Decisão
do Supremo protege o acesso das futuras gerações à história
Não
temos direito a tudo que queremos. É o preço de vivermos em sociedade. O fato de
termos um interesse, ainda que legítimo, de esquecer algo, ou desejar “apagar”
uma informação sobre nosso passado, não significa que tenhamos o direito de
fazê-lo, exceto se essa informação for ilegal ou abusiva.
Foi isso que
o Supremo Tribunal Federal decidiu nesta semana. E não poderia ter
sido diferente, uma vez que a Constituição não prevê um direito ao esquecimento
ou a algo que lhe dê sustentação. O que nosso sistema constitucional reconhece,
de forma muito robusta, é uma proteção
preferencial ao direito à informação e à liberdade de expressão, em
face da centralidade que esses direitos têm para a própria democracia.
Acolher o direito ao esquecimento seria um “desaforo” à jurisprudência de proteção à liberdade de expressão e ao direito à informação que vem sendo consolidada pelo Supremo a partir dos julgamentos da Lei de Imprensa e das biografias não autorizadas. Neste último caso o Supremo reconheceu —de forma unânime— a prevalência do direito à informação sobre a vontade subjetiva do biografado. Como salientou a ministra Cármen Lúcia, permitir que um indivíduo impeça a circulação de uma informação conferiria a ele a prerrogativa de “controlar o outro”; de suprimir sua autonomia.
Mesmo
em sua malfadada decisão sobre a Lei de Anistia, o Supremo deixou claro que nem
o perdão legal pode usurpar da sociedade o direito de investigar a sua história
e buscar a verdade. Incorporar o pretenso direito ao esquecimento, tal como
proposto no caso Aída Curi, colocaria em risco o direito das futuras gerações
não apenas de acessar a sua própria história, mas também de dispor de meios
essenciais para exercer a cidadania. Só poderemos bradar “nunca mais”, se as
atrocidades do passado jamais puderem ser suprimidas ou esquecidas. Não há
espaço para acomodação nessa questão.
Como salientou o ministro Luiz Fux, não se pode permitir a pretensão de “reescrever o passado nem obstaculizar o acesso à memória”.
Isso não significa que a liberdade de expressão seja um direito absoluto. Em situações excepcionais, estabelecidas em lei, essa liberdade pode ser contida. Mas, para isso, é fundamental demonstrar a existência de abuso, de ilegalidade, ou mesmo de falta de veracidade (em determinadas circunstâncias).
Reconhecer o direito ao esquecimento —dissociado de fatos ou informações ilegais e abusivas—, isso sim, seria conferir caráter absoluto a um interesse individual, que nem sequer direito é, em detrimento de um direito fundamental preferencial, definido pela Constituição como cláusula pétrea. Mais do que isso, seria transferir a agentes privados o poder de censurar e controlar o acesso de todos à informação.
Importa dizer que o tribunal não afastou as hipóteses de “esquecimento
programado” ou correção de “dados incompletos, inexatos ou desatualizados”,
previstas na Lei Geral de Proteção de Dados. Nem impediu que, em casos
concretos, se lute contra as fake news.
Num
momento em que profissionais e órgãos da imprensa têm sido objeto de ataques
sistemáticos por parte do governo (e seus apoiadores), e em que diversas
instâncias do Judiciário têm servido como verdadeiros agentes de censura e
restrição à liberdade de expressão e ao direito à informação, a decisão do
Supremo não deve ser tomada como trivial.
Em
benefício do direito à informação da leitora e do leitor, informo que
representei o Instituto Palavra Aberta neste julgamento.
*Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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