Os
ziguezagues de Bolsonaro no comando do governo federal, dentre eles seus
desconexos movimentos justificadamente interpretados como mais um retorno a
políticas de caráter estatizante, evidenciados recentemente na desastrada
intervenção na Petrobrás, recolocaram um velho debate no centro da conjuntura:
a suposição de um “retorno ao populismo” que por sua vez contestaria as até
então declaradas inclinações pelo liberalismo como a principal orientação da
política econômica governamental. De repente, tudo virou de pernas para o ar e
as acusações de populismo a Bolsonaro passaram a ser vocalizadas
insistentemente e se combinaram com estapafúrdias similitudes com o comunismo e
o fascismo — tudo junto e misturado! Num ambiente como esse, as discrepâncias
entre conceitos são chocantes, o que torna imprescindível, pelo menos
brevemente, revisitar a temática do populismo a partir de uma perspectiva mais
crítica e esclarecedora.
O populismo não é um conceito simples como vem aparecendo na verborragia que tal debate ensejou. Ele é reconhecidamente um conceito problemático por sua ambiguidade, imprecisão, vagueza, generalização, elasticidade, subjetividade etc. Para início de conversa, trata-se de um neologismo que visou descrever as iniciativas de “ida ao povo” por parte de opositores a regimes autocráticos que se sustentavam em sociedades fechadas ou pouco dinâmicas. A historiografia registra o nascimento do conceito na tradução para inglês (populism) do movimento narodnik na Rússia do final do século XIX. A ele se consagra a pré-história do conceito, no mesmo momento, aliás, que o termo seria utilizado para identificar o movimento político de pequenos e médios produtores rurais no interland norte-americano. Depois da Rússia, como escreveu José Aricó, a América Latina tornou-se a “grande pátria do populismo”.[1] Foi nela que o conceito fincou raízes e se generalizou, a ponto de ser utilizado por historiadores e cientistas sociais como a denominação de um período da sua história.
Em
maio de 1967, numa conferência proferida em Londres, Isaiah Berlin chamou
atenção para o fato de que o “complexo de Cinderela” rondava o conceito de
populismo.[2] Mobilizando
os componentes da fábula, Berlin afirmava que a essência do populismo, seu
núcleo fundamental, não se encontrava na realidade, mas no comportamento
intelectual de se buscar, por toda a parte, o chamado “populismo puro,
verdadeiro, perfeito”, tal como o príncipe que, naquela estória, sapato em
riste, vagueava errante em busca do pé da donzela que o encantara. Mesmo que
sua ocorrência tivesse se dado em um único lugar, não importando sua vigência
no tempo, o que se buscava pelo nome de populismo era, na verdade, a realização
de um “ideal platônico”. Por ser assim, o populismo “realmente existente” seria
sempre uma versão incompleta ou uma perversão. Apesar disso, o populismo
continuou a ser, nas ciências sociais, no jornalismo ou na linguagem política,
uma referência conceitual para caracterizar lideranças, movimentos ou regimes
políticos, da mesma forma que, sem assumir-se como tal, correntes políticas
diferenciadas continuariam a expressar a perspectiva de sua realização por meio
de estratégias variadas de ação política.
O
populismo é, portanto, um constructo e sua elaboração teórica
resultou de um movimento reflexivo que visava explicar a inadaptação das
camadas populares, advindas do campo, à vida urbana que se impunha de maneira
irrefreável na América Latina desde a década de 1930. A teoria sociológica
registrou uma conexão entre a atitude mental de reação à modernidade dessas
camadas populares e os fenômenos de natureza pré-democráticas que derivavam da
inexperiência política do conjunto da sociedade latino-americana na transição
da sociedade tradicional para a sociedade moderna. Os líderes que tiveram o
respaldo político dessas camadas populares e se tornaram os principais
protagonistas dos processos de superação da forma política de dominação
oligárquica foram chamados de populistas, ainda que nenhum deles tenha assumido
tal identificação.
O
contexto histórico do populismo latino-americano
Correlato
aos acontecimentos mundiais, o populismo emergiu, na América Latina, num
cenário de crise do liberalismo e de ascensão de massas. É, portanto, um
conceito construído para descrever e compreender um contexto de transição
histórica, de crise e redefinição das relações entre Estado e sociedade.
Enquanto governos ou regimes, o chamado populismo assumiu, em termos gerais, a
perspectiva de construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente
orientada pelo Estado, ao mesmo tempo em que normatizou a “questão social”,
incorporando as massas ao mundo dos direitos. Superou o liberalismo das
oligarquias por meio de uma “fuga para frente” cujo objetivo foi o de realizar
transformações sem rupturas violentas, evitando o que havia ocorrido nos
processos capitalistas e socialistas de industrialização retardatária. O que se
qualifica de populismo latino-americano atuou, portanto, no sentido de promover
a superação do atraso, sem revolução, garantindo, pela primeira vez, que o tema
da cidadania fosse equacionado pela política nesta parte do Ocidente.
No
essencial, o populismo latino-americano do século XX interditou a via de
passagem “clássica” à modernidade, caracterizada pela integração autônoma das
classes populares às estruturas políticas da democracia liberal de perfil
europeu. Ao invés disso, conectou desenvolvimento econômico e espaços
institucionalizados de integração político-social de massas, reservando ao
Estado um papel central. Essa configuração foi compreendida pelas ciências
sociais como a principal razão de a sociedade latino-americana expressar claros
limites para vivenciar a modernidade. Um diagnóstico poderoso e de muitas
implicações: mais do que um conceito, o populismo foi concebido e difundido
como uma teoria explicativa a respeito dos descaminhos da modernidade
latino-americana. Esta visão acabou produzindo uma cristalização cognitiva,
fazendo com que a palavra populismo se generalizasse como representação de um
passivo insuperável.
Desde
o pós-guerra, no século passado, uma marca pejorativa acompanha o populismo.
Ele seria o “outro” repugnante, uma manifestação aberrante e anormal, uma
síndrome, um espectro ou mesmo uma recorrente “tentação” que acompanha os
atores políticos latino-americanos como via para alcançar e se manter no poder.
Desde o final do século XX, cristalizou-se a ideia de que as sociedades
latino-americanas necessitariam de uma ruptura histórica antipopulista
necessária para “implantar” ou mesmo fazer avançar o capitalismo. Numa
abordagem mais ordinária, o terreno dessa aguardada “ruptura” estabeleceria
recorrentemente a contraposição entre liberalismo e estatismo,
independentemente de quais sejam as questões em tela no debate público.
O
populismo, entre um século e outro
Do
final do século XX para as duas primeiras décadas do século XXI constata-se uma
deriva do populismo que dilui o conceito ou a teoria explicativa que ele
significou no passado, reduzindo-o apenas a um termo utilizado de maneira
instrumental como identificador de uma política sempre qualificada como
negativa. Assim, se instaura na opinião pública e entre os analistas da
política contemporânea uma indiferenciação que se baseia quase que
exclusivamente nos comportamentos políticos de líderes que são chamados, sem
muito rigor, de populistas. Essa indiferenciação induz a que líderes políticos
sejam caracterizados como populistas independentemente da identificação,
semelhança ou mesmo proximidade entre eles. Assim, líderes políticos como
Berlusconi, Lula, Chávez/Maduro, Trump, Beppe Grillo, Macron, Matteo Salvini ou
Renzi, Orbán, Bolsonaro, Obama, todos eles, foram ou são, em alguns momentos ou
por diferenciados comentadores, qualificados como populistas. Se o populismo do
século XX foi acusado de uma polissemia insuperável, o populismo do novo
milênio não fica atrás.
Independentemente
de ser entendido como um fenômeno de direita ou esquerda, o que a maior parte
dos analistas observa é que, nesse início de milênio, vive-se uma espécie de
“revanche do populismo”, quer como resultado imprevisto da luta contra os
regimes autoritários na América Latina quer como resultado de uma crise
profunda não apenas das democracias consolidadas, na Europa, como também
do welfare state, sua base de sustentação — os EUA de Trump se mostrou um
caso particular, embora significativo. Outro elemento a ser considerado são os
desajustes da globalização que acabaram por gerar uma reação nacionalista que
assumiu, em muitos países, formas extremistas, quase todas elas caracterizadas
como populistas. O populismo haveria ressurgido como uma força regressiva no
político, com seus rastros de afronta aos direitos humanos, repressão a
opositores, perseguição a juízes e ataques à imprensa e às instituições. Em
países nos quais a ordem constitucional democrática é mais legitimada, a
resistência da sociedade e das instituições políticas tem sido maior,
contrapondo-se a esse tipo de movimento extremista que, em termos mais
apropriados, não deveria ser qualificado como populismo.
De
uma foram ou de outra, buscando isolar o populismo enquanto um fenômeno
consonante com o nosso tempo, inúmeras interpretações têm sido formuladas
procurando, invariavelmente, encetar o populismo na chamada “crise da
democracia”.[3] E,
nesse plano, a questão passa a ser pensada a partir da essencialidade da
construção da estrutura de poder nas sociedades contemporâneas.
A
interpretação mais virtuosa por sua densidade teórica é reconhecidamente a de Ernesto
Laclau.[4] Entusiasmado
com os chamados governos de esquerda que se espalharam por diversos países
latino-americanos no início do milênio, Laclau não hesitou em construir uma
potente analogia. Sem rodeios, afirmou: “há um fantasma que assombra a América
Latina, esse fantasma é o populismo”. A paráfrase de Marx sugere claramente que
Laclau pensava em reservar ao “populismo atual” um lugar semelhante ao que Marx
imaginou para o comunismo na Europa dos idos de 1848. O cenário de crise da
democracia ou de vigência de uma pós-democracia seria o terreno propício para
isso.
Para
Laclau, o populismo do século XXI expressaria uma identidade integral entre a
instituição do “povo-sujeito” e a política, anulando a ideia de representação
bem como a noção de “governo do povo”, entendida como uma contradição em
termos. A razão populista e a razão política, como afirmou E. Laclau, seriam
idênticas, o que desloca para o plano secundário a deliberação racional vigente
nas democracias ocidentais. O termo populista, nesta leitura, seria aplicável a
qualquer orientação ou movimento político “antissistema”, o que faz emergir a
tese de que contra um “populismo de direita” caberia a construção de um
“populismo de esquerda”. Supõe-se, nesse caso, que o populismo seja capaz de
estabelecer a passagem para a construção de uma democracia direta e
participativa, superior à democracia representativa, entendida como obsoleta e
ineficiente. A identificação, à esquerda, com o bolivarianismo seria direta e
imediata; à direita, o iliberalismo de Viktor Orbán obviamente não estaria
distanciado daquele objetivo.
Em
qualquer dos casos, a contraposição à modernidade é explícita porque se mostra
avessa ao indivíduo em sua expressão autônoma, submetido a um desígnio abstrato
advindo do “povo-Nação” ou a um regresso anacrônico à noção de “pátria”. Nenhum
traço ou sinal de uma “modernidade alternativa”, entendida como democrática,
progressista e emancipadora. Contraposta à modernidade a perspectiva analítica
laclauliana poderia se confundir com algo que Félix Patzi, ex-ministro da
educação da Bolívia, sintetizou magnificamente: o populismo seria então,
justificadamente, “uma espécie de autoritarismo baseado no consenso”. Estaria
aí seu maior equívoco e o seu insuperável limite.
Como
afirmou Margaret Somers, “conceitos são palavras em seus contextos”,[5] o
que talvez explique as razões para que, nos dias que correm, seja difícil
compartilhar uma crítica ao populismo, tal a aceitação e a ligeireza com que
ele é utilizado, sejam quais forem as intenções de seus vocalizadores. Mais
produtivo seria se buscássemos construir um debate público em que pudéssemos
identificar processos e atores políticos pelo que realmente são. Certamente
oxigenaria o já infestado ambiente de degradação em que vivemos.
https://horizontesdemocraticos.com.br/author/aggio/
Notas:
[1] ARICÓ,
José. La cola del diablo. Caracas: Nueva Sociedad, 1988.
[2] Citado
em ALLOCK, J. B. “Populism, a brief biography”, Sociology, 1971, p. 385,
apud MACKINNON, M. M.; PETRONE, M. A. (orgs.) Populismo y neopopulismo en
América Latina. Buenos Aires: Eudeba, 1988, p. 11.
[3] PANIZZA,
Francisco (compilador). El populismo como espejo de la democracia. Buenos
Aires: Fonde de Cultura Económica, 2009.
[4] LACLAU,
Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
2005.
[5] SOMERS,
Margaret. “Que hay de político o cultural en la cultura política y en la esfera
pública?”, Zona Abierta, 77/78, 1996/97, p. 31-94.
(Esse texto é uma publicação conjunta e simultânea com a revista eletrônica Estado da Arte, vinculada ao jornal O Estado de São Paulo).
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