sexta-feira, 19 de março de 2021

Augusto de Franco* - A janela que temos para tirar Bolsonaro

1 – Os populismos são hoje, no Brasil e no mundo, os principais adversários da democracia. Estudos empíricos têm mostrado que governos populistas – sejam da direita ou da esquerda – têm um efeito altamente negativo sobre os sistemas políticos e levam a um risco significativo de erosão democrática. Eis algumas conclusões de uma avaliação recente:

a) Os populistas duram mais no cargo. Em média, os líderes populistas permanecem no cargo duas vezes mais do que os líderes democraticamente eleitos que não são populistas. Os populistas também são quase cinco vezes mais propensos do que os não-populistas a sobreviver no cargo por mais de dez anos.

b) Os populistas geralmente deixam o cargo em circunstâncias dramáticas. Apenas 34% dos líderes populistas deixam o cargo após eleições livres e justas ou porque respeitam os limites dos mandatos. Um número muito maior é forçado a renunciar ou é impedido, ou não deixa o cargo.

c) Os populistas são muito mais propensos a prejudicar a democracia. No geral, 23% dos populistas causam um retrocesso democrático significativo, comparado com 6% dos líderes democraticamente eleitos não populistas. Em outras palavras, os governos populistas são cerca de quatro vezes mais propensos do que os não-populistas a prejudicar as instituições democráticas.

d) Os populistas frequentemente erodem os freios e contrapesos ao executivo. Mais de 50% dos líderes populistas alteram ou reescrevem as constituições de seus países, e muitas dessas mudanças ampliam os limites dos mandatos ou enfraquecem os controles sobre o poder executivo. As evidências também sugerem que os ataques dos populistas ao Estado de Direito abrem caminho para uma maior corrupção: 40% dos líderes populistas são acusados ​​de corrupção, e os países que lideram experimentam quedas significativas nos rankings internacionais de corrupção.

e) Os populistas atacam os direitos individuais. Sob o domínio populista, a liberdade de imprensa cai em cerca de 7%, as liberdades civis em 8% e os direitos políticos em 13% (*).

2 – Quando um populismo (de esquerda ou de direita) chega a ultrapassar 20% de audiência é sinal de que já há um processo de autocratização em curso. Se, no entanto, dois populismos (de esquerda x de direita) polarizarem a cena política, cada qual com mais de 20% de audiência, então é porque a democracia já foi envenenada. Pode até não morrer, mas só se encontrar a tempo um antídoto eficaz.

3 – Todavia, se um processo eleitoral é antecipado, colocando em confronto dois populismos, cada qual com mais de 20% de audiência, então são quase nulas as chances de evitar a vitória de um dos polos se as demais forças não-populistas ficarem esperando o desfecho das eleições. Pode-se sempre apostar todas as fichas na loteria do calculismo eleitoreiro, mas aí a probabilidade de vitória é semelhante à de ganhar na loteria mesmo. Nestas circunstâncias, só algum movimento que desarrume o arranjo das forças políticas, desalinhe os blocos em formação e altere a configuração do ambiente onde se dá a disputa, pode nos livrar da dependência da trajetória recente.

4 – Um movimento desse tipo não pode surgir apenas a partir da vontade dos atores não-alinhados aos polos em disputa. É necessário que haja condições políticas objetivas para a sua deflagração: algo tão grave que seja capaz de mobilizar a indignação das pessoas comuns, independentemente de suas preferências eleitorais ou partidárias.

5 – No Brasil existem atualmente essas condições objetivas com a tragédia dos mais de 11 milhões de infectados e quase 300 mil mortos pelo SARS-CoV-2 e da condução criminosa do enfrentamento à pandemia por parte do atual governo. Essa janela de maior fragilidade de Bolsonaro – e de oportunidade de parar a sua obra de destruição de vidas e de depredação da democracia – está aberta agora, com o agravamento da segunda onda do novo coronavírus, mas pode se fechar bem antes do início do segundo semestre.

6 – Portanto, o momento é propício para que um conjunto de atores políticos democráticos, não-populistas, de forma pluripartidária ou não-partidária, se apresente à nação exigindo o fim da matança em curso e dos ataques cotidianos ao regime democrático por parte do chefe de governo, de sua família e das forças obscurantistas que o apoiam.

7 – Antes de qualquer coisa, Bolsonaro tem que ser declarado, por esse conjunto de democratas, como um presidente ilegítimo – não porque não tenha sido eleito legitimamente e sim porque não governou legitimamente, colocando em risco vidas humanas que deveria proteger e ameaçando a paz social, a harmonia entre os poderes os demais fundamentos da democracia.

8 – Essa declaração deve desencadear uma ação da cidadania pela vida e não deve anunciar um nome particular para concorrer às eleições de 2022. É uma intervenção no trágico presente em que vivemos em 2021. Sem uma ação da cidadania pela vida, Bolsonaro não cairá.

9 – É uma recusa a manter no poder, por mais de vinte meses, um facínora cujo tempo restante de governo não se pode mais contar apenas em número de dias, mas em vidas humanas (às centenas de milhares), em devastação do meio ambiente, em extinção de direitos de populações tradicionais, em destruição dos sistemas públicos de saúde e educação, em desvirtuamento da segurança pública, em desmoralização das forças armadas e policiais, em uso privado e escuso dos aparatos de segurança, informação e controle do Estado, em desproteção aos mais pobres e aos pequenos e médios empreendedores, em negação de direitos de minorias sociais, em degeneração e aparelhamento das instituições democráticas, em ataques à imprensa, em estímulo ao caos para instalar uma guerra civil que jogará brasileiros (que o atual presidente quer armar) contra brasileiros.

10 – Tudo isso tem que ser parado agora. Um presidente que promove esses malfeitos tornou-se ilegítimo e não pode ser mantido no poder para que complete sua obra de destruição. Bolsonaro deve ser instado a renunciar, ser interditado ou sofrer um processo de impeachment. Por pior que seja, um governante não cai sem ter quem o derrube. Se os deputados federais e os senadores não vão assumir a liderança desse movimento, a sociedade deve fazê-lo.

11 – Esse movimento amplo não pode recusar quem queira apoiá-lo, mas também não pode servir de palco para que uma força neopopulista de esquerda substitua a força populista-autoritária e reacionária de extrema-direita. Essa troca não convém à democracia. Não se pode substituir o populismo que está no poder por outro populismo, iliberal e majoritarista, que já esteve no poder e que pretenda reeditar a maligna dinâmica do “nós” contra “eles”, que se baseie numa visão de que a sociedade está atravessada apenas por uma clivagem que opõe o povo às elites e que pretenda falar como único representante legítimo do povo.

12 – Por isso, um movimento desse tipo deve ser lançado e impulsionado pelas forças democráticas não-populistas que, conquanto agora dispersas, ainda constituem – como mostraram as eleições municipais de 2020 – a maioria da nação. Chegou a hora de cogitados pré-candidatos não-populistas – como Dória, Eduardo Leite, Mandetta, Huck e Amoedo – se mexerem. Chegou a hora de partidos como o Cidadania, o Verde, a Rede, o PSDB e até parte do MDB e do DEM entenderem que, se não tomarem uma atitude, serão cúmplices da tragédia. Nada disso é para antecipar as eleições, mas é para exigir a saída do populista-autoritário, reacionário de extrema-direita, corrupto e genocida Jair Messias Bolsonaro.

13 – Deixar a oportunidade passar, deixar esta janela se fechar, é se render à marcha insana de derruição da vida e da democracia que prosseguirá avançando se nada for feito. É preciso agir agora. Em 2021. Não ficar esperando 2022. Não dá para precificar as mortes que virão e assumir esse custo em troca de ter um bom desempenho nas eleições de 2022. Quinhentos mil brasileiros mortos não têm preço.

14 – Os próximos 90 dias serão cruéis. Falta de vacinas, vacinação a passo de tartaruga, falta de coordenação nacional de enfrentamento à Covid-19, auxílio emergencial pífio, presidente da República sabotando todos os esforços de distanciamento social, enganando a população com remédios falsos, ridicularizando as máscaras e tentando colocar a culpa por tudo nos governadores e prefeitos (inclusive pela inflação dos alimentos e pelo desemprego), colapso hospitalar, mais mortes (talvez chegando ao patamar de 4 mil diárias) e, os deuses nos livrem, novas variantes do coronavírus mais infecciosas, mais ofensivas e mais resistentes às vacinas. Mas esses 90 dias são tudo que temos. São a janela para tirar Bolsonaro.

(*) Cf. The Populist Harm to Democracy: An Empirical Assessment de Jordan Kyle (Senior Fellow and Chief of Data and Analytics, Renewing the Centre) & Yascha Mounk (Executive Director, Renewing the Centre), Tony Blair Institut for Global Change, 26th December 2018.

*Augusto de Franco, Consultor, palestrante e escritor

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