional. Abriu espaço para respaldar inovadora perspectiva da nossa política externa: a pauta diplomática do País não se circunscreve a questões específicas; transita pelos seus “interesses gerais” na dinâmica do funcionamento da ordem mundial.
Em Haia, Rui valeu-se do Direito como
instrumento de sua ação. Tinha muita consciência da interação política/Direito.
“Não há nada mais eminentemente político do que a soberania.” A diplomacia,
dizia, “outra coisa não é que a política (...) sob a mais elegante de suas
formas (...)”.
Traçou neste contexto para o Brasil uma
política do Direito Internacional. Esta retém plena atualidade na sintonia com
os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil.
Em Haia, encontrou o tom certo de um estilo diplomático para afirmar com
firmeza e sobriedade a posição independente do País, cuja especificidade era
distinta dos que imperavam na “majestade de sua grandeza” e dos que se encolhiam
“no receio de sua pequenez”.
Rui fez uma observação que antecipou o tema
da credibilidade internacional e do soft power: “Hoje, com efeito, mais do que
nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais
internacional. Mais do que nunca em nossos dias os povos subsistem de sua
reputação no exterior”.
Outra ação diplomática de Rui foi em Buenos
Aires, onde representou o Brasil no centenário da independência da Argentina.
Ali, destacou a relevância do potencial de cooperação entre Argentina e Brasil
na “ideia a realizar” de uma vasta construção política, econômica e jurídica.
É, assim, um patrono da parceria que antecipou a atualidade de um dos temas
fortes da agenda diplomática de nosso país.
Em conferência na Faculdade de Direito de
Buenos Aires, analisou o impacto no Direito da escalada da violência que estava
caracterizando a 1.ª Guerra. Observou que, dada a “interdependência em que as
nações mais remotas vivem uma das outras, a guerra não pode isolar-se nos
Estados entre os quais se abre o conflito”. Seus estragos e misérias repercutem
sobre a fortuna dos povos mais distantes. Antecipou, assim, o tema da
indivisibilidade da paz, cuja atualidade a guerra da Ucrânia realça.
Rui extraiu de sua avaliação da guerra um
novo papel para a neutralidade: “A imparcialidade na justiça, a solidariedade
no Direito, a comunhão na manutenência das leis escritas pela comunhão: eis a
nova neutralidade”.
E mais: “Entre os que quebram a lei e os
que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer
impassibilidade; quer dizer imparcialidade, e não há imparcialidade entre o
Direito e a injustiça. Quando entre ele e ela existem normas escritas, que os
definem e diferenciam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a
neutralidade: é praticá-la”. Foi nesta moldura jurídica que o Brasil se
incorporou aos aliados em 1917. Da lição de Rui tenho me valido para indicar
qual deve ser a posição do Brasil na guerra da Ucrânia.
Rui internacionalista voltou-se para a
afirmação e a legitimação do lugar do Brasil no mundo. Resultaram de seu
empenho em arguir a partir da perspectiva do Brasil, que não era e não é uma
grande potência, os méritos da reputação e da credibilidade nacional e, ao
mesmo tempo, a validade mais abrangente da domesticação pelo Direito da Força e
do Poder, assim como o do benefício da juridicidade nas relações
internacionais. Valeu-se neste empenho do Direito com ideias próprias, fruto da
transformação reflexiva da abrangência dos seus conhecimentos jurídicos na
condução diplomática.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992; 2001-2002)
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