Há
uma relação de mútua dependência, seja o que for que os militares pensem do
golpe de 64
A
crise militar desencadeada por Bolsonaro deixou no ar um misto de alívio e
apreensão. O pior não aconteceu. O presidente seguiu o critério de antiguidade
na nomeação dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. A
apreensão deriva do fato de que essa não foi a primeira nem será a última vez
que Bolsonaro busca instrumentalizar as Forças Armadas em função do seu projeto
político, sabidamente autoritário e destrutivo das instituições do Estado. O
que está em jogo é a preservação da democracia e das Forças Armadas, como
instituição republicana, impessoal, que não se confunde com governos e chefes
de Estado transitórios. São dois objetivos inseparáveis.
O presidente é sistemático e incansável em seu intento de criar exércitos para chamar de seus. Na base da sociedade, fomenta o acesso a armas e uma cultura de violência, em nome da liberdade e da segurança individuais, mandando às favas quaisquer escrúpulos de civilidade. Usa seu poder presidencial para reforçar sua identidade com grupos de indivíduos que fazem da intimidação um modo de ser, quando não um modo de vida e um negócio, como no caso das milícias. Na base do Estado, estimula o antagonismo entre policiais militares e governadores. Visa ao menos a criar a impressão de que, no dia D e na hora H, exércitos de PMs obedecerão ao seu comando para, junto com milícias civis bolsonaristas, encostar governadores e prefeitos contra a parede. Na cúpula do Estado, Bolsonaro dedica-se a enredar as Forças Armadas nas malhas de seu governo, pois sabe, como Hugo Chávez sabia, que sem cooptação das forças regulares a ameaça de intimidação de facções armadas é menos plausível.
Nunca
antes em regime democrático, nem mesmo durante o regime militar, tantos
oficiais – da reserva e da ativa – ocuparam tantas e tão destacadas posições em
ministérios e empresas estatais. O sentimento de missão a cumprir, a natural
atração que o poder exerce e a ilusão de que poderiam controlar o presidente
levaram os militares a acreditar que este governo era o seu governo. Bolsonaro
sabe cultivar esse sentimento: abre espaços na administração, melhora salários
e proventos, amplia o orçamento da Defesa, comparece a formaturas, etc.
Bolsonaro
já deve ter-se dado conta de que as Forças Armadas não embarcarão numa aventura
autoritária sob o seu comando. Basta, no entanto, que lhe deem suficiente
margem de manobra para que ele possa seguir tagarelando sobre o alinhamento
político entre o governo e os militares. Para a sua base fiel, o recado é
claro: se a chapa esquentar, eu tenho a força. A parolagem irresponsável do
presidente é instrumental para manter vivo o mito do homem forte, tão mais útil
quanto mais a realidade o mostra politicamente enfraquecido.
A
confusão propositada entre governo e instituição militar terá custos crescentes
para as Forças Armadas. A reeleição do presidente se tornou mais difícil. Ele
enfrentará a disputa do próximo ano em condições muito piores do que jamais
imaginou, carregando as perdas humanas, sociais e econômicas de uma tragédia
que se tornou ainda maior por seus atos e omissões. Se Lula vier a ser seu
principal adversário, travará uma guerra de deslegitimação do candidato petista
e, se necessário, do próprio processo eleitoral. Se as heterogêneas forças de
centro-direita e centro-esquerda se aglutinarem em torno de um candidato que
caia no gosto popular, sua situação se complicará mais ainda. Mas, num caso ou
noutro, mobilizará suas milícias online e offline para o que der e vier
e usará todos os instrumentos do Estado que puder utilizar em favor de sua
campanha. Bolsonaro pouco distingue as fronteiras entre família, governo e
Estado.
O
presidente conhece a resistência que o PT enfrenta no meio militar (mais uma
razão para sonhar com a polarização com Lula). Ela se formou ao longo do
governo Dilma e se consolidou com a Lava Jato. Os militares não digeriram a
Comissão da Verdade. Também não gostaram do que entenderam ser tentativas de
interferir em assuntos internos das Forças Armadas. O ex-juiz Sergio Moro
continua a contar com prestígio entre os militares e a decisão do STF de
declará-lo suspeito é tida como um retrocesso inaceitável. Bem aceito em seu
governo, depois o ex-presidente ganhou inimigos nas Forças Armadas.
Falemos
em português claro: o presidente joga com a hipótese de os militares se
mostrarem mais maleáveis a seus interesses num cenário eleitoral em que Lula
desponte como seu principal adversário. Nesse quadro, aposta que pode haver
coincidência de interesses e maior alinhamento político. Aposta perigosa, para
a democracia e para as Forças Armadas.
Ante
o risco que Bolsonaro representa, há uma relação de mútua dependência entre a
preservação da democracia como regime político e das Forças Armadas como
instituição de Estado, independentemente do que os militares pensem a respeito
do golpe de 31 de março.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do GACINT-USP
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