quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Aylê-Salassié F. Quintão* - O Governo está à procura de quem vai pagar a conta

Circulava esta semana, pelo WhatsUpp, um vídeo do pessoal da escola de samba da Portela (Rio) ensaiando para o carnaval. Será?!... Passadas as eleições municipais, entra-se no período de festas de fim de ano. Chega dezembro e, com ele, o Natal. Depois a virada para o ano novo e, em seguida, vem o carnaval.

Teria sido nessa passagem festiva do 2019 para o 2020 que o Covid se espalhou, contaminando cidadãos distraídos pela alegria nas   praças, nas ruas, em clubes, nos estádios e até em residências particulares. Gente chegando e saindo. Resultado, no Brasil: dos mais de 5,8 milhões diagnosticados, 160 mil morreram. Com o isolamento, 5 milhões de empregos desapareceram. O Produto Interno Bruto caiu 9,7 %, e o endividamento público aproxima-se de 100% desse mesmo PIB. Os investimentos despencaram em 73%, e a Lei do Orçamento de 2021 encontra-se presa no Congresso. Anuncia-se para abril sua aprovação. Há um vácuo aí nesse meio.

A pandemia acelerou o uso de tecnologias substitutivas do trabalho convencional e dos processos produtivos. O número de empresas nas áreas tecnológicas ganhou velocidade a ponto de o governo acreditar que, em 2021, o PIB vai reverter a atual tendência de queda. Registros da Confederação Nacional do Comércio indicam, entretanto, que nos últimos 12 meses foram fechadas próximo de 12 milhões de vagas de trabalho. No mundo, projeta-se para os próximos cinco anos a perda de 85 milhões de empregos, substituídos por essas inteligências artificiais.  Por aqui, o número de beneficiários do auxílio emergencial em alguns estados brasileiros já é maior do que o de empregados com carteira assinada.

O mercado de trabalho formal no Brasil representa pouco mais de 50 milhões de empregos. O Banco Central constata que 68% das grandes e médias empresas aceleraram a automação dos processos e tarefas, mesmo sabendo que somente 36,9% dos trabalhadores tem habilidades digitais e apenas 16,5% tem educação avançada. O empreendedorismo informal, de subsistência, cresceu de fato, mas não o suficiente.

A saída desse cenário vai ser muito difícil. Daí a importância do auxílio emergencial.  Mas, é complicado. O governo vem tentando reduzir os valores.  Passou da ajuda individual de R$ 600,00 para R$ 400,00, depois para R$ 200,00. A seguir, o Congresso rejeitou a proposta alternativa de R$ 300, e a aumentou o auxílio para R$ 500. A ajuda do Governo, com a instituição temporária do tal de coronavoucher, não apenas tirou milhões da pobreza absoluta como alimentou uma inibida dinâmica comercial, sobretudo, nas áreas mais pobres do Nordeste.

Ninguém se lembrou do alerta de Luiz Gonzaga: “Uma esmola para o homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”.

A situação não é tão simplória assim como dizia o rei do baião. Existe, de fato e historicamente, uma vulnerabilidade tolerada ou mal assistida. Josué de Castro chamou-a de “geopolítica da fome”.  No Brasil, convive-se com ela, ignorando-a. Milhões não tem nenhuma renda. A ajuda criada no governo Fernando Henrique e ampliada pelo governo Lula, encostou Bolsonaro na parede, ao ter agravados, pela pandemia, os índices de pobreza no País.  Mas, tem prazo no Orçamento para acabar. O caso é que por estas bandas, o temporário torna-se sempre permanente. Tirar a ajuda, que chega a representar 40 % do PIB em alguns municípios e 80 da renda familiar no interior do Nordeste, poderá fazer milhões de brasileiros retornar ao estado de carência anterior à pandemia.

A questão é se existe na política fiscal elasticidade para tanto. Não faltaram, nessas eleições defensores do rompimento com o teto dos gastos públicos. Estudos da Universidade Federal de Pernambuco demonstram que o custo total do auxílio emergencial deve chegar a R$ 260 bilhões até o final de 2020. O segredo está em descobrir quem vai pagar a conta. O governo está de olho nos segmentos produtivos e financeiros. A euforia das festas de fim de ano cede aos poucos à preocupação do que poderá ocorrer em seguida. Efetivamente, só em abril se saberá do rombo nas contas públicas.

Para o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, teoricamente, a saída da crise tende a ser mais inclusiva, com governos de todo o mundo reforçando suas políticas sociais. A formulação ampara-se em diálogos com a sociedade. Mas o que se vê por aqui é a ressurreição da voracidade especulativa sobre os preços, aproveitando-se desse cenário angustiante para o cidadão, frágil para o Governo e até desonroso para o País.

Não há samba que resista, nem mesmo o da grande Portela. 

*Aylê-Salassié F. Quintão, jornalista e professor

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