sexta-feira, 19 de março de 2021

Paulo César Nascimento* - Frente ampla ou centro-esquerda? O imbróglio político brasileiro

Vozes políticas têm defendido, já há algum tempo, a ideia da formação de uma frente ampla para concorrer às eleições presidenciais de 2022. Esta parece, à primeira vista, uma proposta razoável e promissora: aglutinar, em torno de um candidato, uma miríade de forças políticas para fazer frente aos adversários considerados mais importantes: Bolsonaro e o PT. Tal frente ampla, de matriz centrista, evitaria uma polarização entre radicais à direita e esquerda, garantindo, dessa forma, a continuidade da democracia brasileira. A estratégia de frente ampla foi uma fórmula política exitosa no contexto da luta contra a ditadura militar, quando várias correntes políticas se uniram pela redemocratização do país, desde setores dissidentes das forças armadas e do partido da situação, a ARENA, até o MDB e outras forças progressistas e de esquerda.

No entanto, uma vez que examinamos a ideia de frente ampla na realidade brasileira atual, podemos constatar que ela sofre de incoerência lógica e dificuldades políticas intransponíveis. Uma frente ampla geralmente elege um único adversário – um governante autoritário, um grupo ditatorial militar, ou uma elite reacionária. A própria lógica dos regimes ditatoriais, que exclui da política toda e qualquer força que lhes faça oposição, ajuda a amalgamar tal aliança. Contudo, a frente que desejam construir atualmente se propõe a combater tanto Bolsonaro e seus aliados – Centrão ou parte dele, liberais de direita cooptados, etc. – como, ainda, o candidato do PT, o PDT de Ciro Gomes e a possível candidatura mais à esquerda de Guilherme Boulos. Estamos, dessa forma, diante de uma nova jabuticaba política brasileira: uma “frente ampla” que, ao invés de tentar isolar um adversário, pretende lutar contra praticamente todo mundo...

A formação dessa frente ampla enfrenta ainda outros problemas. O sistema eleitoral brasileiro de dois turnos, a proibição de coligações para eleições proporcionais e a cláusula de barreira incentivam a fragmentação de candidaturas presidenciais no primeiro turno, ao estimular os partidos a lançarem candidatos próprios para o Congresso, de forma a obter representação parlamentar, fundos partidário e eleitoral, além de tempo na televisão e no rádio. Ou seja, incentivos poderosos demais para serem ignorados pelos partidos políticos e seus candidatos.

O segundo turno, ao contrário, força os dois candidatos vitoriosos a ampliarem seu eleitorado, buscando apoio daqueles que não passaram do primeiro turno. Mas terão dificuldades nesse esforço de ampliação se desde o início da eleição concentrarem seu fogo em vários adversários, como os defensores da frente ampla propõem. Os desentendimentos entre Haddad e Ciro Gomes na eleição de 2018 são um bom exemplo disso. No segundo turno, o candidato do PDT recusou-se a explicitar seu apoio ao PT devido a desavenças e ataques mútuos durante o primeiro turno.

Além disso, em qualquer parte do mundo democrático, polarizações eleitorais são comuns: trabalhistas e conservadores no Reino Unido, socialistas ou sociais-democratas versus democrata-cristãos em outros países da Europa, democratas e republicanos nos Estados Unidos, etc. E no Brasil, de 1994 até 2014, houve polarização entre PSDB e PT, sem que por isso houvesse qualquer desestabilização à democracia. Não é, portanto, a polarização em si que causa instabilidade, mas sim quando ela se dá em um contexto de instituições democráticas débeis e falta de cultura política democrática. A polarização, ao contrário, pode até ter um caráter educativo, já que explicita de forma mais clara as plataformas políticas em disputa, facilitando as opções dos eleitores.

A estratégia frentista defendida para 2022 no Brasil peca ainda por colocar no mesmo nível adversários que vêm de tradições muito diferentes. O bolsonarismo se remonta à doutrina do ex-ministro do Exército Silvio Frota e dos setores linha-dura do regime militar, acrescido posteriormente pelo neopentecostalismo fundamentalista e as ideias de extrema-direita do jornalista e “influencer” Olavo de Carvalho. Já o PT deita raízes nas lutas sindicais do início da redemocratização brasileira, conseguindo, ao longo do tempo, apoio expressivo entre a intelectualidade e outros setores progressistas da sociedade brasileira. Certo é que o PT demonstrou resistência a alianças em que não exercesse a liderança, além de montar esquemas de corrupção em que estavam envolvidos parte de seus quadros dirigentes. Mas essas práticas também estiveram presentes em muitos partidos brasileiros, alguns dos quais, como o PSDB, sempre foram cotados para integrar a frente política. Se a ideia dos que defendem a frente ampla é olhar para o futuro e não ficar preso a desavenças e erros do passado, isso deve então valer para todos, inclusive o lulopetismo.  

A frente ampla proposta pretende constituir-se a partir de um centro político. Mas por definição, todo centro político sofre de falta de autonomia e identidade política, dependente como é, para sua existência, de uma direita e esquerda radicalizadas. O centro vive da ideia de ser um contraponto moderado em relação a estes dois polos, mas se a direita e a esquerda, como tem feito agora tanto Bolsonaro como o PT, adotarem uma postura mais moderada, acenando para ao apoio do proverbial “eleitor mediano”, o centro pode perder sua própria raison d’être e esvaziar-se.

Outro perigo é o centro ser engolido por um dos extremos à direita ou à esquerda, em uma conjuntura de radicalização política. Nesses casos, o fato de reunir forças muito díspares e sem coerência política torna-se um empecilho para uma frente ampla centrista enfrentar um adversário com propostas radicais claras. Foi o que aconteceu com a frente montada por Geraldo Alckmin do PSDB na disputa pelas eleições presidenciais de 2018. Agregava uma vasta quantidade de siglas partidárias: DEM, PP, PR, PRB, SD, PTB, PSD e PPS, em sua maioria agremiações fisiológicas, sem qualquer denominador político comum. Alguns filisteus até tentarem tornar essa sopa de letras mais palatável, envolvendo-a em molho gramsciano. Mas a estratégia de apresentá-la como um “novo bloco histórico”, o qual, através de uma “guerra de posição”, iria paulatinamente introduzir transformações no país, à maneira de uma “revolução passiva”, não colou e a candidatura de Alckmin desmoronou ainda no primeiro turno da eleição, com boa parte de seus integrantes passando para o lado do candidato Bolsonaro.

O que podemos extrair dessa e de outras experiências é que a estratégia da frente ampla, tão adequada para remover governos autoritários, mostra enorme fraqueza política quando se trata de eleições em dois turnos em uma democracia multipartidária. Talvez uma opção mais promissora seja a formação de um bloco de centro-esquerda com clara identidade política e que canalize sua oposição contra Bolsonaro e seu governo, que constituem o principal problema político do Brasil. Uma aliança de partidos de centro-esquerda teria maior propensão para enfrentar a questão social, preocupação histórica da esquerda e problema crucial no Brasil. Além disso, e diferentemente das esquerdas ortodoxas, é característico da centro-esquerda vincular a questão social com o aprofundamento da democracia, o que significa lutar pela manutenção e aperfeiçoamento das instituições democráticas. E, em eventual segundo turno, um bloco desse tipo poderia ampliar sua votação tentando agregar correntes liberais e de centro-direita, além de outras forças de esquerda, sem perder sua identidade nuclear de centro-esquerda e evitando dessa forma tornar-se um aglomerado disforme de tendências políticas e ideologias, sem norte e sem capacidade de atuação conjunta.   

*Paulo César Nascimento, cientista político, UnB

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