No
fundo, foram falas de poltrão. Cuspidas pelo presidente da República em tom
estudadamente espontâneo esta semana, os disparates não precisam ser repetidos
aqui — já ofenderam o suficiente a nesga de autoestima que ainda resiste no
país. A necessidade de recorrer a falas tão odientas sugere que Jair Bolsonaro
está com medo. Medo de que caia a casa ostentação comprada pelo filho Flávio,
medo de seu pacto de morte com a Covid-19, medo de a rua pressionar o
Congresso, medo de chegar lanhado em 2022 — ou de nem sequer chegar até lá.
Agora está prisioneiro do descaminho escolhido, que não tem volta: por meio da
retórica (e da política) sanhosa, procura apenas manter a fidelidade de rebanho
dos que o elegeram.
Bolsonaro não foi o único a tratar a Covid-19 com nonchalance suicida. De início, por interesse eleitoral ou estupidez, uma parte do Brasil envergando paletó ou farda, toga ou chinelo de dedo, também não quis ver o tamanho do perigo. Quase sempre correndo atrás do atraso e adotando políticas ciclotímicas de abre/fecha, autoridades estaduais e municipais foram tateando. Hoje 1.703 prefeitos aprendem a formar consórcios para a compra de vacinas. O Congresso, que por um ano se fingiu de adormecido, por fim acorda algo sobressaltado.
Mas
o grosso da responsabilidade, pelo imenso poder de liderança, comunicação e
recursos que o cargo lhe dá, é do presidente da nação. Exatamente um ano atrás,
neste espaço se comentava o registro de 13 casos positivos de Covid-19 entre os
209 milhões de brasileiros. O salto para os quase 11 milhões de casos atuais,
com mais de 264 mil vidas perdidas no caminho, nasceu da cartilha manicomial de
Jair Bolsonaro, e nada, daqui para a frente, conseguirá apagar esse rastro.
Nem
mesmo o “Penguin Book of Lies”, trabalho investigativo-literário sobre as
várias formas de mentir publicado em 1990 pelo britânico Philip Kerr,
conseguiria dar conta das artimanhas mentais do presidente. Talvez nem Santo
Agostinho sou besse fazê-lo. O santo sustentava que “nem todo aquele que diz
falsidades está mentindo se crê ou presume ser verdadeiro o que diz...”. Mas
como saber se o capitão sequer acredita nas sandices que professa?
Possivelmente não, são apenas escapes.
Joseph
Goebbels sabia que mentia. Exercitava o ofício da propaganda com total controle
e convenceu os alemães da receita nazista. Ronald Reagan, ao contrário,
realmente acreditava na “América” de John Wayne e das ilustrações de Norman
Rockwell. Convenceu o eleitorado de que representava o país onde sempre é possível
enriquecer. Suas crenças eram simples. Foi reeleito apesar de 138 membros de
seu governo terem sido investigados, indiciados ou condenados por inúmeras
encrencas.
Pensadores
de calibre, como Hannah Arendt, já ensinaram quanto esconder a verdade faz parte
das ferramentas necessárias e justificáveis não apenas para políticos
demagogos, como para estadistas de verdade. Ademais, inexiste a política da
autenticidade pura, da sinceridade não contaminada. Nem deve existir, aconselha
o visionário George Orwell, cada vez mais lido nos dias de hoje. Para o autor
de “1984”, pior do que a hipocrisia na política, é um mundo em que ninguém mais
tem sentimentos privados para manter secretos. “Quando ninguém mais tiver nada
para esconder, é onde reside o terror”, escreveu. A verdade absoluta,
inequívoca, aquela que silencia os que dela discordam e cancela qualquer
debate, pode ser tão opressora e inimiga da liberdade humana quanto uma imensa
mentira.
Nenhuma
dessas considerações nem sequer consegue ser aplicada a Jair Bolsonaro, que é
apenas um terrível, lamentável , primitivo e danoso aspirante a chefete do
Brasil. Nos primórdios da revista “Veja”, a redação brincava de dividir a
chefia do semanário em três categorias: arquitetos do caos, simuladores de
produtividade e falsos ecléticos. Bolsonaro consegue ser as três coisas ao
mesmo tempo e tantas outras mais.
Apenas não consegue ser humano.
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