O Estado de S. Paulo
O poder está se autopreservando sem dar chance à sociedade de interromper o ciclo do inamistoso, frio, enrolador, o opaco como norma
O Brasil se acostumou com a ideia de que
opinião pessoal de político, juiz, procurador, policial e gente influente faz
parte dos tribunais e das instituições. Das leis não há muito a saudar, dos
costumes, cada um escolha os sentimentos para se arrepender. A lei de um dia,
com objetivo específico, é enxurrada para criação do cidadão dócil ou
revoltado, distante do indivíduo sereno, com força para exigir que o social
prevaleça sobre o individual.
De repente alguém parece acordar acordando o outro. É que, se algo é feito no lugar errado, resta um poder cuidar da responsabilidade do outro poder. A Constituição é um peixe fora d’água servindo de intermediário ao arbítrio das instituições, citada como lição de autoajuda para autoridade em torre de marfim. Crua realidade de um sistema político e jurídico que finge fazer a coisa certa para enfrentar como justa a vida falsa das instituições, imersas num estatismo sufocante, sem consciência do subterrâneo em que afunda a sociedade.
O efeito do chicote precisa arrefecer. O
poder está se autopreservando sem dar chance à sociedade de interromper o ciclo
do inamistoso, frio, enrolador, o opaco como norma. O impulso do pensamento se
manifesta deformado, corretivo, tendente ao pior aspecto da dominação. O
egoísmo se alastra, os jovens estão perdidos, a pobreza aumenta, a riqueza se
isola, o preconceito assume forma sofisticada. A sociedade para a massa – não
de massa – manipula a tragédia do dia testando a emoção impotente da massa. O
matagal quer se fazer de bosque.
O Parlamento anda insone e sem perspectivas
de ajudar o País a esperar pela manhã. A emenda suja ofende o pobre quando usa
o sim do oposicionismo governista para azedar o não insuficiente da oposição.
As diferenças são psicológicas e servem para manter a evidência de que o
corredor do meio do plenário não separa mais as distinções. Um lado transita
para o outro usando a pobreza, a economia, a grosseria, a paixão, a quente ou a
frio, como massa de manobra. Quer autonomia para ser subordinado do Executivo, com
sua cota de poder intacta para entupir prefeito de trator, asfalto, esgoto,
executando o Orçamento com iniquidade.
Quando o político não reflete mais a sua
origem, se ajeita como valor de troca na dominação geral a que se adaptou.
Toda experiência que as instituições acumularam
está sendo desmentida, partidos em seus interesses locais. Paralisia,
alheamento, nem o prazer do humor se pratica, com receio de atrapalhar o
cortejo do funeral dos sonhos que avança.
Ninguém dispõe de liberdade quando faz tudo
em proveito próprio e o direito à satisfação é mais forte do que a inibição da
vontade. Quanto mais é alcançado, mais insatisfatório tudo fica. Movendo num
tempo livre a insônia tira tudo do sujeito e tudo lhe parece demasiado pouco.
Sendo massa ou distinção, o prazer é nada temer, indiferente ao eleitor e seu
poder de interpretação.
Se os Três Poderes abolissem imediatamente
suas redes de televisão e só fosse possível reconhecer a autoridade pela voz ao
telefone, o truque pelo qual estamos sendo governados certamente não devolveria
aos ouvidos a admiração, mas pouparia o olhar de tanta gente feia. Pelo timbre,
ao menos poderíamos supor a beleza de algumas vozes. O desejo de parecer
pomposo e influente e a expressão infantil e agressiva de seres orgulhosos de
sua deficiência cultural revelam noite mal dormida, cheia de pesadelos
próprios. Não se parece em nada com a expressão que acompanha o fim do sono e a
novidade do amanhecer.
A beleza da manhã começa fraca e hesitante
como a esperança parece sombria e ignorada. Mas é mesmo neste tom de luz pouco
vistoso que repousa o brilho da alvorada. Seria bom conhecer o que levou
Theodor Adorno a escrever Mínima Moral e entender por que a Inglaterra se
salvou e a França, soberba e indulgente, foi facilmente dominada pela conversa
fiada que a desonrou. A mentira, aqui, tem pernas longas, mas a capacidade
subjetiva da felicidade ainda não morreu definitivamente entre nós.
Quando a oposição começa também a se servir
da mentira para não ser eliminada é que o oculto da dominação está escancarado.
Ou você não acredita de forma alguma no que não quer ou você entrega os pontos
e parte para explicações grandiloquentes. É o jeito que a política tem se
comportado, inventando jogos para sobreviver, o que explica o estrondoso
sucesso do fracasso do governo. Acreditar na mentira que fala não é dizer a
verdade.
Emaranhado, o blefe brasileiro está no
emaranhado, na chocante transparência de tudo, na simplicidade como se oculta a
verdade.
O alvo do indivíduo insaciável na sociedade
atual é o desempenho inútil para o coletivo. Por isso a fúria na maneira de
agir sem entrave ou estorvo. Todos os obstáculos caíram para os desagradáveis e
os desinibidos. A ordem é desembocar em algum lugar. O engodo do inconformado
como a forma espetacular de expressar seu conformismo.
O grito de Ciro e o rigor de Rosa contra a
prerrogativa secreta de um poder são verso de Baudelaire: avalanche, você não
vai me levar na sua queda!
*Sociólogo
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