quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Daniel Rittner - A era dos protestos: gigantes acordando?

Valor Econômico

Estudo sustenta que mundo vive agitação semelhante a 1968

O mundo está indo cada vez mais para as ruas. Do Black Lives Matter aos supremacistas de Charlottesville, das marchas pela liberdade de expressão pós-ataque contra o Charlie Hebdo aos coletes amarelos na França, da Primavera Árabe à histórica greve de 250 milhões de trabalhadores na Índia, das manifestações pela queda de Dilma Rousseff à explosão social no Chile. A quantidade de grandes protestos cresceu substancialmente nos últimos 15 anos, em todas as regiões do planeta, conforme estudo recém-publicado por quatro pesquisadores do centro de estudos alemão FES e da Initiative for Policy Dialogue, uma organização baseada na Universidade Columbia.

Vamos aos números: houve 576 manifestações de grande porte no período 2006-2010, que aumentaram para 1.081 nos anos 2011-2015 e depois chegaram a 1.152 no quinquênio 2016-2020. No ano passado, apesar de restrições da pandemia, ocorreram mais protestos do que em qualquer outro da última década e meia.

Pode até ser contraintuitivo em tempos de subir hashtags nas redes sociais, de certo inativismo político, de uma juventude meio dopada por games. Mas eis do que estamos falando: segundo os pesquisadores, que estudaram movimentos em 101 países (cobrindo 93% da população global), vive-se atualmente uma nova era dos protestos. Algo comparável aos anos de 1848, 1917 e 1968. “Existem períodos na história em que um grande número de pessoas se rebela, exigindo mudanças. Vivemos outro período de indignação e descontentamento crescentes, e alguns dos maiores protestos de toda a história mundial.”

A era dos protestos surge em meio à crise de 2008-2009, ganha contornos mais claros com a reação aos choques de austeridade aplicados na sequência, espalha-se com o sentimento de que os governos servem às elites e são incapazes de representar os cidadãos em geral, chega ao fim da década com “manifestações-bonde”, em que várias pautas específicas pegam carona em atos contra o sistema político e econômico, contra tudo e contra todos, na linha dos coletes amarelos.

O estudo classifica as manifestações em quatro categorias. A maioria dos atos, obviamente, não é estanque e resulta da soma de insatisfações entrelaçadas. Mas a divisão estabelecida pelos pesquisadores foi a seguinte: falência da representação política (contra a corrupção, por “democracia real”, questões de soberania); justiça econômica e anti-austeridade (em que entram pautas como desemprego, preço dos combustíveis, privatizações); direitos civis (de mulheres, de imigrantes, LGBT); e causas globais (mudanças climáticas, contra o livre-comércio, contra organismos multilaterais).

Há um crescimento em todas as categorias, exceto na última. De fato, parecem ter ficado para trás os dias de multidões tomando as ruas para perturbar cúpulas do G-8 ou encontros do FMI. Só os mais velhos hão de lembrar-se da “Batalha de Seattle”, em 1999, quando milhares bloquearam a cidade para impedir o lançamento de uma nova rodada de liberalização comercial pela OMC. Foi um marco nos atos antiglobalização.

Curioso notar como, às vezes, o gatilho para manifestações são medidas aparentemente inofensivas. Junho de 2013 no Brasil, com seus 20 centavos, tornou-se “case” internacional. Mas há outros exemplos: a taxação de ligações por WhatsApp pelo Líbano, o aumento das tarifas de metrô em Santiago que levou à Assembleia Constituinte, a alta de 170% dos preços da energia elétrica que provocou a queda do presidente no Quirguistão.

Também chama a atenção, no período estudado, a razoável quantidade de protestos (254) em torno de assuntos como “soberania” e “patriotismo”, muitos dos quais apropriados pela ultradireita. A invasão do Capitólio e atos islamofóbicos na Alemanha em 2015, no auge da crise dos refugiados sírios, foram enquadrados como tal. Se desse tempo, haveria a inclusão do 7 de setembro bolsonarista na lista?

Na América Latina, houve dez manifestações - metade das realizadas no mundo todo - contra o “comunismo”. Legado, provavelmente, da traumática experiência da Venezuela sobre a opinião pública em vizinhos como o Equador ou a Bolívia.

Descoberta dos pesquisadores: 42% dos protestos atingiram, de alguma forma, avanço verificável em suas reclamações: aumentos de impostos foram revertidos, reformas previdenciárias foram abortadas, chefes de governo caíram. A chave do sucesso está na densidade e na repetição dos atos. Uma lição para opositores de Jair Bolsonaro, à esquerda e ao centro, que não se entendem sequer sobre o dia de ir às ruas.

 

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