O
cenário mais provável para 2022 é de um peso enorme para o antibolsonarismo
A
volta de Lula para a ribalta da política fez as peças do tabuleiro de 2022 se
mexerem. O primeiro a sentir essa mudança foi o presidente Bolsonaro, que
colocou até máscara e teve de trocar o ministro da Saúde, mais pelo discurso de
São Bernardo do que pelas mais de 270 mil mortes causadas pela covid-19. Já a
oposição de Centro ficou muito abalada pela decisão do STF e reagiu na linha do
antipetismo. É natural que a maioria dos contrários ao PT reagisse
negativamente, inclusive Ciro Gomes, que terá de conquistar boa parte da
centro-esquerda. Passado o choque inicial, deveria vir o diagnóstico eleitoral.
Neste ponto, uma coisa é clara: o principal adversário do Centro é Bolsonaro.
Entender quem é seu oponente central e descobrir como enfrentá-lo são os dois passos estratégicos para quem quer entrar na disputa política. O posicionamento de Bolsonaro e do lulismo no jogo político está bem claro. Ainda há dúvidas sobre como Ciro Gomes vai se reposicionar. Mas a maior incógnita está no Centro oposicionista (em contraposição ao Centrão), que congrega vários partidos e candidatos com pretensões presidenciais, tem importantes governos estaduais e capitais em suas mãos, além de ter um suporte de importantes grupos sociais. É um cabedal político muito forte, mas que por ora está fragmentado e não consegue produzir um projeto eleitoral nítido.
O
discurso contra a polarização gerada pelo bolsonarismo versus o lulismo serve
para criar uma identidade, mas é claramente insuficiente para se vencer a eleição.
Três razões embasam esse argumento. A primeira é que o jogo político da
redemocratização tem se organizado de forma polarizada, no sentido estrito da
ciência política: duas forças têm predominado na eleição presidencial, com
pouco espaço para uma terceira via.
Na
primeira eleição direta da redemocratização, houve uma grande dispersão no
primeiro turno, particularmente porque os partidos estavam ainda se organizando
e se posicionando frente à sociedade. Foi só depois do impeachment do
presidente Collor que se estruturou o eixo polarizado do sistema político
brasileiro. Assim, de 1994 a 2014, a disputa presidencial brasileira foi
orientada pela competição entre PSDB e PT. Ou, nos termos do excelente livro de
César Zucco e David Samuels (“Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans:
Voting Behavior in Brazil”), criou-se uma dicotomia entre petismo e antipetismo
que estruturou as preferências dos eleitores por pelo menos 20 anos. Em todas
as eleições presidenciais da redemocratização, o Partido dos Trabalhadores
esteve no segundo turno, perdendo em quatro ocasiões (1989, 1994, 1998 e 2018)
e ganhando nas outras quatro vezes (2002, 2006, 2010 e 2014).
A
força petista, bastante vinculada à liderança do ex-presidente Lula, é algo que
tem levado os demais grupos políticos a lutar para ser o outro lado desse jogo.
Seguindo essa lógica, o Centro disputa com Bolsonaro para ver quem será o
adversário do petismo. Esse raciocínio foi esquecido por muitos analistas
políticos e, especialmente, por lideranças centristas de oposição. Talvez
estivessem pensando que tal fator não apareceria mais em 2022, pois o
antipetismo cresceria de tal forma que a escolha seria de um nome não-petista
para competir com Bolsonaro.
E
aqui entra a segunda razão pela qual o Centro tem de ir além da narrativa da
polarização entre PT e Bolsonaro: o principal eixo da eleição de 2022 será o
antibolsonarismo, do mesmo modo que a disputa presidencial de 2018 teve no
antipetismo sua peça-chave. A crise atual é imensa, mas claro que o governo
pode se recuperar às vésperas do pleito. Só que o cenário político aparenta ter
mais pedras e espinhos no caminho bolsonarista do que esperança de uma
reeleição tranquila.
A
lista de fatos problemáticos para o governo é extensa. A crise da pandemia terá
seus piores momentos nos próximos três meses, quando a cobertura vacinal será
muito baixa e não haverá ainda vacinas para um bom contingente da população. As
mortes se multiplicarão e serão cada vez mais dramáticas, como foram em Manaus.
Num cenário como esse, além da revolta de boa parte da população com o fracasso
da política de saúde, não há a menor chance de a economia andar no primeiro
semestre. O auxilio emergencial agora será bem menor e a popularidade obtida no
ano passado não se repetirá.
Nos
próximos meses, incluindo o início do segundo semestre, Bolsonaro perderá muita
popularidade. Não se sabe ainda qual é o seu piso, mas se chegar mais próximo
dos 20%, o Centrão cobrará caro para evitar o impeachment ou a transformação do
presidente num “lame duck” (pato manco), sem autoridade até com quem lhe serve
o café. Esse preço causará mais danos sobre a imagem presidencial, bem como uma
possível piora na parte fiscal. Tudo isso num contexto em que os juros poderão
subir para se evitar a inflação, em que o dólar não vai cair porque o
descrédito do Brasil só acabará com uma mudança radical desse governo (algo
difícil de acontecer) ou quando assumir o próximo.
O
aumento da cobertura vacinal e o impulso econômico vindo de fora poderiam ser
dois empurrões para a recuperação econômica brasileira e, com isso, o
presidente poderia subir novamente nos indicadores de popularidade. É uma
hipótese possível, mas que ainda terá que competir com vários escândalos
envolvendo a família Bolsonaro e que vão assombrar o Planalto até o fim do
mandato. Soma-se a isso o fracasso em outras áreas de políticas públicas, como
educação, meio ambiente e garantia de direitos humanos nas questões de gênero e
raça, para não falar do sepultamento de qualquer política anticorrupção.
Todos
esses fatos tendem a levar um grande contingente de eleitores a não votar em
Bolsonaro, mesmo que ocorra alguma bonança econômica, até porque esta será
suave e sem as proporções de um Plano Real ou do desempenho do segundo governo
Lula. Neste sentido, uma eventual reeleição de Bolsonaro tenderia a ser mais
parecida com a de Dilma, isto é, de alguém que ganha com uma diferença ínfima e
que teria uma altíssima rejeição, inclusive de grupos com forte capacidade de
mobilização. Uma vitória assim é a antessala para a ingovernabilidade, como já
vimos por duas vezes desde a redemocratização.
O
cenário mais provável para 2022, portanto, é de um peso enorme para o discurso
antibolsonarista. Isso não impede Bolsonaro de chegar ao segundo turno, do
mesmo modo que o PT foi para a disputa final em 2018 quando foi o auge do
antipetismo. Mas, nesta situação, Bolsonaro e suas ideias se transformam no
espantalho a ser batido. Quem percebeu isso? Lula, muito mais do que o PT, e
num só discurso se colocou como mais antibolsonarista do que o Centro em dois
anos de mandato. Ao fazer esse movimento, o ex-presidente tornou-se o líder
mais apto a conquistar o eleitorado mais de centro-esquerda e os eleitores das
classes D e E. Se o centrismo de oposição não radicalizar seu viés contrário ao
presidente da República, inclusive encampando o impeachment ou atuando para
criar CPIs, perderá o trem da história.
Uma
ressalva poderia ser feita pela oposição de Centro: contava-se com uma
candidatura petista que não fosse Lula. Na verdade, não há ainda nem a certeza
de que o ex-presidente poderá ser candidato, visto que o STF é a instituição
menos previsível da democracia brasileira. O que poderia ser um alento para os
antipetistas é, antes de mais nada, miopia, uma vez que, sendo candidato ou
não, Lula terá muito mais influência do que na eleição de 2018, seja porque o
antipetismo será menor e a história da “prisão injusta” vai conquistar mais
gente agora, seja porque Bolsonaro estará em declínio.
Esta
é a terceira razão que deveria levar o Centro a criar uma estratégia mais
consistente do que o mero discurso da polarização: sendo ou não candidato, a
influência de Lula tende a ser capaz de garantir mais de 30% dos votos do
primeiro turno, se não mais - afinal, Fernando Haddad, nome nacionalmente pouco
conhecido, com Lula preso e no auge do antipetismo, teve 29,28% na votação
inicial. Em outras palavras: é muito difícil que um representante do lulismo
não esteja no segundo turno. O outro oponente sairá da luta entre Bolsonaro e
seus outros adversários.
Encurralar
Bolsonaro e lhe fazer uma dura oposição, que torne claro o seu antibolsonarismo
para a população, é o melhor caminho para o Centro ganhar um lugar no segundo
turno da eleição presidencial. Para tanto, é preciso começar agora esta tarefa,
e não deixar para o ano que vem, marcando por um longo tempo uma posição, de
modo a torná-la eleitoralmente consistente. Poderia começar por defender uma
visão favorável ao impeachment ou a uma responsabilização pública mais forte do
presidente. Quem estiver nitidamente com a maioria do povo nos próximos meses,
que serão os piores da pandemia, poderá ser recompensado em termos de apoio
político.
Mas
essa atuação centrista deve ser precedida por uma proposta alternativa de
políticas públicas e, sobretudo, da união em torno de uma posição
antibolsonarista, criando uma identidade mais relevante do que a narrativa da
polarização. Muitos do Centro já falam num candidato único, que seria a solução
política mais efetiva, porém, esse esforço só fará sentido para se chegar ao
segundo turno se conseguirem destronar Bolsonaro da posição de adversário
preferencial do PT.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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