O Globo
O bolsonarismo é um talibanismo, numa
versão tropical e carnavalesca, mais ridícula, mas não menos estúpida, violenta
e potencialmente destruidora
Enquanto os desgrenhados guerrilheiros do
Talibã entravam em Cabul, fui reler uma crônica que Eça de Queiroz escreveu
sobre as vitórias e derrotas dos ingleses no Afeganistão: “Em 1847, os
ingleses, por uma razão d’Estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a
segurança do império, uma barreira ao domínio russo da Ásia, e outras coisas
vagas, invadem o Afeganistão, e ali vão aniquilando tribos seculares.
Apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho
emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado
nas bagagens, com escravas e tapetes; e, logo que os correspondentes dos
jornais têm telegrafado a vitória, o exército, acampado à beira dos arroios de
Cabul, desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz.” Nas linhas seguintes,
com idêntica ironia, Eça descreve a derrota do exército britânico, mais
preocupado com o fornecimento de chá (e do açúcar para adoçar o chá), do que em
combater os insubmissos guerreiros afegãos. Finalmente, conclui: “E de tanto
sangue, tanta agonia, tanto luto, o que resta por fim? Uma canção patriótica e
uma estampa idiota nas salas de jantar.”
O que aconteceu com os ingleses no século XIX aconteceu depois com os russos no século XX, e a seguir com os americanos neste nosso tempo. A principal diferença é que da desastrosa aventura americana não sobrará sequer uma canção patriótica.
A fulgurante vitória do Talibã trouxe de
volta o debate sobre fundamentalismo islâmico, misoginia, neopuritanismo e
violência contra a mulher. É um debate importante, sobretudo se aproveitarmos
para discutir não apenas o fundamentalismo islâmico, mas todas as formas de
extremismo religioso.
Nos últimos dias, as redes sociais vêm
mostrando fotografias a preto e branco de moças afegãs, passeando pelas praças
de Cabul, de cabelos ao vento, blusas ligeiras e saias curtas. São imagens dos
anos 1970. É possível encontrar imagens semelhantes feitas na mesma época na
Pérsia, na Argélia, na Turquia, entre tantos outros países que, entretanto,
sucumbiram ao triunfo de correntes conservadoras do islão.
Infelizmente, não são apenas os países
islâmicos que se vêm rendendo ao neopuritanismo e à misoginia. Em muitos países
ocidentais, e em particular no Brasil, assiste-se a um fenômeno semelhante. O
crescimento do fundamentalismo cristão, importado dos EUA, ameaça conquistas
importantes dos movimentos feministas e pelos direitos das minorias.
O bolsonarismo é um talibanismo, numa
versão tropical e carnavalesca, ou seja, ainda mais ridícula, mas não menos
estúpida, violenta e potencialmente destruidora. Bolsonarismo e talibanismo
partilham um idêntico ódio às mulheres livres; o culto às armas, à violência e
aos “valores masculinos”; o desprezo pela diferença; a exaltação de um deus
arcaico, macho e cruel.
Como foi isto possível?
Isto: a irrupção do século XV no século
XXI?! Como é que esta gente, vinda das profundezas mais sombrias da História,
conseguiu desembarcar, armada, no nosso tempo?
Quando formos capazes de responder a esta
questão, então, sim, talvez consigamos vencer o passado — e aceder ao futuro.
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