Querem
legitimar atividades destrutivas como virtudes do empreendedorismo
Tontura,
olhos pesados, sono profundo —e você só acorda no dia seguinte. Aí percebe que
está num mundo novo. Não é mais possível qualquer atividade que conduza à emissão
de gases de efeito estufa.
O
cidadão norte-americano, canadense ou chinês não pode tirar o carro da garagem.
Luz elétrica ou internet, só algumas poucas horas por dia, já que a matriz
energética desses países (e da maior parte dos outros) depende da queima de
combustíveis fósseis. Se a vida não parar, o colapso do sistema climático,
as secas, os incêndios, os furacões e a subida no nível do mar vão se tornar
ainda mais destrutivos.
A pandemia de
Covid-19 ofereceu uma versão suave desse cenário apocalíptico. Em
média, durante 2020, as emissões de gases de efeito estufa tiveram,
globalmente, retração inédita de 7%. Tal declínio só foi alcançado com uma
redução brutal das atividades econômicas e da interação social.
O ritmo de queda da dependência humana dos combustíveis fósseis é muito mais lento do que o necessário para evitar a intensificação dos eventos climáticos extremos. Por isso, Estados Unidos e União Europeia comprometem-se a reduzir pela metade suas emissões nos próximos dez anos. E, claro, não querem fazer isso paralisando a vida econômica.
O
caminho, então, é duplo: em primeiro lugar, enfrentar interesses poderosos que
ajudam a perenizar nossa dependência dos combustíveis fósseis. O mais
importante, porém, é que essas metas só serão alcançadas caso melhorem muito as
tecnologias ligadas às energias renováveis modernas, e sua armazenagem, para
contrabalançar a intermitência da solar e da eólica.
Nos
EUA serão introduzidos 50 milhões de automóveis
elétricos e 3 milhões de pontos de abastecimento dos veículos com
energia elétrica até 2030. A siderurgia, a produção de cimento e outros setores
altamente dependentes de emissões terão que ser transformados, e muito
rapidamente. A agropecuária também terá que emitir muito menos que hoje.
São
transformações que vão exigir investimentos altíssimos, mudanças de hábitos,
novos padrões de produção e de consumo. E tudo isso só será possível se a
ciência avançar e abrir caminho a tecnologias que tornem viáveis esses novos
padrões. Em outras palavras, o que os especialistas chamam de “descarbonização
profunda” (que terá de ocorrer nos próximos
dez anos) atinge diretamente a vida cotidiana dos cidadãos
e a oferta de bens e serviços. Tudo isso supõe
pesquisa de ponta.
E
nós? O dado mais importante para a reunião climática, convocada pelo presidente
Joe Biden, é que, entre os dez maiores emissores globais, o Brasil é hoje o único
(junto com a Indonésia) em que quase metade das emissões
de gases de efeito estufa vem do desmatamento.
Ora, zerar o desmatamento não depende de ciência e tecnologia, não exige novos
hábitos —nem de produção nem de consumo.
Se
você é o cidadão que caiu em sono profundo e acordou num mundo de desmatamento
zero, sua comida não ficará mais cara, seus hábitos de consumo não serão
modificados nem serão necessárias transformações estruturais na vida econômica
e social de seu país. Haverá, é verdade, alguma redução na renda gerada pelo
desmatamento, vinculada frequentemente a trabalho escravo e à menor compra de
equipamentos para a ocupação de áreas públicas, invasão de terras indígenas e
para a mineração ilegal.
Hoje,
se o desmatamento cresce e se o governo federal tenta
fazer crer ao mundo que zerar a destruição é tão difícil quanto
descarbonizar a matriz dos transportes e da energia, isso se deve a uma razão:
a retórica e
a prática do Planalto e da Esplanada dos Ministérios tentam legitimar uma
espécie de liberalismo miliciano em que atividades sabidamente criminosas e
destrutivas buscam aparecer como se fossem a expressão máxima das virtudes do
empreendedorismo.
É
essa gente, que depende politicamente da apologia ao crime e da tentativa de
sua legalização, que vai agora alegremente a Washington de
pires na mão. E voltarão de mãos abanando, dizendo, ferozes, que os outros
fazem pouco para combater a crise climática.
*Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, é autor de ‘Amazônia - Por uma economia do conhecimento da natureza’ (ed. Elefante)
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