Brutal
e renitente. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais
absoluto descaso
Daqui
dos EUA de onde escrevo, a bruma da estupidez, do
negacionismo, da incompetência já começou a se dissipar. Sim, Trump ainda
é presidente, mas ele e seus asseclas não dominam mais as páginas dos jornais.
De um lado, isso acontece porque Trump, apesar de sua frívola judicialização
eleitoral, já desistiu de presidir o país dois meses antes da posse de Joe Biden.
De outro porque o presidente eleito tem ocupado os espaços com anúncios sobre
quem vai compor o seu governo, quais serão as medidas prioritárias, o que fará
para combater a terceira e a mais terrível onda da pandemia, e como pretende
resguardar a economia. No Brasil,
ao contrário do que ocorre ao Norte,
a estupidez brutal corre sem rédeas.
Que
a estupidez brutal impere não é uma surpresa. Ninguém espera que esse governo
que está aí aprenda o que quer que seja, até porque sua incapacidade já se
revelou tamanha que todas as máscaras caíram. As eleições municipais deram
sinais – ainda tênues, é verdade – de que a população pode estar começando a se
cansar das gritarias, dos absurdos, dos desditos.
As pessoas querem políticas públicas, clamam por uma agenda, uma estratégia, um plano, qualquer coisa, enfim, que permita um vislumbre dos rumos do País e da vida de cada um quando 2021 chegar. E 2021 é o ano em que o Brasil estará lidando com desafios simultâneos: o de uma campanha eleitoral precoce para 2022 e o de uma segunda onda da pandemia. A segunda onda da pandemia é tão certa quanto a existência do vírus que a provoca. Ela já está evidente em vários números: o de leitos ocupados nos hospitais, o de novos casos, o de óbitos. Mesmo assim, há quem a negue.
Claro
que há quem a negue e é claro, também, que os negacionistas não poderiam estar
em outro lugar senão dentro do Ministério da Economia. Há um quê de março no ar. Lembram-se
de março? Mais especificamente, do dia 16 de março? Foi há oito meses. Nesse
dia, quando a pandemia já estava presente no Brasil, o ministro da Economia
veio a público dizer que a economia cresceria mais de 2,5% em 2020. Perto da
mesma data, Paulo Guedes também disse que enxotaria o vírus do País
jogando sobre o RNA encapsulado uns R$ 5 bilhões. Não se deu conta de que o RNA
encapsulado não reage nem às notas, nem às palavras que profere. A única coisa
da qual ele precisa é de uma célula hospedeira para parasitar, replicar e se
proliferar. Dito e feito, a primeira onda estourou bem na cara do ministro. Com
volúpia.
Passada
essa experiência, era, se não razoável, justificado imaginar que o Ministério
da Economia não iria deixar-se pegar novamente no contrapé, sobretudo porque o
vírus nunca deixou o País. Mas as oportunidades de engolir as ondas sucessivas
de um RNA encapsulado e obstinado não podem ser desperdiçadas.
Em
pleno alvorecer da segunda onda, um dos secretários de Guedes veio a público
dizer que não há onda alguma e que os Estados brasileiros estão muito bem,
obrigado, porque muitos já obtiveram a imunidade de rebanho. Lembram-se dela?
Lembram-se de como teve gente insistindo que era esse o caminho, o modelo
da Suécia?
“Deixem a infecção natural acontecer, que logo, logo estará todo mundo imune!”,
bradou a estupidez brutal.
É
curioso porque a Suécia acaba de abandonar o modelo sueco por causa da segunda
onda e acaba de abandoná-lo devido à segunda onda porque já está comprovado,
inclusive na Suécia, que imunidade de rebanho é conceito inaplicável a uma
situação de infecção natural. Como já escrevi neste espaço, o termo usado por
epidemiologistas se refere àquelas situações em que existe uma vacina para uma
doença infecciosa com eficácia comprovada.
Por
exemplo, se a eficácia das vacinas genéticas da Pfizer e
da Moderna forem comprovadas, quando começarem a ser distribuídas e
as campanhas de imunização estiverem em andamento, seremos capazes de dizer
algo sobre imunidade de rebanho. Mas não agora. E certamente não será pelo
secretário de Guedes, que já revelou não entender nem de pandemia, nem de
economia. Trata-se do mesmo secretário que inventou conceitos inexistentes na
disciplina, como PIB privado. Melhor nem perguntar o que é.
Portanto,
a estupidez brutal. Brutal e renitente, como o RNA encapsulado. O melhor a
fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
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