Valor Econômico
Estudo sustenta que mundo vive agitação
semelhante a 1968
O mundo está indo cada vez mais para as
ruas. Do Black Lives Matter aos supremacistas de Charlottesville, das marchas
pela liberdade de expressão pós-ataque contra o Charlie Hebdo aos coletes
amarelos na França, da Primavera Árabe à histórica greve de 250 milhões de
trabalhadores na Índia, das manifestações pela queda de Dilma Rousseff à
explosão social no Chile. A quantidade de grandes protestos cresceu
substancialmente nos últimos 15 anos, em todas as regiões do planeta, conforme
estudo recém-publicado por quatro pesquisadores do centro de estudos alemão FES
e da Initiative for Policy Dialogue, uma organização baseada na Universidade
Columbia.
Vamos aos números: houve 576 manifestações de grande porte no período 2006-2010, que aumentaram para 1.081 nos anos 2011-2015 e depois chegaram a 1.152 no quinquênio 2016-2020. No ano passado, apesar de restrições da pandemia, ocorreram mais protestos do que em qualquer outro da última década e meia.
Pode até ser contraintuitivo em tempos de
subir hashtags nas redes sociais, de certo inativismo político, de uma
juventude meio dopada por games. Mas eis do que estamos falando: segundo os
pesquisadores, que estudaram movimentos em 101 países (cobrindo 93% da
população global), vive-se atualmente uma nova era dos protestos. Algo
comparável aos anos de 1848, 1917 e 1968. “Existem períodos na história em que
um grande número de pessoas se rebela, exigindo mudanças. Vivemos outro período
de indignação e descontentamento crescentes, e alguns dos maiores protestos de
toda a história mundial.”
A era dos protestos surge em meio à crise
de 2008-2009, ganha contornos mais claros com a reação aos choques de
austeridade aplicados na sequência, espalha-se com o sentimento de que os
governos servem às elites e são incapazes de representar os cidadãos em geral,
chega ao fim da década com “manifestações-bonde”, em que várias pautas
específicas pegam carona em atos contra o sistema político e econômico, contra
tudo e contra todos, na linha dos coletes amarelos.
O estudo classifica as manifestações em
quatro categorias. A maioria dos atos, obviamente, não é estanque e resulta da
soma de insatisfações entrelaçadas. Mas a divisão estabelecida pelos
pesquisadores foi a seguinte: falência da representação política (contra a
corrupção, por “democracia real”, questões de soberania); justiça econômica e
anti-austeridade (em que entram pautas como desemprego, preço dos combustíveis,
privatizações); direitos civis (de mulheres, de imigrantes, LGBT); e causas
globais (mudanças climáticas, contra o livre-comércio, contra organismos
multilaterais).
Há um crescimento em todas as categorias,
exceto na última. De fato, parecem ter ficado para trás os dias de multidões
tomando as ruas para perturbar cúpulas do G-8 ou encontros do FMI. Só os mais
velhos hão de lembrar-se da “Batalha de Seattle”, em 1999, quando milhares
bloquearam a cidade para impedir o lançamento de uma nova rodada de
liberalização comercial pela OMC. Foi um marco nos atos antiglobalização.
Curioso notar como, às vezes, o gatilho
para manifestações são medidas aparentemente inofensivas. Junho de 2013 no
Brasil, com seus 20 centavos, tornou-se “case” internacional. Mas há outros
exemplos: a taxação de ligações por WhatsApp pelo Líbano, o aumento das tarifas
de metrô em Santiago que levou à Assembleia Constituinte, a alta de 170% dos
preços da energia elétrica que provocou a queda do presidente no Quirguistão.
Também chama a atenção, no período
estudado, a razoável quantidade de protestos (254) em torno de assuntos como
“soberania” e “patriotismo”, muitos dos quais apropriados pela ultradireita. A
invasão do Capitólio e atos islamofóbicos na Alemanha em 2015, no auge da crise
dos refugiados sírios, foram enquadrados como tal. Se desse tempo, haveria a
inclusão do 7 de setembro bolsonarista na lista?
Na América Latina, houve dez manifestações
- metade das realizadas no mundo todo - contra o “comunismo”. Legado,
provavelmente, da traumática experiência da Venezuela sobre a opinião pública
em vizinhos como o Equador ou a Bolívia.
Descoberta dos pesquisadores: 42% dos
protestos atingiram, de alguma forma, avanço verificável em suas reclamações:
aumentos de impostos foram revertidos, reformas previdenciárias foram
abortadas, chefes de governo caíram. A chave do sucesso está na densidade e na
repetição dos atos. Uma lição para opositores de Jair Bolsonaro, à esquerda e
ao centro, que não se entendem sequer sobre o dia de ir às ruas.
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