sexta-feira, 5 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

País precisa de ações nacionais para conter o vírus – Opinião / O Globo

Março já é o mais cruel dos meses: leitos de UTI faltando, hospitais entrando em colapso, cadáveres se empilhando nos cemitérios. O Brasil é hoje visto como risco sanitário internacional. O ambiente propício à propagação do Sars-CoV-2 tornou o país o laboratório ideal para a evolução de variantes mais contagiosas. Enquanto o darwinismo corre solto, a displicência do Planalto deu origem a reações desencontradas de estados e municípios, cujos governantes, apresentados dia após dia a novos recordes de mortos, têm decretado medidas de restrição mais duras para lidar com a pandemia fora de controle.

O presidente Jair Bolsonaro diz que “criaram pânico”, desdenha as mortes — “chega de frescura, de mimimi; vão ficar chorando até quando?”— e agride quem cobra vacinas —“só se for na casa da tua mãe (sic)”. Diante de tanta grosseria e da omissão irresponsável, secretários estaduais endereçaram à nação um grito de socorro. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) propôs toque de recolher — já em vigor em alguns estados — em âmbito nacional; lockdowns nas cidades em que a ocupação de UTIs ultrapassar 85%; proibição de shows, cultos religiosos e atividades esportivas; fechamento de praias e bares; barreiras sanitárias nacionais e internacionais. Pede ainda o reconhecimento do estado de emergência, recursos extraordinários para o SUS e a volta do auxílio emergencial.

O ministro-general Eduardo Pazuello se revelou um inepto para providenciar vacina aos 212 milhões de brasileiros. Fala em doses em maio, junho, julho, agosto... só que as mortes de março estão aí. A corrida é desigual. De um lado, as variantes avançam à velocidade de Lewis Hamilton. De outro, a campanha de vacinação não sai dos boxes. Em um mês e meio, chegou a 3,5% da população. A lentidão levou prefeitos e governadores a organizar um consórcio para comprar vacinas, à revelia da Federação. Pode ser uma medida necessária diante da inépcia federal, mas é também um lance de desespero. O colapso sem precedentes que toma conta do país demandaria esforço conjunto das três esferas de governo.

Bolsonaro parece, porém, empenhado em confrontar os estados, fragmentando a Federação em momento crítico. A estratégia ficou clara quando ele publicou valores repassados aos estados para combate à Covid-19, irritando até aliados. As transferências são obrigatórias, não dependem do presidente. Bolsonaro já criticara governadores que impõem medidas de restrição, dizendo que deveriam arcar com o auxílio emergencial. O endurecimento das restrições, já necessário antes da alta nas mortes, é hoje dever urgente.

Assim como o projeto aprovado no Senado para facilitar a compra de vacinas de eficácia comprovada. Só na quarta-feira o ministério anunciou estar no fim das negociações para comprar 100 milhões de doses da Pfizer e 38 milhões da Janssen. Ambas foram testadas aqui. A Pfizer ofereceu, em setembro, opção de compra ao governo, que declinou. Bolsonaro insinuou que quem a tomasse poderia “virar jacaré”.

A cada minuto, um brasileiro morre de Covid-19. Segundo a Fiocruz, a situação se agravou em todos os estados. Sistemas de saúde tombam um a um. Do Oiapoque a Chuí, o Brasil de Bolsonaro e Pazuello se transformou num grande matadouro. Ou o país age como uma Federação para derrotar o inimigo, ou seremos arrastados para a mesma vala comum da História.

É absurda a ação de MEC e CGU contra a liberdade nas universidades – Opinião / O Globo

São escandalosos o ofício do MEC à Rede de Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) e a abertura de dois processos na Controladoria-Geral da União (CGU) contra professores da Universidade de Pelotas. Desrespeitam flagrantemente o direito constitucional à liberdade de expressão — e logo no meio universitário, espaço cuja vitalidade depende do amplo confronto de ideias.

O comportamento discreto em comparação com o antecessor não impediu que o ministro da Educação, Milton Ribeiro, tenha terçado outro tipo de arma na mesmíssima “guerra cultural” que Abraham Weintraub travava contra as universidades federais, consideradas um “celeiro de comunistas” pelo bolsonarismo mais delirante.

O MEC do pastor presbiteriano Ribeiro foi inepto para aplicar os recursos reservados ao ensino básico no ano passado, mas não deixou de encaminhar ofício à Ifes pedindo providências para “punir atos político-partidários” nas faculdades. É uma iniciativa, além de descabida, flagrantemente inconstitucional. Em julgamento no ano passado, o Supremo apoiou, por unanimidade, o voto da relatora Cármen Lúcia em favor da liberdade de expressão nas universidades, num processo questionando a proibição baixada por juízes eleitorais contra manifestações partidárias de estudantes nas faculdades durante a campanha de 2018.

Em paralelo, a Controladoria-Geral da União (CGU) instaurou inquérito contra o epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas Pedro Hallal e contra o professor Eraldo dos Santos. O motivo alegado foram as críticas que ambos fizeram ao presidente Jair Bolsonaro numa transmissão que discutia o fato de ele ter rompido a tradição de nomear para a reitoria o primeiro colocado na eleição interna. Por usarem uma rede da universidade, os dois foram enquadrados numa lei que proíbe certas manifestações em repartições públicas.

Tiveram de assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e não serão mais processados. Hallal considera o desfecho positivo, porque significa o arquivamento do processo sem que ele tenha reconhecido qualquer culpa por ofensas a Bolsonaro, a que chamara de “presidente com P minúsculo”. Hallal reafirma que continuará a criticá-lo pela condução desastrosa do enfrentamento à pandemia.

Em que pese o desfecho suave, é evidente que se encontrou uma firula jurídica para tentar intimidar a academia e cercear a liberdade nas universidades. O governo se comporta como se estivéssemos na ditadura, quando elas eram vigiadas pelo Decreto-Lei 477, uma espécie de AI-5 estudantil que previa a expulsão de alunos.

Hallal e Santos foram processados devido a uma representação do deputado Bibo Nunes (PSL-RJ). No caso do ofício do MEC, o próprio Ifes registrou que a corregedoria do ministério pedira para que fossem reprimidos eventos políticos “em face ao recebimento de denúncias”. Sintomático que medidas comparáveis às de Estados de vigilância tentem ressuscitar a figura do “dedo-duro” no meio universitário. 

Algo houve em Brasília – Opinião / O Estado de S. Paulo

Depois de meses de campanha do presidente para desmoralizar as vacinas, o Ministério da Saúde prontificou-se a comprá-las

Algo se moveu em Brasília. Em meio à sensação de caos generalizado – acentuada pela crescente convicção de que o presidente da República, Jair Bolsonaro, é irremediavelmente incapaz de liderar o País em um dos momentos mais dramáticos de sua história –, aparentemente a realidade começa a se impor.

Se são para valer, só o tempo dirá, mas o fato é que as notícias de que o governo federal finalmente comprará vacinas contra a covid-19 e de que o Congresso, com a equipe econômica, impediu manobras ardilosas para furar o teto de gastos em nome do enfrentamento da pandemia mostram que, no limite, o Estado democrático tem seus mecanismos contra a insanidade.

Depois de meses de campanha sistemática do presidente para desmoralizar as vacinas, o Ministério da Saúde prontificou-se afinal a comprá-las. O ministro Eduardo Pazuello anunciou na quarta-feira, dia 3, a assinatura de um contrato para a aquisição de 99 milhões de doses da vacina da Pfizer e também a negociação para a compra de 38 milhões de doses da vacina da Janssen.

O governo havia meses vinha se negando a comprar a vacina da Pfizer, oferecida ao Brasil em agosto do ano passado. Bolsonaro descartara o imunizante dizendo que havia cláusulas abusivas no contrato, como a que isentava o laboratório de responsabilidade por eventuais efeitos colaterais – o que é uma cláusula-padrão em todo o mundo.

Agora, em meio à disparada do número de mortos pela pandemia e ao colapso do sistema de saúde em quase todo o País, situação que ameaça deteriorar ainda mais a popularidade de Bolsonaro – única coisa que lhe importa –, o presidente e seu desastrado ministro da Saúde afinal fizeram o que deveriam ter feito há muito tempo.

Para os brasileiros, pouco importa se Bolsonaro e Pazuello decidiram comprar vacinas por frio cálculo político, ante a pressão crescente da opinião pública e ante a mobilização de governadores e prefeitos para comprar vacinas por conta própria, ganhando pontos com o eleitorado; o fato é que as doses dos imunizantes chegarão ao País e, se forem rapidamente administradas, interromperão a espiral de sofrimento e miséria que tanto aflige os brasileiros.

Do mesmo modo, pouco importa se a PEC Emergencial aprovada no Senado nesta semana está longe de ser a ideal. O importante é que essa medida, que cria as condições fiscais para destravar o auxílio emergencial e outras despesas relativas à pandemia, finalmente deixou a gaveta em que dormitava desde o fim do ano retrasado e agora tramita de acordo com a urgência requerida pelo momento.

Há ainda outro fato relevante: a equipe econômica empenhou-se para desmontar a articulação, patrocinada pelo próprio presidente Bolsonaro, para excluir o Bolsa Família do limite do teto de gastos na PEC Emergencial. A manobra permitiria abrir espaço de nada menos que R$ 34,9 bilhões no Orçamento para emendas parlamentares. Ou seja, era uma maneira de driblar o teto de gastos para aumentar despesas com obras que rendem votos.

A malandragem, que arruinaria de vez a imagem já desgastada do Brasil entre os investidores, foi abortada pouco antes da votação em primeiro turno no Senado.

Assim, a despeito da campanha sistemática do presidente Bolsonaro contra o País, ainda há barreiras para a articulação entre a demência e o oportunismo rasteiro. Não se pense, contudo, que Bolsonaro, de uma hora para outra, vai se tornar adepto da ciência e da responsabilidade fiscal.

Ao contrário, exercitando toda a perversidade de alguém que não teve educação de berço, o presidente, por pressentir que sua reeleição corre risco, dobrou a aposta na incivilidade. Sobre a pressão para comprar vacinas, Bolsonaro discursou: “Tem idiota que diz ‘vai comprar vacina’. Só se for na casa da tua mãe. Não tem para vender no mundo”. E sobre a necessidade óbvia de se adotarem medidas de isolamento para conter o avanço do vírus, Bolsonaro teve o atrevimento de dizer: “Temos que enfrentar nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi, vamos ficar chorando até quando?”.

O País fará bem se deixar o sr. Bolsonaro falando sozinho.

Rota de colisão – Opinião / O Estado de S. Paulo

A equipe econômica tomou uma iniciativa que será contestada pelo STF

O Poder Executivo e o Poder Judiciário estão novamente em rota de colisão. O ponto de discórdia envolve questões no campo do direito do trabalho, que já foram objeto de uma ampla reforma promovida em 2017, no governo de Michel Temer. Sob pretexto de simplificar a legislação trabalhista, a equipe do ministro Paulo Guedes colocou em consulta pública um decreto que abrange 31 textos legais que disciplinam, entre outros temas, normas sobre saúde e descanso semanal dos empregados aos domingos. 

O secretário de Trabalho do Ministério da Economia, Bruno Dalcolmo, afirmou que o texto passou pela análise técnica das áreas jurídicas do Executivo e que ele não muda “um centímetro” a legislação trabalhista em vigor. Mas os magistrados trabalhistas dizem justamente o contrário. Eles lembraram que o decreto institui um Programa Permanente de Consolidação, Simplificação e Desburocratização de Normas Trabalhistas. Também afirmaram que, sob a alegação de desburocratizar os procedimentos de negociação entre patrões e empregados em matéria de descanso e saúde, o decreto suprime alguns direitos trabalhistas. Mas, como não interfere nos direitos patronais, o texto rompe o equilíbrio entre as partes que deve prevalecer nos conflitos coletivos do trabalho. 

Segundo os juízes, o decreto introduz no direito do trabalho inovações que só poderiam ser impostas por lei ordinária, além de abrir brechas que permitem ao governo aumentar a lista de atividades com autorização permanente para o trabalho aos domingos. Em nota técnica enviada à Secretaria-Geral da Presidência da República, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) afirma que a iniciativa da área econômica do governo extravasa em larga escala o poder regulamentar do Poder Executivo em matéria de direito trabalhista. A nota foi endossada pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho e pela Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas. 

O decreto proposto apresenta “um arcabouço jurídico inovador”, com princípios próprios e normas diferentes das previstas tanto na Constituição quanto nas leis ordinárias”, diz a Anamatra. O decreto também promove “alteração da lógica protetiva da legislação trabalhista, em manifesta violação ao processo legislativo”. E ainda recorre propositadamente a “expressões vagas e ambíguas, cuja abertura semântica revela natureza jurídica de princípio normativo, permitindo que o Poder Executivo Federal atue com excessiva discricionariedade na suposta regulamentação dos direitos trabalhistas”. Na conclusão, a nota lembra que “a ampliação indevida do poder regulamentar do Executivo será submetida a controle judicial”. Ou seja, se o decreto for editado, será questionado no Supremo Tribunal Federal (STF). Assim, em vez de estimular o crescimento da economia, a medida criará mais insegurança jurídica, desestimulando com isso a contratação de pessoal pelas empresas. 

Em resposta, o secretário de Trabalho voltou a afirmar que a proposta de decreto não coloca em risco a saúde e a segurança dos trabalhadores, mas cometeu uma grave imprudência. Confessou que, para a área econômica do governo, a revisão das normas trabalhistas “não pode ser orientada apenas pela saúde e segurança do trabalho”, pois “a única maneira de ter risco zero à saúde e à segurança do trabalhador é não ter atividade produtiva nenhuma”. 

As leis trabalhistas precisam ser modificadas no sentido indicado pela reforma de 2017, o que não se pode é atropelar as leis do País, necessariamente aprovadas pelo Legislativo, por atrabiliários decretos baixados pelo chefe do Poder Executivo.

O reverso da diplomacia – Opinião / O Estado de S. Paulo

A antidiplomacia do governo bolsonarista continua a impor reveses ao País

Em mais um revés da diplomacia do governo, o candidato brasileiro ao comando da Organização da Aviação Civil Internacional (Oaci) do Sistema ONU, o brigadeiro Ary Rodrigues Bertolino, ficou de fora do segundo turno da disputa. O fracasso serve de alerta às lideranças públicas e privadas que costumam contemporizar como mero folclore inofensivo as diatribes de Jair Bolsonaro, seu chanceler, Ernesto Araújo, e outros protagonistas da vanguarda “ideológica” do governo.

De fato, só Araújo já produziu um anedotário antológico que faria corar o Barão de Rio Branco: desde o seu discurso de posse (em que invocou como patronos da “Nova Diplomacia” Dom Sebastião e Dom Quixote), passando pelo “Deus de Trump” (o único capaz de “salvar o Ocidente”); o orgulho de ser “pária”; os “cidadãos de bem” que vandalizaram o Capitólio; até a recente advertência no Conselho de Direitos Humanos da ONU contra um enigmático “lockdown do espírito humano”. Sobre uma montanha de cadáveres, Araújo já escarneceu das apreensões da população com o “comunavírus”, ridicularizando os esforços de contenção como “covidismo” e “histeria biopolítica”.

A essa extravagante tragicomédia se poderia acrescentar outras cenas: como as ameaças de Bolsonaro de invadir a Venezuela ou de responder com “pólvora” a uma suposta invasão da Amazônia por Joe Biden, ou a outra (talvez pior) de albergar Eduardo Bolsonaro na Embaixada de Washington; além dos insultos a lideranças como Emmanuel Macron e Angela Merkel; ou as tiradas mal-educadas (e iletradas) do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub contra a China e as piadas boçais do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com as apreensões ambientalistas.

Mas, por mais pitoresca que pareça, essa farsa, no mundo real, tem consequências graves, como a crispação com parceiros comerciais como China, Argentina e, agora, os EUA; a fuga de investidores internacionais; os boicotes ao agronegócio; o descrédito em fóruns como a ONU ou a OMS; ou os riscos ao acordo Mercosul-União Europeia e à entrada do Brasil na OCDE.

E assim, de grosseria em grosseria, o bolsonarismo vai desmoralizando o País como interlocutor de temas caros à comunidade internacional e degradando a reputação construída diligentemente ao longo de séculos pela diplomacia nacional. Um estudo recente da consultoria Curado & Associados estimou que, de 1.179 reportagens em sete dos mais prestigiados veículos de mídia internacionais, 92% citavam o Brasil de forma negativa. No ano passado, todos os seis chanceleres da Nova República assinaram um manifesto de repúdio à “antidiplomacia” bolsonarista.

O fiasco na Oaci não foi o único e dificilmente será o último. Malogros recentes incluem candidaturas para organismos multilaterais como o Tribunal Internacional do Direito do Mar e o Tribunal Internacional de Haia. Desde que Roberto Azevêdo e José Graziano deixaram, respectivamente, a Organização Mundial do Comércio e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, não há nenhuma chefia brasileira nas organizações do Sistema ONU. No ano passado, em uma derradeira mostra de sua fidelidade canina a Donald Trump, o governo retirou a candidatura brasileira à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento e, quebrando uma tradição de décadas, apoiou a eleição do primeiro presidente não latino-americano. Vale lembrar que o Brasil só quitou parte de sua dívida com a ONU quando esteve sob risco iminente do vexame de perder seu direito a voto na Assembleia-Geral.

O bolsonarismo está revertendo um a um os ditames da diplomacia nacional consagrados pelo Conselho de Estado à época do Império – “inteligente, sem vaidade; franca, sem indiscrição; enérgica, sem arrogância”. Ou as lideranças privadas e públicas começam a impor reveses a essa antidiplomacia arrogante, indiscreta e vaidosa – como a recente rejeição do Senado ao candidato do Planalto à delegação das Nações Unidas – ou ela seguirá impondo reveses sem conta ao País.

Curva da morte – Opinião / Folha de S. Paulo

Ante descaso de Bolsonaro, devem-se apoiar governantes que tentam salvar vidas

Ao acumular 42 dias num patamar de mais de mil mortes por Covid-19 a cada dia, a marcha macabra não dá sinal de ceder no Brasil. Ao contrário, segue em progressão exponencial, superando as marcas trágicas de julho do ano passado.

Em 25 de fevereiro, quebrou-se o recorde de 2020 pela primeira vez, com 1.582 mortes; na terça, 2 de março, 1.726; na quarta (3), 1.840.

O número absoluto ainda não supera as 2.468 mortes de quarta-feira nos Estados Unidos; lá, entretanto, as sequelas da irresponsabilidade negacionista de Donald Trump começam a refluir. O Brasil de Jair Bolsonaro ultrapassou os EUA em termos proporcionais, com 6,3 novas mortes por milhão de habitantes, contra 5,5 de americanos.

Não haverá surpresa, só estarrecimento renovado, se o placar lúgubre alcançar nos próximos dias 2.000 mortes. Mais que simples cifra, esse limiar simbólico a se acercar de modo vertiginoso deveria sinalizar para todos que a leniência diante da pandemia não pode continuar como está.

A emergência sanitária é grave e ímpar, pior do que em qualquer outro momento em 12 meses, pois a epidemia se agrava ao mesmo tempo em todo o território nacional. Como alertou em nota técnica a Fiocruz, 19 unidades da Federação enfrentam situação crítica em seus hospitais, com ocupação de leitos de UTI maior que 80% (10 delas acima de 90%).

São Paulo, onde a administração do estado manteve conduta racional, ainda observa lotação média de 76% dos leitos, mas a situação se deteriora em ritmo acelerado.

O governador João Doria (PSDB) anunciou a criação de 500 novas vagas de UTI, sem garantia contudo de evitar o colapso local, como se observou em Araraquara, ou geral, como pode acontecer nas próximas duas semanas.

A vacinação, como se sabe, é a única saída para a crise e precisa ser acelerada. Não existe tratamento precoce para as pessoas contaminadas, ao contrário do que propaga o presidente ignaro.

Só nos restam, pois, as alternativas das medidas comprovadas de prevenção, ditas não farmacológicas: máscaras, distanciamento social e higiene das mãos.

Mostra-se acertada, assim, a providência de estender para todo o território paulista a fase vermelha, de maior restrição para o comércio e a mobilidade das pessoas, ainda que eivadas de exceções. Cultos religiosos, por exemplo, costumam produzir focos de intensa contaminação. Não há nenhum sentido em mantê-los enquanto se fecham os parques públicos.

Governadores e prefeitos que fazem o possível para salvar vidas devem ser apoiados. Quanto ao presidente da República, apenas sua indiferença à mortandade supera a incompetência de sua gestão.

Basta de titubeio. As armadilhas lançadas por Bolsonaro têm de ser desarmadas com coragem e decisão, a fim de frear a curva da morte insuflada pelo Planalto.

Reforço vacinal – Opinião / Folha de S. Paulo

Urge sancionar projeto que libera compras por estados, municípios e empresas

A morosidade nacional na vacinação contra a Covid-19 salta à vista quando se observa a taxa por mil habitantes. Com 43,7 doses aplicadas, ocupamos apenas a 46ª posição nesse ranking, numa lista encabeçada por Israel, com a impressionante cifra de 935; no Chile, a proporção é de mais de 200.

À lenta produção por parte de Butantan e Fiocruz, fruto do atraso na importação de insumos, somam-se picuinhas nacionalistas do governo federal, que atravancam a compra de outros imunizantes disponíveis no mercado mundial.

Para contornar esta última dificuldade, o Congresso aprovou o projeto de lei 534/21, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). O projeto descentraliza a aquisição de vacinas, abrindo as portas para que estados, municípios e empresas possam também adquiri-las, desde que aprovadas pela Anvisa.

O texto autoriza ainda que a União e os demais entes federativos assumam a responsabilidade de indenizar cidadãos por eventuais efeitos colaterais provocados pelos imunizantes —uma exigência de laboratórios como Pfizer/BioNTech e Janssen que vinha sendo motivo de encarniçado embate entre o governo e as farmacêuticas.

Coincidência ou não, um dia após o projeto passar pelo Congresso, o sempre reativo Ministério da Saúde anunciou acordo para a compra de vacinas das duas empresas, em meio às movimentações encetadas por estados e municípios.

Por fim permitiu-se, de maneira acertada, que empresas possam adquirir imunizantes de forma complementar ao esforço do setor público. Pelo projeto, a iniciativa privada deverá obrigatoriamente doar ao SUS todas as doses obtidas enquanto estiver em curso a vacinação dos grupos prioritários —quase 80 milhões de pessoas.

Após o término dessa etapa, as empresas poderão aplicar gratuitamente metade das vacinas que adquirirem, ao passo que a outra metade deverá ser remetida ao SUS.

Diante do imperativo de imunizar o maior número de pessoas no menor espaço de tempo, afigura-se urgente agregar todos os atores possíveis a esse esforço. Portanto, só se pode esperar que Jair Bolsonaro não sabote mais essa iniciativa e sancione o projeto aprovado.

Lira busca a via rápida para a anti-reforma política – Opinião / Valor Econômico

Presidente da Câmara abriu a discussão sobre o desmonte da legislação eleitoral

Após a eleição do novo comando do Congresso, o presidente Jair Bolsonaro foi levar os 30 projetos supostamente prioritários para seus aliados recém-eleitos para presidir a Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Lira, expoente do Centrão, não revelou os seus, aos quais celeremente deu precedência sobre os do governo a ponto de parecerem as verdadeiras PECs de emergência. Com determinação e foco, em um momento em que o Congresso tem dificuldade de realizar seções presenciais, Lira abriu a discussão sobre o desmonte da legislação eleitoral, o desmonte das leis que coíbem a improbidade administrativa e, se não fosse pouco, e dos mecanismos do Orçamento, dando maior poder possível aos parlamentares na distribuição de verbas.

Em pleno recrudescimento da pandemia e aceleração das mortes, o líder do Centrão tirou da algibeira duas propostas. Apropriou-se do mantra do ministro Paulo Guedes, um dos três “Ds” - desvincular - para em meio à maior crise sanitária da história do país eliminar os pisos de gastos obrigatórios da saúde e da educação. Em um par de dias entre a coleta de assinaturas e a submissão ao plenário, tentou aprovar uma proposta de emenda à Constituição que praticamente blinda os parlamentares de serem punidos pela Justiça e coloca como árbitro dos eventuais delitos cometidos por eles para a corte camarada da Comissão de Ética, cuja indolência e desinteresse é notória.

Um clamor público contra ambas propostas indecorosas teve resultados distintos. A desvinculação dos recursos caiu logo por terra pelo absurdo de tentar resolver com um golpe de mão uma questão complexa e fora de ordem na conjuntura da pandemia. Mas a PEC da impunidade seguirá tramitando, um pouco mais distante dos holofotes ante os quais a pressa de Lira a terminou colocando. É aí que mora o perigo.

O presidente da Câmara, diante da ausência da instalação das comissões, tem jogado as pautas diretamente ao plenário. Se esse expediente pode ser benéfico no caso da PEC emergencial, que garantirá uma nova rodada de pagamentos de auxílio à população, por outro lado pode dar via rápida a projetos nefastos, como aquele que busca retrocessos nítidos na legislação eleitoral e, em particular, na forma de escolha dos representantes do povo.

A estratégia para isso é a mesma. Como a Comissão de Constituição e Justiça não foi instalada, a ideia é votar logo a admissibilidade de uma proposta de PEC no plenário. As intenções que pululam em volta das mudanças eleitorais têm a cara do fisiologismo do Centrão. Em um dos Congressos com o maior número de partidos do mundo, onde as duas maiores bancadas mal chegam a ter 10% dos deputados, o objetivo é derrubar a cláusula de barreira para que tudo continue como está: um aventureiro qualquer cria um partido que, aprovado, ganha tempo de TV, dinheiro do fundo eleitoral e partidário etc.

Na verdade, tudo pode piorar. Ao lado do fim da barreira está a proposta do “distritão”, dentre todos os sistemas de escolha possivelmente o pior já inventado, pois favorece figuras populares, de alta visibilidade, que seriam bons de voto (como o palhaço Tiririca ou jogadores de futebol) em detrimento de quadros partidários e dos próprios partidos. A PEC muda prazos de mandatos, proíbe reeleição e muitas coisas mais - constam do texto para discussão, que ainda poderá ser piorado ao longo do tempo.

A Justiça Eleitoral será enquadrada na discussão do Código de Processo Eleitoral, que vedará que ela faça mudanças nas normas das eleições sem que sejam aprovadas pelo Congresso. Um dos pontos centrais é a volta das coligações nos pleitos proporcionais - já extinta na eleição de 2020 -, um esquema fajuto em que o eleitor vota em um candidato e elege junto outro que pensa o contrário.

O futuro desenhado pelos partidos do Centrão é ampliar os privilégios dos parlamentares e assegurar sua reprodução. Partidos ameaçados de extinção são aliados do PP de Lira, como Patriota e Avante. Mas o fim da cláusula de barreira não atende aos interesses dos grandes partidos, que também têm restrições ao “distritão”. Muita coisa pode mudar, mas a intenção desse amálgama de partidos oportunistas e sem programa é assegurar um ambiente onde possam continuar sendo indispensáveis ao apoio parlamentar de qualquer governo para obter vantagens várias - nem todas lícitas.

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