- João Luiz Sampaio, Especial para o Estadão
Em
setembro de 2013, o jornalista Roberto Simon embarcou em direção ao Chile para
acompanhar os eventos ligados aos 40 anos do golpe contra Salvador Allende. Na bagagem, no
entanto, levava um objetivo adicional: mergulhar nos documentos da chancelaria
chilena que permitissem levantar informações sobre o papel do Brasil no
processo e a respeito da relação da ditadura militar brasileira com o regime
militar instalado pelo general Augusto Pinochet.
De volta a São Paulo, Simon publicou no Estadão uma série de reportagens que esclareciam episódios pouco claros, envolvidos em mitos que seus textos derrubaram. O governo brasileiro não apenas havia conspirado para a derrubada de Allende, como ofereceu auxílio a Pinochet, trabalhando inclusive na repressão a esquerdistas. E o fez não a mando dos EUA, como se costumava repetir: a presença no Chile atendia uma clara política de Estado preocupada com os caminhos da política no país vizinho.
A
partir das pesquisas originais, Simon voltou ao Chile e fez ainda buscas em
acervos no Brasil e nos Estados Unidos, como pesquisador do Wilson Center, em
Washington. Completou o material documental com depoimentos e entrevistas
realizadas com diversos personagens da época. E o resultado sai agora em forma
de livro com o lançamento de O Brasil
Contra a Democracia: a Ditadura, o Golpe no Chile e a Guerra Fria na América do
Sul (Companhia das Letras).
“A ideia era lançar o livro dois anos depois, em 2015, mas, a cada porta que se abria, outras cinco apareciam, e era preciso seguir novas trilhas”, conta Simon em entrevista ao Estadão. “No caso brasileiro, boa parte dos documentos desapareceu. O adido militar na embaixada em Santiago, por exemplo, mandava comunicações ao governo brasileiro três vezes por semana e quase não há registros disso no Arquivo Nacional. Em outros casos, foi preciso recorrer à Lei de Acesso à Informação para conseguir documentos. No Chile, muitos papéis referentes aos militares também sumiram, mas na redemocratização eles tiveram a sábia decisão de retirar o sigilo de todos os documentos”, lembra o autor. Já nos Estados Unidos, muitas informações foram conseguidas a partir de pedidos de liberação de documentos até então sigilosos.
Simon
entrevistou diversos exilados brasileiros e também figuras então ligadas ao
governo e ao Exército nacionais, como um ex-capitão da Força Aérea Brasileira,
que pediu para não ter o nome revelado e é identificado no livro como Capitão
Pinto. Seu depoimento é um dos elementos a contribuir com a narrativa a
respeito de episódios marcantes, como a presença brasileira no Estádio Nacional
de Santiago, que se transformou em enorme prisão e centro de repressão e
tortura aos inimigos da ditadura chilena.
“A
presença de agentes brasileiros no Estádio Nacional era comentada desde os anos
1970 na imprensa americana e europeia, ainda que não tenha aparecido nos
jornais brasileiros por conta da censura”, explica Simon. “Mas o que tínhamos
sobre isso eram depoimentos e não documentos que comprovassem o que aconteceu
naquela época.” Ele, no entanto, descobriu, nos planos de voo do Correio Aéreo
Nacional, que os militares usavam para mandar comunicações diplomáticas, um
pedido expresso de desembarque em Santiago de um avião sem a lista de
passageiros. E a chegada do voo coincide com um telegrama do cônsul brasileiro
dizendo ter encontrado cinco oficiais brasileiros no Estádio Nacional, versão
corroborada pelo Capitão Pinto.
Política
de estado. A narrativa de O Brasil
Contra a Democracia começa em 1969, um ano antes da eleição de
Allende como presidente do Chile. Com isso, mostra que o Brasil já estava
atento à situação política chilena e defendia a ideia de que apenas um golpe
seria capaz de derrubar o presidente.
“A
ditadura brasileira ajudou a golpear a mais longeva democracia de seu entorno
geográfico e, no lugar, instalar um regime cuja sanguinolência e crueldade
praticamente não tinham precedentes na América do Sul moderna. Essa intervenção
não foi fruto de ações episódicas e autônomas de alguns zelotes dentro da
ditadura, mas uma política de Estado, a qual percorria uma cadeia de comando
desse a alta burocracia de Brasília até as raízes do sistema”, escreve Simon.
Ele
reproduz no livro, por exemplo, um documento do governo americano em que é
narrada uma conversa entre os presidentes Richard Nixon e Garrastazu Médici, na
qual o brasileiro fala que havia um intercâmbio com oficiais chilenos para a
derrubada de Allende. Simon mostra também como Câmara Canto, embaixador brasileiro
em Santiago, mantinha contato próximo com as Forças Armadas e diversos setores
da sociedade chilena simpáticos ao golpe consumado no dia 11 de setembro de
1973.
Para
Simon, havia dois interesses em especial do Brasil na queda do governo. O
primeiro era geopolítico: o País temia que a chegada dos socialistas ao poder
significasse ameaça direta à segurança nacional. O segundo tinha a ver com o
cenário interno: o País temia que a ideia de união da esquerda que levou
Allende ao poder pudesse se espalhar pelo continente e que exilados tidos como
radicais fizessem do Chile palco do planejamento de uma investida contra o
governo militar brasileiro.
Segundo
o autor, os documentos jogam por terra a noção de que o Brasil operava não por
interesse próprio, mas por determinação americana, reforçada em parte pela
própria esquerda. Ele lembra, por exemplo, a declaração do escritor Gabriel
García Márquez, segundo quem o Brasil se tornara o “braço direito e armado do
neocolonialismo dos Estados Unidos”. “O regime militar brasileiro tinhas suas
motivações para intervir no Chile e dispensava ordens de Washington para
fazê-lo”, escreve Simon, para quem não houve ação articulada e conjunta entre
os países.
“A política anti-Chile dos dois países teve pontos de contato, mas não se entrelaçou, nem mesmo quando Pinochet deu o bote na democracia. Diferentemente do golpe contra Jango em 1964, no Chile de 1973 Washington pôde postergar o reconhecimento oficial da junta militar e deixar os brasileiros tomarem a iniciativa regional”, conclui.
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