As
vítimas do vírus não comovem Bolsonaro porque a ele importam mais os vivos
aptos às urnas em 22
Quis
uma cruza atroz do destino que a pandemia do século XXI apanhasse o Brasil nas
mãos de um homem mau. Um presidente sem noção do que seja governar, desprovido
de conhecimentos básicos sobre o funcionamento das coisas públicas, em estado
de total privação de senso da urgência de prioridades, referido no voraz
desleixo em relação ao bem-estar coletivo.
Um
síndico de edifício zela pelo conjunto dos condôminos quando determina o uso de
máscara aos funcionários, espalha recipientes com álcool em gel, restringe a
circulação e fixa nas dependências do prédio comunicados aos moradores sobre a
necessidade de cumprimento das regras, mas o atual presidente da República do
Brasil nem como zelador seria bem-aceito. Não foi feito para a vida em
comunidade.
Jair
Bolsonaro condena qualquer tipo de proteção aos residentes da nação e ainda
vilipendia quem trabalha em prol dos cuidados. Essa ausência de apreço pela
vida alheia poderia ter explicação só na maldade, no desvio de caráter ou mesmo
em algum tipo de dano psicológico grave, não carregasse junto doses oceânicas
de cálculo político-eleitoral.
Não vejo, como apregoam alguns no afã de imprimir maior contundência ao exercício da oposição, que a ideia dele seja matar pessoas nem torcer para que morram. Isso dá dramaticidade à cena, mas cria um espaço de fantasia por onde transitam com muita habilidade o presidente e seus apoiadores, dando-lhes a oportunidade de exercer a reação com virulência igualmente irrealista. Nesse campo vicejam, por exemplo, as falácias sobre medicamentos inúteis, os malefícios do uso de máscara, o atraso na compra de vacinas e o alarde em torno de aludidos prejuízos, sem a correspondente serventia, do isolamento social.
O
que há como fato incontestável é a insensibilidade presidencial ante a
dizimação de vidas. Ao longo do último ano o presidente fez uma ou outra
referência às vítimas e sempre de maneira protocolar. Enquanto rodopia com
satisfação por aglomerações país afora e até Palácio do Planalto adentro, no
decorrer deste ano de pandemia Bolsonaro não fez e continua não fazendo um
gesto sequer de compaixão pelas vítimas do vírus com o qual desenvolveu uma
relação afável.
“As
vítimas do vírus não comovem Bolsonaro porque a ele importam mais os vivos
aptos às urnas em 22”
Autoriza,
assim, a suposição bastante plausível de que não se importa com elas porque
estão mortas, e mortos não votam. Exagero na conclusão? Pode até ser,
dependendo do ponto de vista, mas é o próprio presidente quem dá margem a esse
raciocínio ao direcionar toda a sua atenção à conquista de novos públicos
eleitorais e zero dedicação espiritual aos que se foram, além de mostrar-se
indiferente aos que estão potencialmente condenados a ir.
E
quem são esses novos públicos eleitorais? São os integrantes de uma massa que
mistura ignorantes, insensatos e desesperados diante de perdas materiais
agravadas pela incapacidade (agora e sempre) dos poderes públicos de lhes
assegurar condições mínimas de suporte.
Perdido
o mundo do dinheiro que não cairá em 2022 na mesma conversa de 2018, quebrada a
fortaleza do universo político que em grande parte se afastou dele, derrubadas
as bandeiras na nova política e do combate à corrupção, é para as camadas de
desvalidos, de prisioneiros da crença de que tudo vai bem porque o presidente
diz que está tudo bem, que Jair Bolsonaro dirige sua artilharia eleitoral.
É
para eles que fala quando fustiga governadores e prefeitos divulgando dados
distorcidos sobre repasses de recursos federais e ameaça não transferir dinheiro
do auxílio de emergência para localidades onde autoridades imponham restrições
mais severas à circulação de pessoas. É a eles que busca conquistar e fidelizar
quando se jacta com frases do tipo “Não errei nenhuma até agora”, como disse
dia desses em meio a uma aglomeração de fiéis.
É
nesse alvo que o presidente mira quando enquadra governadores na categoria dos
“maus” repressores da liberdade (seja de festejar ou de ganhar o pão), enquanto
sobe no pódio do “bom” que baixa o preço do diesel e do gás de cozinha. É com
os olhos voltados exclusivamente para si que mobiliza a máquina de propaganda
do governo na produção de cenas de ajuntamentos cuidadosamente escolhidos para
lhe referendar popularidade.
Assim,
o presidente da nossa desafortunada, mas resistente, República busca (e
consegue) intimidar ofensivas tão rigorosas quanto severos são os seus
desmandos.
Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728
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