Se
a Constituição não manda em Bolsonaro, é sinal de que a cadeira está vazia:
hoje, o verdadeiro presidente é o vírus da pandemia
A
pandemia tem parecido o cúmplice sorrateiro do desgoverno eleito na alucinação
eleitoral de 2018. Todos os atos impróprios e descabidos do governante
desinteressado por suas obrigações ocultam-se na invisibilidade do vírus. Um
vírus governa a República, no lugar do eleito e empossado.
O
vírus não tem como reconhecer-se na humanidade dos que aniquila. Não tem medo.
Atravessa grades, frestas, orifícios. Viaja gratuitamente em lágrimas,
espirros, cuspidas, suor e xingamentos.
Há uma concepção sociológica que o vírus desconhece, mas que a ele também se aplica. A de personificação de algo, e é por aí que ele pode ser agarrado. Se o vírus ataca pelas vias respiratórias, ataca também por meio dos que o personificam, dos que lhe emprestam o corpo e a mente para que possa induzir à transgressão e multiplicar-se.
Isso
acontece com muitas enfermidades. Daí que a medicina as combata e combata os
vírus não só com remédios e vacinas, mas também com regras sociais. Todas as
doenças tendem a se tornar doenças sociais porque desorganizam a sociedade,
criam incerteza, abreviam destinos, desamparam.
Esse
vírus de agora é como espírito maligno. Ele se apossa não só do corpo de suas
vítimas, mas também da mente e da alma de seus cúmplices, agentes, os
antissociais, pobres de espírito e curtos de inteligência.
Já
a vulnerabilidade de um governante ao vírus vem do fato de que um presidente da
República nunca é ele mesmo nem pode ser. Assim, esse atual não é quem julga
ser. Suas bravatas antissociais e antipolíticas são o indício forte de que não
tem consciência de que o que pensa ser não é o que institucionalmente tem que
ser.
Enquanto
homem da rua, dos palavrões e dos xingamentos, é muito menos do que tem que
personificar, que é o mandato definido na Constituição e nas leis.
A
Constituição manda nele. Se ela não manda nele, se ele não a personifica, é
porque ele não está lá. É sinal de que a cadeira está vazia. É por isso que se
pode dizer que, hoje, o verdadeiro presidente é o vírus da pandemia, que, ao
chegar por via aérea e encontrar a cadeira vazia, ocupou-a. E ocupa nossa
paciência 24 horas por dia. Só se fala nele. No que ele faz e no que o eleito
deixa de fazer.
Por
ser a personificação de uma instituição, o presidente da República não é um só,
mas a síntese de várias instituições. Porque o presidente não é o corpo físico
das bravatas nos ajuntamentos. O presidente é a Presidência, parte do corpo do
poder disperso pelo Congresso e pela Justiça. Enquanto cidadão, na estrutura de
poder, ele não é ninguém.
Desgovernado
o país, as forças sociais inquietas com a barbárie de um governo desconectado
da realidade vem gestando o governo paralelo. O governo paralelo expressa,
concretamente, a colocação do mandato do presidente da República entre
parênteses.
Desde
1º de janeiro de 2019, ele não governa. A deplorável reunião do governo, no dia
22 de abril, provou que já não há diferença entre a rua e o palácio.
Licenciou-se no minuto seguinte ao da posse para empenhar-se na campanha
eleitoral pela reeleição em 2022. Quer continuar sem ter começado.
Disseram
isso os presidentes da Câmara e do Senado em carta ao embaixador da China para
pedir a seu governo solidariedade e o envio das vacinas de que desesperadamente
carecemos. Esclareceram que eles também são governo, cuja voz é a voz do poder,
e não a voz de quem se omite e erra.
O
governo paralelo vem se constituindo através de iniciativas, como essa e a dos
governadores quanto à questão da vacina, que se articulam e mobilizam forças
auxiliares, no Congresso e fora dele, para substituir o vírus que desgoverna e
ameaça milhões de vidas. O STF também governa ao julgar demandas de
restabelecimento da ordem com base no bom senso que o vírus não tem.
O
julgamento recente da Lava-Jato altera as condições políticas da ambição de
Bolsonaro e dos que o cercam. A decisão do ministro Fachin se traduz no retorno
do protagonismo político de Lula, o governo paralelo cederá lugar ao governo
alternativo. Poderá ser aquele a quem o dedo de Lula apontar.
Lula
tem voz alta e poderá expressar aquilo que de fato é, em face do que Bolsonaro
não é nem tem condições de ser. Lula é observador atento da realidade, conhece
o Brasil, sabe dialogar com a massa dos desvalidos que se multiplicou depois
que o vírus tomou conta da nossa vida e do poder.
Não
se trata da canonização de Lula, mas de realismo político. É mais potencial
interlocutor da comunidade internacional do que Bolsonaro. Abre portas na crise
sem janelas. Bolsonaro deu prioridade à obsessão de armar potenciais inimigos
da sociedade em vez de vacinar a população. É aliado do vírus que o dominou.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).
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