domingo, 7 de março de 2021

Cacá Diegues - Contradições democráticas

- O Globo

O Brasil tem sido, pro nosso cinema, uma terra sempre em transe. Nossa história é contada como se não existisse, cheia de equívocos e erros grosseiros

Meu coração quase parou quando li, no Estadão de 27 de fevereiro, o título da matéria: “Livro conta como o ex-censor Roberto Farias dirigiu um filme censurado em plena ditadura”. O filme censurado em plena ditadura todos nós conhecemos. Era “Pra frente, Brasil”, de 1982, com Reginaldo Farias como um homem comum que, no ambiente político da época, se torna vítima de bárbara tortura. Um filme premiado no rigoroso Festival de Berlim e consagrado no nosso Gramado. Deu o que falar. Mas e o “ex-censor”?

O Brasil tem sido, pro nosso cinema, uma terra sempre em transe. Nossa história é contada como se não existisse, cheia de equívocos e erros grosseiros. Por exemplo, esse. Roberto Farias nunca trabalhou no Departamento de Censura de Diversões Públicas, como está no jornal. Desde sempre, ele só trabalhou e se empregou na atividade cinematográfica. E jamais praticou qualquer tipo de censura a filmes, mesmo quando teve poder para isso.

De 1974 a 1979, Roberto foi presidente da Embrafilme, empresa de economia mista que ele transformou numa das companhias de produção e distribuição de filmes mais bem-sucedidas da América Latina, disputando o mercado pau-a-pau com as majors americanas. Ele foi nomeado para o cargo pelo governo Ernesto Geisel. O seu era um dos nomes indicados por sindicatos e associações de cineastas que produziram, a pedido do governo, uma lista de três candidatos. Os ministros João Paulo dos Reis Velloso, do Planejamento, e Ney Braga, da Educação e Cultura, foram os intermediários da operação política, sob o argumento, trazido por eles, de que a abertura democrática anunciada por Geisel devia começar pela cultura. O cinema brasileiro nunca teve, a seu lado, um ministro que nos desse tanta condição de trabalho quanto Reis Velloso.

Roberto Farias fez da Embrafilme um instrumento agregador e modernizador do cinema brasileiro. Para isso, contou com Riva Farias, seu irmão produtor, e com Gustavo Dahl, um dos maiores pensadores do cinema em nossa geração, a quem chamou para cuidar da distribuidora, fator de diferenciação e progresso reconhecido em todo o mundo. O comportamento politico de Roberto e sua turma foi sempre impecável. Muitas vezes, filmes da Embrafilme já finalizados para lançamento sofriam embaraços e perseguição no Ministério da Justiça e na Polícia Federal, onde estava a Censura. Mas na própria Embrafilme, jamais. Ninguém nunca teve sua produção emperrada na empresa por escolhas políticas ou artísticas.

Naquele momento de tanta repressão, tanta ausência de civismo, tanta crueldade com o opositor por governos que se instalavam arbitrariamente, o cinema brasileiro viveu dias de raro crescimento, graças a regras estabelecidas e obedecidas por todas as partes. Hoje temos um governo eleito pelo voto popular que, em matéria de cultura, só pensa em acabar com a existência do cinema brasileiro.

Roberto Farias foi um grande cineasta brasileiro, um Mestre que experimentou de tudo que é gênero e será sempre lembrado por filmes como “Cidade ameaçada”, “O assalto ao trem pagador”, a série de musicais com Roberto Carlos e, naturalmente, “Pra frente, Brasil”. Roberto também não pode ser esquecido pelo que fez da Embrafilme, um dos momentos mais grandiosamente democráticos do que foi e ainda poderá ser o cinema brasileiro.

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