Violência,
boçalidade e patrimonialismo têm um passado vistoso. Terão futuro promissor?
O
saldo da primeira metade da Presidência de Jair Bolsonaro é muito ruim. Mas
pior do que os resultados é o espírito que preside à gestão do governo em seu
conjunto. A sua marca é o ânimo destrutivo.
Nada
é mais simbólico desse fato do que a genuína paixão do presidente pelas armas.
Bolsonaro banaliza a vida (“a morte é o destino de todos nós”), dá de ombros
para as vítimas da covid-19 (“eu não sou coveiro”) e duvida dos benefícios da
vacina (“se virar jacaré, não vem reclamar”), mas não esconde seu entusiasmo
com o grande aumento do número de armas nas mãos da população civil, objetivo
que vem perseguindo desde o início de seu mandato. Segundo reportagem do
jornal O Globo publicada em 31 de janeiro, já são mais de 1 milhão de
armas, um aumento de 65% em comparação com 2018.
A paixão pelas armas é correspondida pelo desprezo à cultura, outro traço de Bolsonaro, visível nas escolhas feitas por ele para essa área em seu governo. O elo que une a paixão pelas armas e o desprezo pela cultura é a intolerância, pois a cultura reclama pluralidade e valorização da diferença. “Quando ouço falar em cultura, puxo o meu revólver”, diz um personagem da peça Schlageter, do dramaturgo e poeta nazista Hanns Johst, escrita em 1933, logo após a chegada de Hitler ao poder. Bolsonaro não é nazista, mas compartilha com o personagem a mesma ojeriza à transgressão criativa, que é própria da criação cultural.
O
uso do polegar e do indicador para simular uma arma é a marca registrada do
presidente. Do gesto derivam dois discursos, que não são exatamente iguais, mas
convergem no enaltecimento de virtudes viris. Um deles apela ao instinto de
autodefesa do cidadão amedrontado: defenda-se você mesmo, pois o Estado não é
capaz de fazê-lo (por suposta culpa da “turma dos direitos humanos”, que
amarraria as mãos da polícia). O outro aponta para o uso da violência contra
adversários políticos. No início deste mês ele mais uma vez voltou a bater
nessa tecla ao anunciar novos decretos para facilitar a compra de armas: “Eu
não tenho medo do povo armado, me sinto muito bem ao lado de um povo armado,
isso evita que o governante se torne um ditador”.
O
alvo real da suposta preocupação democrática do presidente não é, obviamente,
ele próprio, mas os seus adversários. Não há como esquecer a reunião ministerial
de 22 de abril, em que, alterado, disse que “um povo armado” não acataria as
medidas de restrição ao comércio adotadas por prefeitos e governadores.
A
distopia bolsonarista projeta na tela do imaginário nacional uma espécie de
faroeste caboclo, protagonizado por homens rudes, incultos e indomáveis, um
mundo onde a saliva cedeu definitivamente lugar à pólvora e no qual manda quem
tem a maior pistola.
A
referência do presidente não é Adam Smith e A Riqueza das Nações. Não é a
mão invisível do mercado que faz Bolsonaro sonhar à noite e despertar com
energia na manhã seguinte para desincumbir-se do seu ofício do presidente. Uma
economia de mercado requer uma rede complexa de instituições que regule,
contenha, sem sufocar, o espírito animal dos empreendedores. Supõe regras
estáveis e agentes estatais “neutros” com capacidade jurídica e operacional
para fazê-las valer. Exige também o reconhecimento da ciência como parâmetro
fundamental da ação reguladora do Estado, a começar pelas questões elementares
do que é ou não nocivo à saúde humana. Exige ainda, como ensina Smith na Teoria
dos Sentimentos Morais, uma ética da solidariedade, baseada na empatia.
Nada disso é compatível com a distopia do “povo armado” e do “negacionismo
científico”. Só se for para um liberalismo de fancaria, mero véu para encobrir
interesses mesquinhos e grandes preconceitos.
A
distopia bolsonarista é também inconciliável com a ordem e o progresso, lema de
inspiração positivista inscrito em nossa bandeira com o advento da República e
no espírito das Forças Armadas desde então. Não pode haver ordem sem monopólio
estatal da violência exercido por forças armadas e policiais regidas pelos
princípios da hierarquia e da disciplina e, no Estado Democrático de Direito,
submetidas ao império de direitos e garantias individuais. E não pode haver
progresso sem reconhecimento da importância da ciência para o desenvolvimento
econômico e social. O que já era uma verdade inquestionável no século 19,
quando o positivismo desembarcou no Brasil e fez escola entre os militares, é
hoje ainda mais verdadeiro.
A
distopia bolsonarista não é inconciliável, porém, com a realidade de um Estado
patrimonialista, tomado pelos interesses de corporações e clientelas políticas
e gerenciado por profissionais da intermediação política cujo principal
propósito é maximizar o poder e a renda que a intermediação lhes permite
extrair. O impulso destrutivo do bolsonarismo e o oportunismo do Centrão podem
se acomodar mutuamente, à custa do que resta de republicano no Estado brasileiro.
A violência, a boçalidade e o patrimonialismo têm um passado vistoso no país. Terão um futuro promissor?
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário