quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Cristiano Romero - A nova onda

- Valor Econômico

Enfrentamento da pandemia agora será muito mais difícil

A segunda onda da pandemia no Brasil já é uma realidade. Em São Paulo, segundo revelou a esta coluna o secretário de Fazenda do governo estadual, Henrique Meirelles, o número de internações nas redes hospitalares pública e privada em São Paulo cresceu 18% neste mês. Isso já caracteriza uma retomada forte do contágio da população pelo novo coronavírus. Aparentemente, a faixa da população mais afetada tem sido as classes A e B, mas não surpreenderá ninguém se, em breve, as estatísticas mostrarem o aparecimento massivo de casos de covid-19 também entre as camadas menos favorecidas da população.

O que é ruim para os Estados Unidos, onde a segunda onda da pandemia tem feito a nação mais rica do planeta bater recordes seguidos de novos casos por dia e mortes, não deveria sê-lo para o Brasil, o vice-campeão no desonroso torneio de quem dá mais vexame nesta crise sanitária. Meirelles afiança que São Paulo adotou os mais rigorosos protocolos de segurança do país, antes de autorizar o relaxamento do isolamento social, especialmente, para as empresas interessadas em voltar o mais rapidamente possível às atividades normais, o que inclui o trabalho presencial.

A nova onda, pelo menos em São Paulo, estaria sendo provocada pelo comportamento das pessoas fora do trabalho, ou seja, na vida privada. De fato, depois de conviver _ e respeitar, em sua maioria _ as restrições impostas pelo isolamento social, paulistanos voltaram às ruas para celebrar a vida. O motivo é justificável, uma vez que o novo coronavírus tem se mostrado muito mais perigoso do que se dizia no início da pandemia e infectar-se ou não é jogar na loteria, mas o fato é que aglomerações, em locais abertos e fechados, são vistas em todos os lugares e não apenas nos bairros boêmios da capital paulista.

O resultado será trágico tanto em número de perdas de vidas quanto em seus impactos na economia brasileira, que passa por situação muito delicada, o que significa que o espaço para minorar os efeitos econômicos de uma nova onda da crise sanitária é diminuto. A pandemia chegou ao país no momento em que a situação das contas públicas começava a melhorar, mas ainda estava muito longe de dobrar o Cabo da Boa Esperança.

Operando com déficits primários (receitas menos despesas, excluído o gasto com juros da dívida pública) desde 2014, o setor público consolidado (União, Estados e municípios) obrigou o Tesouro Nacional a ir ao mercado endividar-se, via emissão de títulos públicos, para poder pagar as contas. Quando gerava superávits no conceito primário, o setor público usava os recursos para honrar os juros da dívida e, se possível, reduzir seu estoque.

O controle da evolução da dívida não é uma abstração. É um expediente que, levado a sério, melhora com o tempo a vida de todos os brasileiros. Senão, vejamos: quanto menor é a dívida de um governo, menor é sua despesa com os juros dessa dívidas e menor também é o seu custo de rolagem (ver tabela). Isso faz com que sobre mais dinheiro no orçamento para o Estado usar no que realmente interessa, numa democracia cujo regime econômico é o livre-mercado: igualar oportunidades por meio de políticas afirmativas que procurem compensar as distorções sociais provocadas pelo racismo, da oferta de ensino fundamental público de qualidade e de saúde universal.

O Brasil quebrou em 1982, nos anos seguintes centralizou o câmbio, aplicou calotes no pagamento das dívidas externa e interna, tornando-se um pária no mercado de crédito internacional. Só recebia dinheiro de instituições multilaterais de crédito e olhe lá. Sucessivos governos depois, sendo que cada um deu sua contribuição para melhorar a situação fiscal, obteve, em 2008, o grau de investimento (o equivalente ao selo de bom pagador) das agências de classificação de risco.

Antes de obter o grau de investimento em maio de 2008, registre-se, o país concluiu a renegociação da dívida externa durante o governo Itamar Franco (1992-1994), promoveu também a federalização das dívidas dos Estados em 1997 na gestão Fernando Henrique Cardoso _ uma medida crucial para a consolidação das contas do setor público e, por que não dizer, para o fechamento de uma das principais fontes inflacionárias da economia brasileira _ e, no governo Lula, antecipou a quitação da dívida do país com o Fundo Monetário Internacional.

Aquele momento teve uma carga simbólica, embora muitos não tenham prestado atenção, até porque, justiça seja feita, o tsunami da crise mundial deflagrada pouco menos de um ano antes nos Estados Unidos já se avistava no horizonte. Mas o fato é que foi justamente a disciplina fiscal dos anos anteriores, consagrada no grau de investimento obtido em maio de 2008, que deu ao Brasil as condições de enfrentar bem aquela que é considerada a maior crise da história do capitalismo. O país sofreu uma recessão técnica (dois trimestres consecutivos de PIB negativo) e, por causa do espaço para adotar estímulos fiscais, saiu da crise rapidamente e, no ano seguinte, expandiu-se à taxa de 7,5%, a mais alta em 24 anos.

Tudo isso virou pó em apenas sete anos. De 2008 a 2015, o gasto corrente da União cresceu 50% acima da variação da inflação no período, enquanto as receitas avançaram 17%. O descompasso provocou a explosão da dívida. Desde então, as contas não saíram mais do vermelho. Com a pandemia e a justificável necessidade de o governo conceder estímulos fiscais para ajudar pelo menos uma parte das empresas afetadas pela crise e dar meios de sobrevivência a um universo de 67 milhões de brasileuiros em situação vulnerável, a dívida chegou, em setembro, ao equivalente a 90% do PIB.

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