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A
principal causa dessa fragilidade reside numa cultura política, social e
institucional, que aparta Estado e sociedade de tal modo que, sob os auspícios
das regras institucionais, o voto popular reitera o afastamento, ao invés de superá-lo, por
efeito de um alargamento democrático que não enseja aprofundamento, ou seja,
não propicia ao eleitor canais de exercício de sua autonomia face ao poder econômico
e burocrático, impelindo os agentes político-partidários à busca do bem comum
em meio às inexoráveis diferenças político-ideológicas.
As razões estruturais/normativas de tal dificuldade foram abordadas/indicadas em artigos anteriores (vide Clientelismo, Cargos e Voto – a erosão oligárquica da democracia). Cabe agora apenas delinear o retrocesso precipitado pelo baluartismo das lideranças civis, de todos os quadrantes, diante dos inequívocos sinais emitidos pelas massas desde 2013, ao cabo capturados/interpelados pelo bolsonarismo.
Comecemos
pelo mais novo episódio da longa lista de disparates cometidos por essas elites
nos últimos anos: o golpe judicial do Ministro Edson Fachin, anulando as
decisões do juízo de Curitiba sobre as ações penais que levaram Lula à prisão e
inelegibilidade. Não interessa aqui discutir as razões político-jurídicas que
motivaram o Ministro – há farto material para consulta sobre o tema –, apenas
pontuar sua recepção pela sociedade e certas corporações (sociais e burocráticas)
fundamentais para os destinos da nossa democracia.
Comecemos
pelos eleitores. Segundo o instituto Paraná
Pesquisas, 57,5% dos brasileiros discordaram da decisão de Fachin,
contra 37,1% que concordaram; a única região destoante foi a Nordeste, onde
52,6% concordaram e 41,3% discordaram do magistrado. A pesquisa tem números próximos
à outra do mesmo instituto, de junho
de 2019, onde 58% se disseram favoráveis à manutenção da prisão de
Lula, enquanto 36% se posicionaram contra. Fica claro que, para a maioria dos
eleitores, ontem e hoje, Lula deve pagar pelos crimes que cometeu e que a
tradicional impunidade brasileira parece ser a fonte da inesgotável
credibilidade do ex-Juiz Sérgio Moro, reconhecido pela maioria (59,2%), em
levantamento de março/21,
como um juiz imparcial, mesmo entre os menos escolarizados (53,7%).
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A
duríssima sentença acrescenta um novo ingrediente à crise política, depois da
manifesta assunção por parte do ex-Comandante do Exército, Gen. Eduardo Villas
Bôas, do veto militar à postulação presidencial do petista; prossegue o
editorial: "O assunto é da maior gravidade, pois traz de volta ao cenário
político um grande perigo para o País (…): o ressurgimento do fantasma do
lulopetismo. (…) O mais famoso ficha-suja do País, condenado por corrupção e
lavagem de dinheiro (…)”.
Coloca-se
assim, em linha, de novo, dois vetos que, outrora, em momentos distintos, ao
longo dos anos 1950-1960, produziram duas deposições presidenciais (1954,
Vargas, e 1964, Goulart) e duas tentativas de deposição (1956, Kubistchek, e
1961, Goulart). Me refiro aqui ao veto militar, empresarial e da classe-média, à
Vargas e seus sucessores, e também à Jânio Quadros, que, se aproveitando do
primeiro veto, tentou tirar proveito dele ao renunciar à Presidência poucos
meses depois de assumí-la, mandando o Vice Goulart para uma missão diplomática
na longínqua China comunista, na esperança de assumir poderes excepcionais para
governar. O tiro saiu pela culatra porque Quadros não percebera que o veto ao
varguismo se estendia à toda forma de populismo, inclusive àquele representado
pela direita, onde ele se inseria.
A
condenação aos dois populismos está na ordem do dia, não só entre os eleitores
e empresários, mas também entre os militares.
É o caso do Gen. da Reserva e ex-Ministro Santos Cruz, que, em reação à decisão
de Fachin, afirmou: “o Brasil não pode mais depender, nem
viver, numa guerra de extremistas. (…) O fanatismo só está atrapalhando o
Brasil. (…) A grande parcela da população não quer participar dessa novela sem
fim”. Oficiais da Ativa do Exército, que costumam não se manifestar, também
falaram, sob anonimato, que a decisão do Ministro do STF pode beneficiar “extremistas” de esquerda
e de direita. Mas foi Cruz, involuntariamente, que acabou expondo o estado de
espírito da caserna ao pregar moderação: "Tem de esperar, ainda há passos
jurídicos. Ninguém tem de se precipitar”.
Até
o reservado Gen. da Reserva Sérgio Etchegoyen, ex-Ministro do Governo Temer, se
mostrou incomodado com a decisão ministerial, indagando: “Por que essa decisão
monocrática que se sobrepõe a dois tribunais colegiados (TRF-4 e STJ) não é um
risco à democracia? Ou é um risco para a democracia só quando um general fala?”,
em alusão ao tuíte de Villas Bôas, em 2018, que ele justifica como um recado à tropa
“para evitar que alguém da reserva dissesse alguma
bobagem” – na verdade, alguém da Ativa fizesse alguma bobagem. Aqui, para além
da condenação ao ato judicial, temos a volta do velho sentimento militar do Império
– que precipitou seu fim – de que a elite civil os discrimina e hostiliza.
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Paiva
simplesmente afirma que Fachin "praticamente, arremessou no lixo a
Operação Lava Jato e, com ela, a esperança da sociedade num futuro mais digno”,
"colocando em risco”, junto com outras medidas tomadas pelo tribunal,
"a paz, a harmonia e a própria unidade nacional”. Em sua perspectiva,
"o que é supremo não é a lei e sim a Justiça e esta não existe quando a
lei é usada contra o bem comum”, alertando que "a liderança nacional"
deve ter em mente que as Forças Armadas "ficarão unidas e ao lado da Nação,
única detentora de sua lealdade". Por seu turno, Barbosa, considerando a
posição de Fachin como "a vitória do banditismo”, não só afirma ser Lula
"o maior político criminoso que esse país já conheceu”, como sentencia que
"lugar de ladrão é na cadeia”.
Como
argumentei em artigo recente (O
esgotamento da democracia de clientela), a forte presença do
bolsonarismo no interior das médias e baixas patentes da Ativa das Forças
Armadas, além das polícias estaduais, coloca Bolsonaro em situação especial
nesta crise, distinta daquela vivida por Jânio Quadros, apesar de também ser um
de seus pivôs: sua capacidade de dividir os quartéis e, efetivamente, agitar
tropas ao arrepio dos Altos Comandantes. Outra diferença significativa entre os
dois personagens, separados no tempo por mais de meio século, é que Bolsonaro
costuma expressar francamente o que pensa, na linha oposta da astúcia dos
velhos populistas do séc. XX, o que, todavia, não é suficiente para lhe
garantir a simpatia da cúpula militar ou empresarial, ao contrário do que
ocorre com as massas, dada sua dificuldade em exercer liderança positiva.
O Gen.
da Reserva Paulo Chagas, bolsonarista de primeira hora, é um
vocalizador desta percepção de que Bolsonaro não é capaz de "tomar o rumo
da harmonia, da União”, se revelando "um narcisista deslumbrado” com o
poder, o "que faz com que ele se comporte pensando que é mais do que é na
verdade”: um "trapalhão (…) que não cumpre o que promete”, fulmina. Sendo
contra o processo de impeachment, Chagas defende, alternativamente, que alguém
diga para ele que, "a partir de agora, tem que fazer assim”, o que pode
ser entendido como a defesa de um ultimato das cúpulas militares à seu Chefe
Supremo – o que, no caso, se parece com um "auto-golpe".
Nada
disto nos autoriza vaticinar que marchamos para o mesmo desfecho de 1964, dado
que as circunstâncias são outras e os atores também. Apenas sugere que voltamos
a um ciclo de crises que parecia superado no séc. XXI, mas que na verdade não o
foi. E isto não se deve exclusivamente à mentalidade militar, supostamente
tutelatória da cidadania e monopólica do patriotismo, mas, sobretudo, a uma
incapacidade crônica das elites civis em olharem para além do próprio umbigo,
corporativo ou de domínio, engendrando soluções mais amplas e efetivas sobre os
problemas do desenvolvimento, da desigualdade e da justiça no país, que nos
enredaram numa teia de estagnação, pobreza e corrupção que parece não ter
solução.
Persistir em ignorar tal realidade ou tentar mascará-la com as práticas do neopatrimonialismo/corporativismo ou as narrativas mágicas das velhas ideologias/ortodoxias dos "salvadores" de plantão, tem tudo para nos chafurdar ainda mais na crise, fechando o círculo de nossa mais nova viagem redonda – outra velha sina da civilização brasileira.
*Hamilton Garcia de Lima Cientista Político, UENF/DR[i]) Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro
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