Folha de S. Paulo
Arco narrativo da queda do democrata
pertence ao universo do espetáculo
Durante os dez dias anteriores à queda de
Cabul, entre 5 e 14 de agosto, o The New York Times concedeu destaque muito
maior à novela da renúncia
de Andrew Cuomo que à tragédia
concluída pela queda de Cabul. Na capa, Cuomo bateu o Afeganistão por
goleada: 7 a 3. O placar ajuda a explicar o triunfo final do Talibã e,
adicionalmente, conta uma história sobre a degradação do jornalismo.
O governador de Nova York renunciou sob um escândalo provocado por eventos de assédio sexual a algumas funcionárias da máquina administrativa estadual. A queda de Cabul evoca o fracasso de quatro presidentes na mais longa guerra americana, reordena o tabuleiro estratégico na Ásia Central e no mundo, oferece novas oportunidades às organizações jihadistas e cobre com nuvens de chumbo os direitos elementares de milhões de mulheres e meninas. Os editores do NYT decidiram, porém, que o affair doméstico tinha mais relevância.
A embaixada americana em Cabul exibia, na
muralha que a circunda, fotos de mulheres afegãs universitárias e meninas em
bancos escolares. Era propaganda de guerra, claro, mas não era mentira. Ao
longo dos 20 anos de ocupação, os EUA utilizaram os direitos humanos como
justificativa moral da guerra. O Talibã triunfou porque os EUA se
desinteressaram. O acordo de retirada refletiu o nacionalismo isolacionista de
Donald Trump, que ganhou o selo
de aprovação de Joe Biden. As capas do NYT iluminam a amplitude desse
sentimento, difundido igualmente entre republicanos e democratas.
A vitória do Talibã representa, num sentido
profundo, uma vitória ideológica de Trump. As capas do NYT, principal porta-voz
da imprensa liberal (isto é, na linguagem americana, de centro-esquerda),
veiculam uma mensagem bem conhecida: “America First”.
A história de Cuomo é um conto leve sobre o
machismo que persiste nas opulentas sociedades ocidentais, o tecido do qual é
feito o movimento #MeToo. A história do fundamentalismo islâmico, com sua
versão literalista dos textos sagrados e sua lei
da sharia, tem outra dimensão: uma regressão brutal que converte as
mulheres em utensílios domésticos e expulsa as meninas das escolas. O NYT
escolheu a primeira, em detrimento da segunda, pois inclinou-se ao espírito das
redes sociais.
A queda de Cabul traz à tona as complexas
relações entre política e cultura. Imagens da vida cotidiana afegã dos anos
1960 revelam mulheres
nas ruas em trajes ocidentais e meninas nos bancos escolares. O Talibã não
representa o islã, mas uma perversão política da religião. A captura da fé para
alcançar o poder não é uma estratégia circunscrita ao mundo muçulmano. De
outras formas, em contextos específicos, o fenômeno se manifesta nos EUA de
Trump, no Brasil de Bolsonaro, na Hungria de Orbán, na Turquia de Erdogan. O
NYT preferiu não ver a dimensão universal do desastre no Afeganistão.
A queda de Cuomo oferece, em contraste,
um enredo
típico dos folhetins. O herói da pandemia, líder de pulso forte que
conduziu seu povo pelo túnel do medo, torna-se repentinamente um anti-herói, o
vulgar assediador de mulheres, desabando das nuvens da glória às fogueiras do
inferno. O arco narrativo pertence ao universo do espetáculo, ao mundo das
celebridades. Selecionando-o como pauta prioritária, o NYT inscreve o jornalismo
na correnteza noticiosa das redes sociais, um domínio fervilhante de escândalos
perecíveis.
Nada disso seria possível, nem remotamente,
uma ou duas décadas atrás. No passado ainda próximo, os jornais de referência
orgulhavam-se de levar a seus leitores a “história em construção” ou a
“história em marcha”. Os dez dias da queda de Cabul mostram que essa ambição
também secou. Agora, editores resignados contentam-se com as migalhas do
piquenique da sociedade do espetáculo —e se justificam alegando que fazem a
vontade do público. E não só nos EUA.
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