No
Brasil, os indivíduos que chegam ao poder podem ser beneficiados pelo direito
não escrito de que estão acima da lei
A
necessidade política da definição da igualdade social, tratada extensamente na
Constituição brasileira, não é estranha em face das desigualdades
historicamente profundas que nos caracterizam.
O
artigo que dela trata, mais do que assegurar a igualdade, na verdade proíbe a
desigualdade. É um desses indícios de hipocrisia política que atravessa as leis
brasileiras. A igualdade é um direito sem ser obrigatória, fragilizada sem a
previsão de instituições que a assegurem nem a responsabilização dos que a
violam.
A
Constituição brasileira é clara e abrangente em relação à igualdade: “Art. 5º -
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”.
Trata-se, porém, de mera igualdade jurídica, que, entre nós, assegure na
competição desigual as desigualdades sociais.
Esse
artigo pressupõe que se destina a assegurar a igualdade numa sociedade já
igualitária, que a nossa não é. Desde os primeiros tempos de sua formação, teve
ela escravidões, juridicamente diferençadas, a do índio e a do negro, e ainda
tem - a de todos que caírem na rede da escravização por dívida. Portanto, uma
desigualdade constitutiva e profunda.
Numa sociedade assim, a instituição do direito à igualdade criminaliza a desigualdade sem modificar a sociedade, coisa que, de fato, depende de fatores de transformação social, sobretudo de movimentos sociais que ponham em evidência as iniquidades que tornam a igualdade uma quimera. Leis, em princípio, configuram a sociedade juridicamente, mas não socialmente. Entre uma coisa e outra há um abismo.
A
própria massa da população não tem a menor consciência de quais são e onde
estão as anomalias que desmentem cotidianamente a igualdade fictícia. Basta dar
uma voltinha pelas nossas cidades para ver a diversidade das formas da
desigualdade brasileira.
Não
só nos extremos, o dos moradores de rua ou o do trabalho análogo ao trabalho
escravo. Mas em presumidas atitudes de superioridade social em relação aos
demais. Um bom lugar para observar a violação desse item da Constituição é o
próprio Congresso Nacional e a própria Presidência da República. Instituições
dominadas por pressupostos de desigualdade estamental, na penca de privilégios
e de exageros de comportamento inadequado aos limites das funções de poder.
A
desigualdade estamental do poder está em pequenas coisas. Nestes dias, a
propósito da posse de dois novos ministros, um verdadeiro Carnaval de bajulação
dos empossados e do presidente reuniu no Planalto uma multidão composta de
muitos violadores do princípio da igualdade, a começar do próprio presidente da
República.
Medidas
do Estado, com base na lei, mandam que nesta conjuntura de pandemia e de risco
comprovado à vida de todos, a começar do presidente, sem máscara, e de todos
violando a regra da distância sanitária. Festejavam, no fundo, o abocanhamento
do poder pelos mais iguais.
No
Congresso, nos mesmos dias, começava a reformulação da lei para aumentar a
imunidade parlamentar - inspirada nos casos de dois parlamentares que, por suas
ações, já deveriam ter sido afastados da função de representação política que
ocupam.
Há
países civilizados em que a mera e fundamentada suspeita de conduta imprópria
justifica a privação do direito de representação política. São os países em que
a lei está acima dos indivíduos. Aqui, não. Os indivíduos que chegam ao poder
podem ser beneficiados pelo direito não escrito de que estão acima da lei. São
os mais iguais.
A
imunidade parlamentar é uma instituição necessária para assegurar o direito de
divergência e de representação política da diversidade de concepções que formam
a sociedade moderna. Mas a imunidade não é ilimitada. Ela depende de valores
sociais, vários deles contidos nas linhas e nas entrelinhas da Constituição e
nas leis.
Nesse
sentido, o mandato não é um privilégio nem pode ser. No entanto, assim tem
sido. Não só quanto ao instituto da imunidade, mas também quanto aos extensos e
descabidos privilégios materiais: habitação, carro, funcionários, avião e
passagens, que fazem dos políticos brasileiros os mais iguais de uma estrutura
política paralela antirrepublicana e antidemocrática - e anti-igualitária.
A
estamentalização da representação política e do poder é um retrocesso histórico
que fere o pressuposto da igualdade proclamada na Constituição. A igualdade a
que ela se refere é a igualdade reflexo e recíproca, não a igualdade solitária
de quem pode mais e chora menos. De quem é imune à lei pela função que ocupa e
pela suposta liberdade não só de opinar contra as instituições, mas de
conspirar contra elas, para colocar entre parênteses os direitos fundamentais do
cidadão que somos no papel, não sendo.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Eméritodo CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica”(Ateliê).
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