A busca do possível requer um passo prévio:
reconhecer o impossível para fazer dele uma baliza, em vez de objetivo da
busca. Substituir um prévio intento pela aposta em nova possibilidade que
reanima e contenta é dar um passo além, não só da impotência que nos incute
culpa, como da resignação, que frustra e deprime. Falando assim pode parecer um
convite a um passeio, mas a decisão por essa busca é processo dilacerante
quando se dá em meio a uma situação crítica, que pode se tornar agonística.
O Brasil vive intensamente nada menos que duas
dessas situações críticas. Parafraseando Jobim, não é para amadores lidar com
Bolsonaro e Covid ao mesmo tempo. Os dois infortúnios se retroalimentam e isso
pode nos fazer crer que um é causa do outro. Mas não é assim. Com ou sem
Bolsonaro teríamos que recorrer à ciência para lidar com a pandemia. Com ou sem
ela, teríamos que recorrer à política para lidar com Bolsonaro. Política não é
vacina contra o vírus. E a ciência não derrotará Bolsonaro. A saída de cena de
um não nos livra, necessariamente, do outro. Ciência e política, cada qual deve
fazer sua parte. Para isso não precisam, nem devem brigar. E podem atuar de
modo complementar.
A ciência, nesse caso, obteve um assombroso sucesso quando ofereceu ao mundo vacinas seguras em tempo recorde contra um vírus desconhecido. A humanidade vê aumentar sua dívida para com ela. O sentido de urgência da ação mais complexa foi atendido porque, desde logo, a comunidade da ciência compreendeu que não havia a solução simples de medicamentos que atalhassem o tratamento. A busca do possível não foi adiada porque se detectou e afastou o impossível do horizonte. A má notícia, acolhida com realismo, em vez de desespero ou depressão, produziu ação. No mundo todo, incluído o Brasil, que, graças à ciência que aqui também habita, está, sob forte tempestade, produzindo vacina.
Os resultados da ação política no mundo são mais
controversos (se não o fossem estaríamos falando de outra coisa, não de
política) e seus êxitos, menos universais. Para serem avaliados exigem lupas sobre
múltiplas realidades nacionais, para o que não há espaço na coluna nem
informação em meu poder. É visível, no entanto, a atitude da grande maioria dos
dirigentes dos países de alta e média relevância (deixo de me referir aos de
baixa relevância não por desprezo, mas por desinformação) de não querer matar a
mensageira da má noticia, no caso, a ciência. Aqui é redundante, até enfadonho,
assinalar o governo federal brasileiro como uma desonrosa exceção. Sem malhar
em ferro já quente, pode-se dizer que, através de suas ações e inações, matou-se
e ainda se mata muito mais que apenas a mensageira.
Mas um inventário da ação da política brasileira em
relação à pandemia não pode se resumir aos desmandos e crimes do Executivo
Federal e muito particularmente daquele que é seu chefe nominal. Além de equívoco,
seria injustiça ocultar serviços prestados pela política nessa quadra difícil.
Governadores e prefeitos têm agido, com forte apoio do Judiciário, dando
respostas, de um modo geral (quem quiser encontrar flagrantes do oposto, claro
que achará), em patamar acima do potencial que a elite política subnacional
parecia deter. Expertise em atuar na adversidade é um capital
institucional inesperado que ela está a acumular, efeito colateral do
treinamento político e social a que esse desafio a está submetendo. Do
Congresso Nacional não se pode falar diferente, sendo digno de nota que os
conflitos políticos recentes, especialmente na Câmara, não fizeram as duas
casas se afastarem do centro da cena do combate à pandemia. Seguem construindo consensos
amplos para votarem medidas cruciais de apoio a estados e municípios e de combate
a efeitos sociais da pandemia e da crise econômica.
Esse o papel positivo que a política vem podendo exercer,
no combate à pandemia, em condições extremamente adversas, maximizadas pela
conduta do presidente e pela influência que ele exerce sobre agências do
governo e sobre parcelas da população. Papel reforçado depois da detecção do
impossível e do seu devido afastamento do horizonte de objetivos da ação. Assim
como a consciência de que não havia remédio pronto para tratar a covid incitou
a ciência a descobrir vacinas, a consciência de que é impossível, neste
momento, afastar Bolsonaro, incitou o sistema político e judiciário a protegerem
a democracia dos seus ataques frontais e a fornecer um mínimo de
governabilidade ao País. Penso que os moderados resultados alcançados com essa
atitude prudente resultam da ambiguidade própria da situação e não podem ser
confundidos com intenções de conivência. Essa a imputação feita, a granel, a
partidos e a dirigentes de instituições, cavalgando, por ingenuidade ou
demagogia, na baixa simpatia popular de que gozam. Não houve até aqui sinais de
ambivalência desses dois poderes da República nem quanto à crise sanitária, nem
quanto à defesa das instituições democráticas.
Quanto ao enfrentamento político de Bolsonaro, é
obvio que a ambivalência predomina. Mas quem quer acabar com ela, cobrando que
o sistema político se oponha ao presidente, está em busca do possível? Ou ainda
não afastou o impossível do rol de seus objetivos? Percebo que cobram da
política que ela não apenas aja, como tem agido, em acordo com a ciência, mas
que adote, em sua conduta prática, a ética da ciência e aí não só das ciências
médicas e biológicas, mas a das ciências humanas e sociais, quando elas, por
algumas de suas vertentes teóricas, se impõem a missão de compreender e também
transformar o mundo. Para quem assim se posta palavras políticas chave são
movimento e vanguarda. É complicado querer que sejam palavras-chave da ação de
quem atua institucionalmente como elite especializada, em arenas racionalizadas
de competição política ou de estabilidade judiciária. Num momento crítico de
alta tensão e angústia sociais, em que pretensões de protagonismo de movimentos
estão limitadas por inclinações conservadoras do eleitorado e atrofiadas pelo
rigor da pandemia, esses apelos e cobranças de que instituições funcionem como
movimentos chega aos limites da exasperação. Peço licença para fazer uma digressão
um pouco longa, em torno da própria ciência social, no intuito de argumentar
pela insensatez dessa pretensão. Quem estiver convencido nem precisa se deter
nesse ponto da leitura.
“A ciência como vocação” e “A política como
vocação” são dois dos mais contundentes textos de Max Weber sobre os paradoxos
da modernidade. Em ambos, ele trata de vocação como dedicação a uma profissão.
E da tensão entre a aceitação realista de um condicionamento social e a aposta
na possibilidade de ação para o sujeito individual. A condição social inescapável
é o desencantado mundo moderno, onde impera a racionalização de meios e fins; a
possibilidade do sujeito é a escolha de um agir que conecte meio e fim a
determinada “causa”.
Como Raymond Aron chama a atenção, aqui temos,
também, um problema existencial: delimitar em que espaços da sociedade a
racionalização para objetivos ainda permite algum lugar a outros tipos de ação.
A ciência e a política, mobilizáveis, também, por valores, são (ainda podem ser)
espaços desse tipo. Desde que o exercício dessas vocações não se insurja contra
o que há de inexorável na racionalização que, afinal, também alcança as duas
áreas, como todas as demais.
O fato social e o ato individual são - para usar um
lugar comum - facas de dois gumes. A racionalização (uma esquina onde se
encontram a vontade de emancipação e práticas de instrumentalização)
exacerba-se a ponto de reduzir e amesquinhar a razão. A decisão do ator
(esquina da aspiração de autonomia com tentações de despotismo) devolve à razão
sua amplitude e grandeza, mas ao risco de transpor as fronteiras do irracional.
Diante do imprevisível, na ciência e na política persiste, ao menos, o dilema
valorativo entre conservar uma estabilidade medíocre, depressiva, ou promover
mudança, ao custo de uma insegurança ansiosa. Em outras áreas esse dilema
sequer aparece. Foi resolvido em favor da razão instrumental. Ciência e
política sobrevivem como domínios onde é possível o agir criativo.
Eis o relevante ponto weberiano que ambos os textos
exprimem: o sujeito que adota a política ou a ciência como vocação é, em certo
sentido, um sobrevivente no exercício de uma autonomia, mas por ter escolhido
uma das duas, nem por isso escapa da condição de mover-se num fio de
navalha.
Mas quanto às distinções entre ciência e política? Elas
cabem na distinção, feita pelo próprio Weber, entre a “ética da convicção” e a
“ética da responsabilidade”? Quem pensa nessa dicotomia – apresentada na parte
final de “A política como vocação” - como uma chave para compreender as
distintas vocações da ciência e da política, surpreende-se ao não encontrar em
“A ciência como vocação” um contraponto à ética da responsabilidade. Esta orienta,
claramente, o político por vocação, mas não se constata clareza equivalente na
correspondência entre o profissional da ciência e a ética da convicção. A ambiguidade
ética da vida política infiltra-se no agir científico, impondo também ao
cientista uma negociação com demônios. Sua ética vai além das convicções. Sem
isso não nasce a pesquisa científica. Assim como faz a ética da política – e de
modo diferente dela – a ética da ciência também contrasta a fé religiosa,
certamente valiosa, para outros fins humanos e conforme outros valores. Mas nos
dois textos de Weber lemos que ambas (ciência e política) estão expostas a visitas
do irracional. São visitas insólitas, que trazem ideais de perfeição. A
ideologia, quando fé, faz ciência e política perderem suas razões de ser. Entre
as respectivas razões há convergências que balizam a exploração de diferenças e
até contrastes entre as vocações da ciência e da política, sem criar um abismo ético
entre elas. Numa palavra, compreender as
razões e a experiência da política institucional como distintas das razões e da
experiência do movimento social e ver essa distinção com simpatia não coloca
ninguém na contramão da ciência. Apenas arma a consciência para não ver a
“classe política”, nem mesmo o que se apelidou de centrão, como inapelável aliada
de Bolsonaro e do que ele representa. É interlocutora, não adversária.
A política tem sua ética, ainda que no mundo real
predominem simulacros, no centrão e nas “melhores” famílias ideológicas. Weber fala em política como causa que
sustenta uma vocação (profissão) e avisa sobre a impossibilidade de estender à
política uma ética única, de fora dela. Essa pretensão é tão irrealista quanto
afirmar que a ética da politica não possui nexos com qualquer outra ética
(supor políticos santos é tão irrealista quanto supor que todo político é
aético). Sim, a ética da responsabilidade (o norte da política) põe em risco a
salvação da alma e a ética dos últimos fins põe em risco as metas, por
ausência de responsabilidade pelas consequências. As duas éticas orientam
diferentes condutas diante de noções de bem e de mal e da irracionalidade do
mundo: “O mundo é estúpido e mesquinho, eu não” (ética dos últimos fins);
“Eis-me aqui. Não posso fazer de outro modo” (ética da responsabilidade). E
arremata: “A política é como a perfuração lenta de tábuas duras (...)
somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o
mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido e mesquinho para o que ele
lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “apesar de
tudo!” tem a vocação para a política”.
A reflexão vale como metáfora institucional, por mais que no caso do político
beltrano seja descrição veraz e no de sicrano, doce ilusão.
A que serve tanta digressão? Para dizer que, sim, a
situação extremamente crítica que vivemos no Brasil com a associação entre
Bolsonaro e Covid pode ser enfrentada pelas gramáticas da ciência e da
política. Culpa, vergonha, covardia são repertório léxico funcional ao universo
bolsonarista, incapaz de explicar o buraco, menos capaz ainda de nos tirar dele,
embora essas palavras brotem do desespero de pessoas de várias condições
sociais. São autoexplicáveis cobranças de ação contundente e resultados
imediatos por parte de quem se vê direta ou potencialmente implicado nas
ameaças e delitos diários. A parte da
sociedade que tem consciência das dimensões da tragédia desconfia da fina
camada de proteção que as instituições construíram contra as investidas
autocráticas, ainda mais se a compara com a jaula em que está trancada, por
medo da doença e falta de horizonte. Mas será mesmo uma jaboticaba brasileira?
Essa interpretação sempre se apresenta quando se
alega os quatro séculos de escravidão. A lembrança atiça o açoite masoquista. Ajoelharemos
no milho por outros quatro séculos e ainda não será bastante para apagar a
vergonha que somos como país. Temos tão cronicamente vergonhosas elites civis que
cumpre duvidar de tentativas não governamentais concretas de fazer, em hora
critica, algo socialmente justo, apesar do governo. São inconfiáveis como parte
desse legado espúrio, tanto quanto as iniciativas políticas que tentam levar o
governo a assumir seus deveres por caminhos diversos ao da contestação. Quanto
ao povo, coitado, se foi capaz de votar em Bolsonaro e de continuar em boa
parte crendo nele a caminho do extermínio, dele não se pode esperar nada a não
ser que se arrependa da condição de bicho solto e passe a ser guiado por uma
vanguarda onisciente que o redimirá para a civilização do dever.
Pois bem, como se sentia e movia metade dos
norte-americanos durante os quatro anos de Trump, o ultimo deles passado em
interação com a pandemia? E a outra quase metade que seguiu fiel ao mito até as
urnas desse ano? Até a invasão do Capitólio não se viu, da parte das
instituições da ciência e da política daquele país outras atitudes que não a
marcação cotidiana para conter a fera, a esgrima de bastidores e escaramuças
públicas pontuais, enquanto movimentos de cidadãos preparavam o acerto de
contas eleitoral do qual ascendeu um político convencional e moderado. A opção
por pacificação revelou-se rota não só virtuosa, como eficaz. Se devemos fazer
de outro modo é preciso dizer o porquê.
Penso que a política brasileira precisa saltar
sobre a tardança, não a carregar, como fardo expiatório. Sem sentar sobre ela,
nem a ruminar, seguir buscando as vacinas que a ciência produziu, tentando
encurtar o tempo, protegendo como possível as pessoas mais vulneráveis durante
a inevitável espera e marcando em cima, fungando no cangote do governo, para
que não ceda a novas sabotagens do presidente e do seu grupo palaciano,
militares incluídos. Se algum plano cabe além desse é o de chegarmos de pé a
2022 para o acerto de contas entre Bolsonaro e a democracia.
A sociedade, partidos de oposição, movimentos
políticos e sociais podem buscar formas de expressão contundentes de indignação
e contestação. Ao mesmo tempo é importante que cúpulas das instituições
continuem a jogar o xadrez político discreto de cada dia, para que a corda não
se parta e, com ela, liames que, ainda em pé, ligam o estado e a sociedade
emersa ao mundo bruto em que vive o cidadão comum.
Para isso precisaremos vencer a tentação da ética da
não aceitação do impossível como tal. Evitar chamar de impotência (uma
disfunção) a busca de soluções possíveis, que é o sentido mais próprio da
política. Antes que alguém se engane: o que estou dizendo nada tem a ver com
resignação, aceitação meramente racional do impossível como tal. Falo é da
consciência do impossível ser chave de buscas individuais e coletiva pelo
possível. Porque ele, o possível, é o único terreno em que se pode VIVER.
* Cientista político e professor da UFBA
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