Folha de S. Paulo
Governo de frente ampla não vai satisfazer
inteiramente as várias visões
Ao menos entre os formadores de opinião,
parece haver muitos centristas decepcionados com Lula. Mesmo que
apoiem a desbolsonarização e boa parte da agenda de Fernando
Haddad, os centristas parecem ter dificuldade em abraçar o governo Lula
como "seu".
Em alguma medida, isso era inevitável.
Trata-se de um governo de frente ampla, que não vai satisfazer inteiramente
nenhuma das várias visões ideológicas que o compõem. Mas a esquerda, ao menos,
tem o presidente e a palavra final nos impasses.
Para os centristas, resta a aplicação de algumas de suas ideias favoritas, como a reforma tributária, e a reconstrução das coisas que Bolsonaro destruiu.
Parece pouco para justificar uma adesão
completa que, no cálculo de alguns centristas, poderia dissolver o campo
social-liberal na órbita do petismo. Afinal, muita gente que votou em Lula só
para derrotar Bolsonaro em 2022 quer uma alternativa mais centrista em 2026.
Algumas das críticas do campo, digamos,
pós-tucano fazem pouco sentido. Por exemplo, Lula retirou
diversas empresas do programa de privatização. O PT sempre foi contra
privatizações, embora aceite as parcerias público-privadas. Um governo do PT
que desse continuidade às privatizações não estaria se aproximando do centro,
estaria aplicando o programa tucano em sua inteireza. Essa não é uma reivindicação
razoável.
Outras críticas são mais bem embasadas. O
centro está certo em criticar a complacência com os regimes
autoritários de esquerda. Antes de alguém dizer que não devemos nos meter
nos problemas de nicaraguenses e venezuelanos, lembro que ninguém reclamou
quando todas as grandes democracias do mundo se opuseram ao golpe
de Bolsonaro.
O centro não gosta da retórica de esquerda
do governo sobre economia, incluída aí a briga
de Lula com Roberto Campos Neto. Nada disso teve muita consequência prática
até agora: a retórica parece ser uma tentativa de manter a identidade de
esquerda do governo. Afinal, a esquerda também tem medo de se dissolver na
frente ampla. Mas é inteiramente compreensível que, se o governo marca assim
sua identidade, o centro se sinta excluído. Identidades importam.
No que se refere à regra
fiscal, acho que os críticos estão errados. Não é que suas contas, que
apontam dificuldades para atingir os objetivos que o governo fixou para si
mesmo sem aumento de arrecadação, estejam erradas: é que não é fácil achar uma
área do governo em que grandes cortes de gastos sejam possíveis.
Não imagino como qualquer partido que
tivesse vencido em 2022 pudesse agora propor um corte de gastos muito grande.
Vale para Tebet, para Ciro, e só não vale para o maluco do partido Novo porque,
se tivesse vencido a eleição, o Novo pediria desculpas pelo mal-entendido e
entregaria a faixa presidencial de volta para o Jair.
A relação de Lula com o centro ainda está em
construção e deve ter momentos de mais proximidade, como o debate da
reforma tributária. A essa altura, o leitor já deve saber que defendo uma
aliança estável entre a esquerda e ao menos parte do que chamamos de
"centro".
Mas, se preferirem se distanciar conforme 2026 se aproxime —o que também é legítimo—, Lula e o centro têm obrigação de organizar esse processo sem prejudicar a reconstrução pós-Bolsonaro ou a aprovação do programa da frente ampla.
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