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Folha de S. Paulo
Saída
é persistir no ceticismo, único caminho para algo próximo ao ideal da
objetividade
Certa
vez, escrevi aqui, em resposta ao excelente João Pereira Coutinho, que minhas
críticas simétricas ao governo israelense e ao movimento de boicote e
desinvestimento contra Israel não me colocavam “em cima do muro”.
É que os supostos dois lados são o mesmo: uma frente tácita contra a paz em
dois Estados. A
Folha completa 100 anos diante de uma encruzilhada. Torço para que
escolha o jornalismo —ou seja, a recusa às narrativas fáceis dos “dois lados”.
O segredo da moderna Folha,
criada por Otavio Frias Filho, encontra-se no ceticismo ativo. No aniversário
centenário, Flavia
Lima, a ombudsman, sugeriu renunciar “à ideia de ‘polarização’ para equiparar a
extrema direita e a esquerda”, pois a segunda “não transpôs os limites
democráticos e da civilidade” (Folha, 21.fev). De fato, há diferenças.
No plano circunstancial, é incorreto equiparar o Bolsonaro
que sonha com o AI-5 com o Lula que rejeitou dobrar a lei para obter
um terceiro mandato. Mas, na esfera da filosofia política, o apoio inabalável a
ditaduras que torturam e matam aproxima os “dois lados”. É patriotismo de
aldeia minimizar o problema sob o pretexto de que diz respeito a países
estrangeiros, não a nós. O jornalismo vive da liberdade.
Os
“dois lados” não são idênticos. Bolsonaro sempre odeia a imprensa independente;
o PT, de vez em quando. Marilena Chaui escreveu sem parar na Folha durante o governo
FHC —mas parou de brincar quando o jornal cumpriu sua missão na cobertura do
escândalo do “mensalão”. Fernando Haddad tinha ciência do apoio da Folha ao golpe de 1964
quando aceitou escrever colunas na página 2 —mas, indignado com um editorial
que registrava seu papel eleitoral de “poste de Lula”, invocou aquele fato,
velho de 55 anos, para encerrar a colaboração.
Bolsonaro,
se pudesse, fecharia os jornais com “um cabo e um soldado”. O PT preferia o
“controle social da mídia”, isto é, a intimidação por meio de movimentos
sociais. Depois do impeachment, em resolução oficial, o partido lamentou que
seus governos não tivessem levado a cabo a ideia. Franklin Martins, secretário
de Comunicação de Lula, tinha um plano mais sofisticado: convencer as teles,
concessionárias de serviço público, a adquirir o controle dos principais
veículos jornalísticos. Dilma Rousseff interrompeu o projeto, um gesto
democrático pelo qual nunca foi elogiada o bastante.
Interpreto a ascensão de Bolsonaro como fruto do somatório da catástrofe
econômica dilmista com a ofensiva ilegal do Partido dos Procuradores contra o
sistema político. Mario Vitor Santos, ex-ombudsman, opta por ignorar a política
econômica que armou a depressão, adotando o cânone interesseiro do PT. Nessa
linha, pede autocrítica do jornal pela cobertura da Lava Jato, que teria
conduzido ao “golpe judicial-parlamentar contra Dilma Rousseff, à proibição da
candidatura Lula e, afinal, à eleição do próprio Bolsonaro”. A “polarização”
existe —e dirige o olhar para um ponto fixo.
A ex-ombudsman Renata Lo Prete toca no nervo sensível ao identificar a “bolha
digital” na qual vivem os jornalistas. “Somos cada vez mais conduzidos por
nossos hábitos online. O algoritmo incentiva a repetição: ir aos mesmos endereços,
consultar as mesmas vozes, ouvir os mesmos argumentos.” Há consequências:
“Quando se limita a ouvir a bolha, o jornalista tende a produzir para a bolha,
esperando o aplauso dela”.
A imprensa que não se vende tem ojeriza ao bolsonarismo. A Folha de hoje, aos 100,
não é a de 1964. Descarte a hipótese de que ela venha a procurar o aplauso da
“bolha” governista. O perigo real está em ceder aos encantos da “bolha do bem”,
para não ficar “em cima do muro”. A saída é reconhecer que, do ponto de vista
do jornalismo, esse muro não existe. E, fora da bolha, persistir no ceticismo,
único caminho para algo próximo ao ideal da objetividade.
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