A
covid-19 é o mal imediato, mas o problema mais profundo está na visão arcaica,
míope e populista de nosso presidente
O
Brasil chegou ao seu pior momento da pandemia e o governo Bolsonaro tem apenas
sabotado o país. Milhões de casos, milhares de mortes, sistema de saúde em
colapso, aumento da pobreza e da desigualdade, além do confronto com
governadores, prefeitos e mercado, tudo de uma vez só. Esse é o retrato atual
da nação. Mas é possível ver a luz do fim do túnel e imaginar que no segundo
semestre, após a vacinação de boa parte da população e com os ventos positivos
da economia internacional, sairemos do momento mais crítico da crise. O
problema é que o dia seguinte da covid-19 deixará o rei nu, mostrando que o
presidente não tem a menor ideia do que fazer para enfrentarmos os desafios do
século XXI.
Muitos
analistas já estão apresentando um cenário pós-pandemia alvissareiro, com
melhor desempenho econômico em 2022. Por esta ótica, a crise sanitária da
covid-19 é o “bode na sala”: basta retirarmos esse bicho que nos incomodou
tanto que tudo voltará ao normal. Trata-se de uma visão míope, que olha apenas
para o curto prazo.
Há dois grandes erros nesta percepção de que a pandemia é apenas o “bode na sala”. O primeiro deles deriva do fato de que haverá sequelas da crise impulsionada pela covid-19. Não será fácil apagar a dor dos parentes que viram seus próximos morrerem, das pessoas que sofreram com a doença, daqueles que perderam emprego ou tiveram sua vida virada de cabeça para baixo. A vacinação em massa e o impulso externo têm boas chances de ativar a roda da economia até o fim do ano, mas as taxas de desemprego dificilmente voltarão ao patamar anterior à eleição de Bolsonaro.
Uma
das sequelas da crise é o aumento, ainda em curso, do contingente de
descontentes que não mudarão sua visão apenas com a melhoria do cenário
econômico. Puxando esse processo, há uma parcela significativa da população que
avalia muito mal a gestão da política de saúde, algo que foi catapultado pelo
fracasso inicial no processo de vacinação. Na verdade, consolidou-se num
patamar próximo à metade do eleitorado, uma visão negativa sobre a capacidade
de o governo gerir qualquer coisa. O fracasso não ocorreu apenas no plano
sanitário. Ele também é nítido, especialmente para a população mais pobre, na
política educacional, que foi abandonada por um MEC que nem consegue gastar o
dinheiro que tem. A sensação de incompetência também aparece em outros setores,
como meio ambiente e cultura, por exemplo, nos quais o bolsonarismo só fez por
destruir.
Assim,
além do radicalismo dos valores e da lógica política de guerra, o modelo
bolsonarista caracteriza-se hoje, para grande parte da população, como um
governo de incompetentes. Há uma enorme lista de ministros e auxiliares que são
reconhecidos pela opinião pública como desastrosos. Mesmo que a economia seja
puxada um pouco para cima, quase que naturalmente, pelo fim da pandemia, não
parece haver muito espaço para Bolsonaro ampliar seu eleitorado por meio de
políticas públicas.
Não
por acaso a sua presidência alicerça-se numa concepção que independe ou é
contraditória com uma lógica estruturada de políticas públicas. Bolsonaro busca
legitimidade no terreno dos valores tradicionais, na criação de inimigos para
seu séquito de apoiadores odiar e, cada vez mais, em medidas populistas que não
são sustentáveis ao longo do tempo, mas que geram um alívio imediato em
públicos-alvo importantes do bolsonarismo. Todo o debate recente sobre os
preços dos combustíveis, com a mudança abrupta na gestão da Petrobras e a
criação de um paliativo tributário, tem como objetivo contentar momentaneamente
caminhoneiros, motoristas de aplicativos e afins. O que será feito para
garantir no longo prazo essa política está fora do alcance do populismo
bolsonarista.
Em
poucas palavras, a crise da covid-19 revelou claramente que o governo Bolsonaro
é adepto de um populismo imediatista, pouco preocupado em construir políticas
públicas consistentes e bem estruturadas, seja porque seleciona basicamente
gestores incompetentes, que estão lá porque têm juízo de obedecer, seja porque
o bolsonarismo não tem nem um diagnóstico nem um plano para transformar o
Brasil.
A
falha da visão otimista alicerçada na teoria da pandemia como “bode na sala”
vai além de não perceber as sequelas deixadas pela gestão populista da crise da
covid-19. O maior problema do bolsonarismo reside na ausência de uma agenda
para enfrentar os desafios do século XXI. O governo oscila entre a defesa de
ideias completamente ultrapassadas e a proposição de ações puramente
imediatistas. Trata-se um populismo que bebe em visões arcaicas de sociedade e
do modelo político - incluindo aqui sua defesa nefasta da ditadura militar -,
ao mesmo tempo que procura saídas fáceis para resolver as demandas do
eleitorado, como mudanças no Código Nacional de Trânsito como forma de
“libertar” os motoristas ou a ampliação gigantesca do uso de armas como forma
de garantir a paz do “cidadão de bem”.
A
opinião pública em geral e as elites econômica e política continuam discutindo
as ações e os factoides de curto prazo criados por Bolsonaro, mas deixam de
lado a ausência de uma agenda minimamente antenada com as principais questões
contemporâneas. Esse fenômeno já vinha de antes, porém, aprofundou-se com o
bolsonarismo: perdemos a capacidade de pensarmos o futuro do país e de
dialogarmos com as principais tendências internacionais.
Por
isso, quando sairmos da fase mais crítica da pandemia, precisamos elencar quais
são os grandes desafios para os quais devemos nos preparar nos próximos anos.
Cinco deles serão decisivos como passagem a um século XXI melhor: questão
ambiental, educação, novas formas de desenvolvimento econômico, combate às
desigualdades e aperfeiçoamento da governança democrática.
A
temática ambiental é relevante para todo o mundo, todavia, é muito mais
importante para o Brasil, por causa de nossa riqueza e diversidade de
ecossistemas, especialmente da Amazônia. O meio ambiente tem que se transformar
num ativo para o desenvolvimento do país. Qualquer outra perspectiva é
anacrônica e nos levará a perder apoio econômico e geopolítico.
O
segundo desafio é o da educação. O Brasil precisa, aqui, fazer duas tarefas ao
mesmo tempo: acabar com as mazelas derivadas de um longo tempo de letargia
educacional e, sobretudo, criar pontes para o futuro. Professores e gestores
mais qualificados e em constante renovação, métodos didáticos inovadores que
ampliem as possibilidades formativas dos alunos, formas colaborativas de
gestão, parcerias com a sociedade e um modelo educacional comprometido com a
maior equidade das crianças e jovens, eis os pontos que deveriam ser discutidos
agora. Mas, no momento, o MEC está completamente ausente deste debate.
Explorar
as potencialidades econômicas do país de uma forma criativa, antenada com as
tendências futuras e captando as singularidades brasileiras deveria ser uma
tarefa central hoje. Várias frentes de produção de riqueza podem surgir:
atividades culturais e de entretenimento, melhor exploração do meio ambiente
pela agroecologia e pelo turismo sustentável, empreendedorismo das periferias,
criação de novos serviços com tecnologia da informação, reorganização dos
grandes centros urbanos, uso de fontes renováveis de energia, avanço da
infraestrutura sob bases mais modernas, para ficar em alguns dos temas mais
contemporâneos e fascinantes. Há um enorme espaço para novas formas de
desenvolvimento, que podem ativar e renovar o restante da economia.
O
combate às desigualdades é essencial para mudar a cara do Brasil no século XXI.
É preciso atacar as profundezas desse fenômeno, ampliando as oportunidades para
um enorme contingente de pessoas que estão alijadas do processo de
desenvolvimento. Não se trata de políticas compensatórias de curto prazo. Em
vez disso, são necessárias ações estruturais, baseadas num planejamento de
longo prazo. A redução das iniquidades de diversas ordens - de renda, racial,
de gênero, regional - vai não só tornar o país mais justo e solidário (algo
essencial para a melhoria da ação coletiva, como a pandemia comprovou), como
também vai aumentar o espaço sustentável de desenvolvimento econômico.
O
quinto e último desafio é aperfeiçoar e fortalecer a governança democrática do
país. Isso passa pelas estruturas institucionais mais gerais, como as eleições,
as relações entre os Poderes e a responsabilização da administração pública,
bem como pela cultura política, incentivando o diálogo social permanente e o
reforço das formas solidárias de ação coletiva. Ter mais e melhor democracia
tem efeitos positivos sobre todas as coisas. Basta pensar que novas pandemias
podem surgir no futuro, e o Brasil não poderá repetir a vergonha que foi ter
conjunto enorme de indivíduos atuando de forma egoísta, sem respeitar o
distanciamento social e ignorando o uso de máscaras, o que se somou a um líder
nacional que não teve empatia com os milhares de cidadãos mortos.
Começar
a refletir, debater e planejar para atuar nestes cinco desafios é tarefa
urgente. O pós-pandemia, neste sentido, é muito mais complexo do que o debate rasteiro
que tem sido feito no Brasil. Pior: Bolsonaro não quer dialogar ou mesmo ignora
os desafios do século XXI. A covid 19 é o maior mal imediato, mas o problema
mais profundo do país está na visão arcaica, míope e populista de nosso
presidente.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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