Neste
país subdesenvolvido, há pouco lugar para quem não é adulto
A
tragédia do menino Henry, de 4 anos de idade, morto em casa, em seus pequenos e
dolorosos detalhes, ilumina a tragédia brasileira das crianças sem infância.
No
plano policial e judicial está sendo ouvida a palavra dos envolvidos. Não será
ouvida, porém, a palavra da criança. Quando o pai o levou de volta à casa da
mãe e do padrasto, dele ouviu o que era um pedido de socorro na língua infantil
do amor: “Deixa eu ficar mais um dia com você”. Pediu o abrigo de um peito que
sabia seu.
Alguém
da família do menino, a quem o pai revelou sua queixa de que “o tio me
machuca”, referindo-se ao padrasto, procurou tranquilizá-lo: criança fantasia
para conseguir o que quer.
A interpretação da fantasia infantil, como se fosse malandragem de adulto, mostra a incapacidade do adulto referencial da sociedade contemporânea em compreender a criança que pensa e age como criança. A infância está sendo extinta.
Neste
país subdesenvolvido, há pouco lugar para quem não é adulto. Num grupo social
desorganizado, como o de uma família em crise, é possível que deixe de existir
o lugar social da criança. No meio do caminho de sua vida, pode ela
descobrir-se sobrante, demasiada. Em situações extremas, banida pela violência.
Naquela
mesma noite, foi o menino levado pela mãe ao hospital, onde já chegou morto. Na
autópsia foram constatadas 23 lesões, uma no fígado, e hemorragia interna.
Em
2019, no Brasil, 140 mil crianças e adolescentes foram vítimas de violência
doméstica. Em 2020, 18 mil crianças por dia foram vitimadas dentro de casa, por
membros da família. Esses números assombrosos evidenciam que a família, o grupo
de referência social mais próximo de crianças e adolescentes, está se decompondo.
Está deixando de ser deles.
Ao
contrário do que ocorreu no mundo civilizado, esta sociedade ainda não aprendeu
a tratar a criança e o adolescente como seres humanos que são. Nem aprendeu a
ouvi-los na linguagem que lhes é própria, nem a neles reconhecer os autores de
uma compreensão própria e rica do que a sociedade é.
Na
avaliação de senso comum sobre as fantasias autodefensivas do menino
martirizado está contida a concepção bem brasileira de que a criança é um
adulto incompleto e defeituoso. Um ser de credibilidade menor, sujeito à
disciplina violenta do enquadramento para nele antecipar o adulto que ainda não
é.
Crianças
e adolescentes têm sua própria linguagem. Têm um código próprio para decifrar
os adultos e criar soluções para impasses e dificuldades. Mesmo em catástrofes,
como nos desastres naturais e nas guerras. Quando do furação Katrina, em Nova
Orleans, crianças que perderam casa e família, a perambular pelas ruas,
espontaneamente se agruparam, criaram uma sociabilidade própria, autoprotetiva,
inventaram uma sociedade de emergência e conseguiram sobreviver na longa espera
até que lhes viesse o socorro.
Num
mundo hostil à criança, a língua infantil e juvenil é a língua poética da
inocência criativa. Desde cedo, crianças e adolescentes aprendem que o adulto,
mesmo na família, pode ser um adversário. É que a sociedade contemporânea é a
sociedade do individualismo e dos individualistas. Há o risco de que nela
filhos sejam adjetivos.
Com
a modernidade, o casamento tornou-se uma associação econômica entre o homem e a
mulher. De certo modo, são objetos que se casam, personificados por aqueles que
lhes emprestam corpos e mentes. A lei entende que as pessoas se casam para se
separar, para a possibilidade de voltar a ser solteiras. Nessa concepção, filho
é uma anomalia.
No
cenário antagônico ao que era o matrimônio na sociedade tradicional, uma
relação comunitária e afetiva, o casamento se tornou uma relação entre coisas.
É claro que essa coisificação da relação matrimonial é majoritária e
intensamente recoberta pela precedência do arcaísmo remanescente do amor e da
paixão.
Quando
nasce um filho, nos valores e concepções do tradicionalismo afetivo, ele é uma
terceira pessoa, um membro da comunidade familiar, um igual. Ele ressocializa
os pais, os “infantiliza” para que com ele possam se relacionar em condições de
igualdade. Na linguagem infantil, no abaixar-se para ficar na mesma altura, na
mudança de hábitos. O que pressupõe que deixam de ser apenas adultos que se
casaram para, então, ser pais e membros da verdadeira família que nasce com o
nascimento dos filhos.
Mesmo
na relação jurídica coisificada que se sobrepõe à família afetiva, os filhos
são seres desse arcaísmo e não do matrimônio moderno. Até o dia em que um
eventual desencontro faça a segunda instituição prevalecer sobre a primeira. Na
ruptura de um casal é quando os filhos descobrem que são apenas filhos pela
metade, filhos em tempo parcial.
*José de
Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq.
Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de
"Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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