Não
teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, mas atingimos a marca
de 250 mil
Já
estava me preparando para ser vacinado quando as vacinas acabaram. Foi aí que
descobrimos que, na estupefaciente gestão do general Placebo no Ministério da
Saúde, a vacinação é regida por dois calendários, como o tempo já foi em
priscas eras. Pelo calendário juliano, quando há vacinas disponíveis, e pelo
calendário gregoriano, quando elas acabam e ainda não têm data para chegar. Daí
a máxima romana “sine vaccinus, sine die”, cunhada antes da invenção da
primeira vacina.
E
assim as vacinações no Rio foram jogadas para as calendas. Ainda bem que para
as calendas romanas, não para as gregas. Será que nas calendas de março
saberemos quando, pelo calendário gregoriano, levaremos nossa redentora
picada?
Pior do que essa espera, possivelmente passageira, e as justificadas incertezas relativas à segunda dose foi tomar conhecimento das descaradas mentiras sobre a performance de Bolsonaro durante a pandemia que a ministra Damares e o chanceler Ernesto Araújo tentaram vender na ONU. Ficaram só na tentativa porque ninguém lá fora acredita mais em nada que diga, faça ou prometa fazer de bom o ogro que nos governa, exaspera, envergonha, e concentrou no extermínio seu mais eficaz programa de corte de gastos na Previdência.
Não
menos desalentadora foi a constatação de que a Bolsa de Valores se sensibiliza
muito mais com uma troca no comando da Petrobrás pelo presidente da República
que seus investidores ajudaram a eleger do que com as ininterruptas e
recordistas altas na contagem de mortos e infectados pela covid, no País. Não
teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, basofiou o capitão
negacionista em abril do ano passado. Atingimos a marca de 250 mil mortos esta
semana; 50 mil só nos últimos 48 dias – e vacinamos apenas 3% da população.
Se
alguma coisa o presidente sabe fazer, e bem, é mentir e tirar o dele da reta.
“Não sou coveiro”; “Não sou profeta”; “Não compro seringas”. Pilatos ao menos
lavava as mãos. O capitão nem sequer usa máscara.
A
fulminante queima de ações da BR também veio corroborar a teoria de que a
matança em curso, se não faz parte de um maquiavélico projeto político e
econômico do bolsonarismo, como a aniquilação da cultura e da educação,
desmoralizou em definitivo o chavão de que “as nossas instituições estão
funcionando”. Se estivessem, ou pelo menos o STF estivesse, a pleno vapor, o
nosso Napoleão de hospício já estaria na ilha de Elba da nossa
imaginação.
Verdade
que o ministro Alexandre de Moraes se tem comportado com o destemor que seu
cargo exige, mas Dias Toffoli, Luiz Fux e Gilmar Mendes, conforme salientou na
terça-feira o comentarista político Bernardo de Mello e Franco, facilitaram o
serviço para a chicana que culminou com a anulação das quebras de sigilo
bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro, no inquérito das rachadinhas. Toffoli e
Fux travaram a investigação por cinco meses, e Mendes abriu a gaiola para
Fabrício Queiroz, o factótum da familícia.
Comprado
o Legislativo, cooptadas e neutralizadas as Forças Armadas mediante cargos,
subsídios, promessas, leite condensado e claque em formaturas de cadetes,
pergunto: quais instituições ainda funcionam normalmente nestas bandas?
Por
encarnar e afiançar a “ultima ratio” de qualquer país que as possua, as Forças
Armadas (sim, mais de dez nações sobrevivem sem o seu concurso) deveriam
preservar-se de aventuras como foram os golpes de que participaram desde a
Proclamação da República. O que pretendia impedir a posse de Juscelino
Kubitschek, em 1955, foi só uma (ou a) exceção à regra justamente porque um
oficial do Exército, o marechal Henrique Teixeira Lott, e sua excalibur da
legalidade melaram a tempo a conjura udenista.
Quando
vejo, leio ou ouço alguém lamentar a escassez ou mesmo ausência, hoje, de
políticos e outros figurões civis de alto nível, sempre me vem à lembrança a
figura do marechal. Com ele, nenhum golpista tirava farofa. Que reação lhe
provocaria um confesso autogolpista como Bolsonaro? Que atitude teria face à
fascistoide ameaça do general Villas-Boas ao STF, em abril de 2018?
O
ator, humorista e cronista Gregório Duvivier desenvolveu uma tese que, em
outras cabeças, inclusive na minha, já andou caraminholando. Ao contrário do
que se pensa, o presidente não protege e prestigia além da conta os seus
ex-colegas de farda, notadamente os da arma em que fez carreira, o Exército,
mas, na verdade, os rebaixa e desmoraliza. Ao lhes dar emprego e funções que
exigem especial capacitação, expõe-lhes a incompetência e engorda as
desconfianças de que suas nomeações são menos frutos de uma ineludível
promiscuidade corporativista do que das limitações sociais impostas pela vida
em caserna. Azar nosso se o capitão só se dá com milicos.
Para
Duvivier, Bolsonaro está se vingando do coronel que o humilhou, reprovando-o
por sua “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio”, de outro oficial que
condenou sua “excessiva ambição em realizar-se financeiramente” e, acrescento
eu, do general Ernesto Geisel, que o considerava “um mau militar”.
Não
sei se concordo com a hipótese de que nem décadas de propaganda antimilitar da
esquerda causaram mais estrago na imagem do Exército do que a sanha
empregatícia do presidente, mas é possível que sim. Já a suspeita de que só
agora, com meio século de atraso, o capitão cumpre uma missão que lhe teria
sido delegada pelo capitão Carlos Lamarca, não é, como toda blague, para ser
levada a sério. É para rir.
Ria,
enquanto o golpe não vem.
*É jornalista e escritor, autor de ‘Esse mundo é um pandeiro’
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