Excepcional
no “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” é adjetivo que guarda tanto
sentido de exceção, fora da normalidade, quanto de excelência, muito acima do
padrão. Os desdobramentos do assassinato, há 11 meses, de George Floyd, homem
negro, pelo então policial branco Derek Chauvin — crime tão brutal quanto
recorrente nos EUA, no Brasil — contêm os dois significados. Foram excepcionais
a indignação coletiva, os protestos caudalosos, o impacto político, a
indenização aos familiares, o veredito do júri. Falta a sentença, espera-se,
igualmente excepcional. E, a partir daí, mudanças estruturais que ponham fim,
sobretudo, à violência policial com viés racial ou à impunidade recorrente
nesses casos.
Foi Kamala Harris, vice-presidente dos EUA, quem chamou atenção para o risco de a condenação do assassino de Floyd se consumar como episódio isolado. Ela se pronunciou antes do presidente Joe Biden, um par de horas depois de a dúzia de jurados, metade branca, considerar o réu culpado nas três acusações: homicídio culposo em segundo grau (matou por negligência), homicídio em terceiro grau (matou em ato perigoso, desprezando a vida humana), homicídio em segundo grau (não premeditou, mas matou porque quis). Kamala disse que justiça em um caso não é o mesmo que Justiça igualitária. E completou: “Precisamos reformar o sistema”.
Tanto
ela quanto Biden cobraram a aprovação, pelo Senado, da Lei George Floyd, já
aprovada na Câmara, que institui o registro nacional de má conduta policial,
proíbe imobilização por estrangulamento, desautoriza agentes a entrar em
lugares sem se anunciar, entre outras mudanças. É o enfrentamento ao racismo
institucional pelo qual americanos de todas as idades e etnias marcharam, 11
meses atrás, após mais um assassinato de homem negro por policial branco.
Chauvin
asfixiou Floyd até a morte por intermináveis nove minutos. O crime, registrado
em vídeo, escancarou a brutalidade policial a que pessoas negras são
submetidas, herança de um modelo colonial que aboliu a escravidão, mas não se
despiu do racismo. “Um ponto fundamental nas imagens foi que Floyd não resistiu
à prisão. Auto de resistência, sabemos, é usado para justificar o uso da força
pelo agente público. No Brasil, o desfecho é sempre a morte. Ninguém sai
ferido”, observa o advogado Hédio Silva, ex-secretário de Justiça de São Paulo.
Os
protestos nos EUA foram os mais numerosos desde o assassinato de outro homem
negro, Martin Luther King, líder do movimento pelos direitos civis, em 1968. Do
levante contra a violência racial da polícia, emergiu a participação eleitoral
afro-americana que levou à Casa Branca a chapa Biden-Kamala — ela, a primeira
mulher, negra e pessoa de origem asiática no posto. Presidente e vice
prometeram combater o racismo sistêmico e, não por acaso, se pronunciaram
juntos sobre o veredito de crime racial. Excepcional. O Brasil nunca viu nada
parecido — em governos de esquerda e, muito menos, de direita.
O
caso Floyd selou o maior acordo judicial de reparação financeira à família de
uma pessoa negra vítima de violência policial. A cidade de Minneapolis
concordou com a indenização de US$ 27 milhões pelo crime cometido por um
servidor público no exercício da função. No julgamento, agentes e até o chefe
de polícia testemunharam contra o assassino, outra excepcionalidade num
ambiente marcado por corporativismo e impunidade, lá como cá. “No Brasil, PMs
são julgados em Tribunais Militares”, sublinha Deise Benedito, mestre em
Direito e Criminologia pela UnB.
O
assassinato de George Floyd repercutiu fortemente no Brasil, país que padece de
estatísticas homicidas ainda mais dramáticas. Aqui, três jovens negros são
mortos a cada hora. Oito em cada dez vítimas de intervenção policial são
negras, informou ainda ontem o Monitor da Violência. As forças de segurança do
Rio de Janeiro matam mais que as dos Estados Unidos inteiros. Em 2019, a
polícia fluminense abateu 1.814, o dobro de lá. No ano passado, a escalada
homicida levou o Supremo Tribunal Federal a proibir operações em favelas
durante a pandemia. Por causa disso, 2020 terminou com 1.245 vítimas, mais de
três por dia, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública
(ISP-RJ).
A decisão do ministro Edson Fachin foi confirmada pelo plenário em agosto, que também determinou a elaboração de plano de redução da letalidade policial. Sexta e segunda passadas, Fachin liderou inédita audiência pública para tratar das medidas. No primeiro dia, o Ministério Público estadual se fez presente, mas o governador Cláudio Castro, não. A Polícia Militar mandou representante no segundo dia. Pelo “espaço de escuta”, como classificou o ministro do STF, passaram pesquisadores, acadêmicos, organizações da sociedade civil, associações comunitárias, mães de vítimas. Foi um encontro excepcional — tomara, antessala de transformação estrutural.
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