Omissão
do Supremo diante de ataque à democracia seria inaceitável
Em
25 de setembro de 1930, perante a Justiça Federal em Leipzig, Hitler deixou
claro seu objetivo de tomar as instituições jurídicas e “dessa maneira
transformar nosso partido num fator determinante... quando possuirmos poder
constitucional, vamos moldar o Estado à forma que nos seja apropriada”. Dito e
feito. Hitler ascendeu ao poder, promoveu a polarização e a desordem, e, em
1933, deu início a um substantivo processo de erosão constitucional que, entre
outras coisas, retirava do Judiciário o controle sobre seus atos. O resto da
história, infelizmente, todos sabemos.
Como
reação ao nazismo e ao método empregado para erodir
a ordem constitucional de Weimar, a nova Lei Fundamental alemã, de 1949,
não apenas adotou uma ampla carta de direitos, um sofisticado sistema federal e
de separação de Poderes, um robusto conjunto de cláusulas intangíveis
(pétreas), como conferiu ao Tribunal Constitucional a função de “guarda da
Constituição”. O que, aliás, também fizemos no Brasil em 1988.
Ao longo dos últimos 70 anos, o Tribunal Constitucional foi convocado diversas vezes para colocar limites a partidos desleais à democracia, conter abusos à liberdade de expressão, assim como assegurar o monitoramento de grupos violentos hostis à democracia. Nos anos 1950, invocando a doutrina da “democracia militante”, extinguiu tanto o novo partido nazista, como o partido comunista. Muitas dessas decisões foram cercadas de controvérsias, tanto jurídicas, como políticas. Mas o fato é que a democracia alemã resistiu.
Com
progresso econômico e, sobretudo, a adesão das novas gerações às regras do jogo
democrático, o Tribunal Constitucional foi amenizando a sua disposição de
interferir na luta política, mantendo, no entanto, uma postura vigilante em
relação a ação de grupos terroristas, assim como sobre o emprego de discursos
de ódio por parte de setores radicalizados. Mas para isso foi indispensável o
forte compromisso dos mais diversos setores à Constituição.
Guardadas
devidas distinções, não parece errado analisar a prisão
do deputado Daniel Silveira sob o ângulo da doutrina da “democracia
militante”, que inspirou a Corte alemã. A manifestação do deputado, com suas
agressões, ameaças e incitações à violência contra autoridades e instituições
democráticas, não
pode ser tomada como um fato isolado. Não se trata da ação de um radical
livre. Ela se deu num contexto mais amplo, que envolve inúmeras manifestações
presidenciais hostis a valores e princípios democráticos, uma crescente tensão
entre lideranças do Exército e o STF, assim como uma guerrilha permanente nas
redes sociais contra as instituições democráticas.
Nesse
sentido, o Supremo não teve escolha que não cumprir sua missão de “guarda” não
apenas do texto, mas do sistema constitucional como um todo. Um parlamentar não
pode se beneficiar de uma prerrogativa democrática, como a imunidade
parlamentar, para destruir a própria democracia. Essa prerrogativa apenas
se justifica para que os legisladores possam exercer livremente suas funções
dentro do marco democrático. Se a utilizam como arma, para destruir o regime
constitucional, perdem o direito a essa proteção. Evidente que a decisão é
passível de críticas e qualificações. Mas, no presente momento, a omissão do
Supremo seria inaceitável.
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Ao completar 100 anos, a Folha se demonstra, mais do que nunca, essencial. Agradeço pelo privilégio de participar dessa jornada em favor do pluralismo, da objetividade e da democracia.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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