Há
que resistir à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a
conta vem depois, não compensa
A
realidade tem se mostrado mais complexa que as previsões. Novas cepas,
múltiplas ondas de casos e mortes, efeitos colaterais das vacinas, tudo eleva a
incerteza sobre quando se controlará a pandemia da covid-19 e, não menos
importante, como será o novo normal depois disso. Fica claro, também, que os
países ricos não conseguirão controlar a epidemia vacinando só suas populações,
enquanto no resto do mundo a pandemia segue solta, facilitando o surgimento de
novas e mais virulentas variantes do vírus.
Isto posto, tudo indica que 2021 verá uma inflexão nesse processo, fruto do gigantesco esforço de vacinação em curso. E de que, os dados mostram, as vacinas estão funcionando. Até aqui foram aplicadas quase 900 milhões de doses globalmente, quase uma dose para cada seis pessoas com 20 anos ou mais. Na última semana, mais de 100 milhões de doses foram administradas e a tendência é esse ritmo acelerar, conforme suba a produção de vacinas. Mesmo que isso não ocorra, mantido esse ritmo o ano fechará com 4,5 bilhões de doses aplicadas, o suficiente para vacinar boa parte dos mais vulneráveis.
A
vacinação avançou mais em alguns países ricos, como os europeus e os EUA, com
grandes emergentes como Brasil, Argentina, China, México e Índia vindo atrás,
nessa ordem, em termos de vacinas aplicadas por habitante. Onde a vacinação
andar mais rápido, a atividade econômica e o emprego também se recuperarão mais
ligeiro e significativamente. Os EUA são o grande caso de sucesso na economia,
para o que os redobrados estímulos fiscais também contribuem.
No
Brasil, tudo parece meio parado, à espera que a vacinação avance o suficiente
para a normalização, ainda que parcial, para usar o jargão da moda, da
economia. Já se aplicaram cerca de 35 milhões de doses e o ritmo tem ficado,
com alguma volatilidade, perto de um milhão de doses por dia. Isso permitirá
vacinar, com duas doses, todos os brasileiros com 20 anos ou mais até o fim do
ano. Se conseguirmos mais vacinas, poderemos atingir essa “normalização
parcial” no terceiro trimestre, com o ano fechando com uma retomada mais firme
da atividade.
O
problema é que há muito mais com que se preocupar, o que não parece estar
ocorrendo. O que me fez lembrar da frase de Samuel Johnson: “Confie nisso,
senhor, quando um homem sabe que está em vias de ser enforcado, concentra sua
mente maravilhosamente”. Quem sabe a forca ainda não está apertando tanto
quanto parece, mas a impressão é de rompimento com o padrão das últimas
décadas, quando a proximidade da crise concentrou as mentes e levou à aprovação
de ajustes fiscais. Não vemos isso agora, como ficou claro na confusão, ainda
em curso, com o orçamento público deste ano.
O
drama humanitário - mais de 20 mil mortes por semana - explica em parte essa
apatia com a deterioração do quadro fiscal. É na saúde pública que as mentes
estão concentradas. Parte da explicação também está, porém, em muito da
deterioração futura vir de maiores despesas com juros, e não do mais visível
déficit primário.
Entre
fevereiro de 2020 e o mesmo mês este ano, a Dívida Bruta do Governo Geral
saltou de 75,2% para 90% do PIB. A despeito desse salto, a despesa com juros
sobre essa dívida caiu de 5,5% do PIB nos 12 meses até fevereiro de 2020 para
4,7% do PIB um ano depois. Isso porque, na média dos 12 meses terminados em
fevereiro último, a taxa de juros implícita incidente sobre essa dívida foi de
apenas 5,7%, contra 7,5% um ano antes.
Essa
taxa de 5,7% é a menor registrada na série histórica disponibilizada pelo Banco
Central (BC). Essa excepcionalidade fica ainda maior quando se olha para essa
taxa em termos reais, descontando a variação acumulada pelo IPCA: nos 12 meses
até fevereiro de 2021, a taxa real ficou em 0,5%, contra uma média de dez vezes
esse valor em 2007-20 (5%).
Nos
próximos meses a taxa de juros real incidente sobre a dívida pública vai
continuar caindo, indo para valores negativos. Porém, olhando um pouco mais à
frente, parece inevitável que ela suba, possivelmente de forma significativa.
Isso por dois fatores.
Um,
a alta dos juros pagos pelo Tesouro americano, que deve continuar conforme a
economia do país se recupere, dado que o governo americano necessita emitir
altos volumes de dívida para financiar seu elevado déficit. O processo será
gradual, oscilando com as ondas da pandemia, mas deve ganhar força com a
recuperação da atividade e a queda do emprego.
Outro,
a necessidade de controlar a escalada inflacionária doméstica, que fará o BC
continuar a elevar a taxa Selic, indexador de 45% da dívida pública,
provavelmente para além do que projeta o analista mediano do Focus (6% ao final
de 2022). A inflação segue surpreendendo para cima e o risco de o BC perder o
controle das expectativas inflacionárias tem aumentado.
Torço
que se resista à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a
conta vem depois, não compensa. É hora de começar a se preparar para esse novo
desafio fiscal.
*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ
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