No entanto, uma vez que examinamos a ideia de frente ampla na realidade brasileira atual, podemos constatar que ela sofre de incoerência lógica e dificuldades políticas intransponíveis. Uma frente ampla geralmente elege um único adversário – um governante autoritário, um grupo ditatorial militar, ou uma elite reacionária. A própria lógica dos regimes ditatoriais, que exclui da política toda e qualquer força que lhes faça oposição, ajuda a amalgamar tal aliança. Contudo, a frente que desejam construir atualmente se propõe a combater tanto Bolsonaro e seus aliados – Centrão ou parte dele, liberais de direita cooptados, etc. – como, ainda, o candidato do PT, o PDT de Ciro Gomes e a possível candidatura mais à esquerda de Guilherme Boulos. Estamos, dessa forma, diante de uma nova jabuticaba política brasileira: uma “frente ampla” que, ao invés de tentar isolar um adversário, pretende lutar contra praticamente todo mundo...
A
formação dessa frente ampla enfrenta ainda outros problemas. O sistema
eleitoral brasileiro de dois turnos, a proibição de coligações para eleições
proporcionais e a cláusula de barreira incentivam a fragmentação de
candidaturas presidenciais no primeiro turno, ao estimular os partidos a lançarem
candidatos próprios para o Congresso, de forma a obter representação
parlamentar, fundos partidário e eleitoral, além de tempo na televisão e no
rádio. Ou seja, incentivos poderosos demais para serem ignorados pelos partidos
políticos e seus candidatos.
O
segundo turno, ao contrário, força os dois candidatos vitoriosos a ampliarem
seu eleitorado, buscando apoio daqueles que não passaram do primeiro turno. Mas
terão dificuldades nesse esforço de ampliação se desde o início da eleição
concentrarem seu fogo em vários adversários, como os defensores da frente ampla
propõem. Os desentendimentos entre Haddad e Ciro Gomes na eleição de 2018 são
um bom exemplo disso. No segundo turno, o candidato do PDT recusou-se a
explicitar seu apoio ao PT devido a desavenças e ataques mútuos durante o
primeiro turno.
Além
disso, em qualquer parte do mundo democrático, polarizações eleitorais são
comuns: trabalhistas e conservadores no Reino Unido, socialistas ou
sociais-democratas versus democrata-cristãos em outros países da Europa,
democratas e republicanos nos Estados Unidos, etc. E no Brasil, de 1994 até
2014, houve polarização entre PSDB e PT, sem que por isso houvesse qualquer
desestabilização à democracia. Não é, portanto, a polarização em si que causa
instabilidade, mas sim quando ela se dá em um contexto de instituições
democráticas débeis e falta de cultura política democrática. A polarização, ao
contrário, pode até ter um caráter educativo, já que explicita de forma mais
clara as plataformas políticas em disputa, facilitando as opções dos eleitores.
A
estratégia frentista defendida para 2022 no Brasil peca ainda por colocar no
mesmo nível adversários que vêm de tradições muito diferentes. O bolsonarismo
se remonta à doutrina do ex-ministro do Exército Silvio Frota e dos setores
linha-dura do regime militar, acrescido posteriormente pelo neopentecostalismo
fundamentalista e as ideias de extrema-direita do jornalista e “influencer”
Olavo de Carvalho. Já o PT deita raízes nas lutas sindicais do início da
redemocratização brasileira, conseguindo, ao longo do tempo, apoio expressivo
entre a intelectualidade e outros setores progressistas da sociedade brasileira.
Certo é que o PT demonstrou resistência a alianças em que não exercesse a
liderança, além de montar esquemas de corrupção em que estavam envolvidos parte
de seus quadros dirigentes. Mas essas práticas também estiveram presentes em
muitos partidos brasileiros, alguns dos quais, como o PSDB, sempre foram cotados
para integrar a frente política. Se a ideia dos que defendem a frente ampla é
olhar para o futuro e não ficar preso a desavenças e erros do passado, isso
deve então valer para todos, inclusive o lulopetismo.
A
frente ampla proposta pretende constituir-se a partir de um centro político. Mas
por definição, todo centro político sofre de falta de autonomia e identidade
política, dependente como é, para sua existência, de uma direita e esquerda
radicalizadas. O centro vive da ideia de ser um contraponto moderado em relação
a estes dois polos, mas se a direita e a esquerda, como tem feito agora tanto
Bolsonaro como o PT, adotarem uma postura mais moderada, acenando para ao apoio
do proverbial “eleitor mediano”, o centro pode perder sua própria raison d’être e esvaziar-se.
Outro
perigo é o centro ser engolido por um dos extremos à direita ou à esquerda, em
uma conjuntura de radicalização política. Nesses casos, o fato de reunir forças
muito díspares e sem coerência política torna-se um empecilho para uma frente
ampla centrista enfrentar um adversário com propostas radicais claras. Foi o
que aconteceu com a frente montada por Geraldo Alckmin do PSDB na disputa pelas
eleições presidenciais de 2018. Agregava uma vasta quantidade de siglas
partidárias: DEM, PP, PR, PRB, SD, PTB, PSD e PPS, em sua maioria agremiações fisiológicas,
sem qualquer denominador político comum. Alguns filisteus até tentarem tornar essa
sopa de letras mais palatável, envolvendo-a em molho gramsciano. Mas a estratégia
de apresentá-la como um “novo bloco histórico”, o qual, através de uma “guerra
de posição”, iria paulatinamente introduzir transformações no país, à maneira
de uma “revolução passiva”, não colou e a candidatura de Alckmin desmoronou
ainda no primeiro turno da eleição, com boa parte de seus integrantes passando
para o lado do candidato Bolsonaro.
O
que podemos extrair dessa e de outras experiências é que a estratégia da frente
ampla, tão adequada para remover governos autoritários, mostra enorme fraqueza
política quando se trata de eleições em dois turnos em uma democracia
multipartidária. Talvez uma opção mais promissora seja a formação de um bloco
de centro-esquerda com clara identidade política e que canalize sua oposição
contra Bolsonaro e seu governo, que constituem o principal problema político do
Brasil. Uma aliança de partidos de centro-esquerda teria maior propensão para
enfrentar a questão social, preocupação histórica da esquerda e problema
crucial no Brasil. Além disso, e diferentemente das esquerdas ortodoxas, é
característico da centro-esquerda vincular a questão social com o
aprofundamento da democracia, o que significa lutar pela manutenção e
aperfeiçoamento das instituições democráticas. E, em eventual segundo turno, um
bloco desse tipo poderia ampliar sua votação tentando agregar correntes liberais
e de centro-direita, além de outras forças de esquerda, sem perder sua
identidade nuclear de centro-esquerda e evitando dessa forma tornar-se um
aglomerado disforme de tendências políticas e ideologias, sem norte e sem capacidade
de atuação conjunta.
*Paulo César Nascimento, cientista político, UnB
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