Bolsonaro ainda
não deu sinais claros de que compreende o tamanho do buraco no qual entra cada
vez mais fundo
A pergunta óbvia
feita em toda parte e por toda gente diante da troca de guarda (não de comando)
no Ministério da Saúde é se isso corresponderá a uma mudança de atitude do
presidente da República no trato da crise sanitária que levou o Brasil a um
lugar degradante na cena global. Pelo conjunto da obra, Jair Bolsonaro já havia
conduzido o país à situação de pária. No particular da pandemia, nos transformamos
em ameaça mundial.
A devastação de vidas, valores, procedimentos e imagem não sensibiliza o chefe da nação. Ou melhor, não parece sensibilizar a ponto de ele perceber a relação direta entre o terreno daninho que cultiva em torno de si e a possibilidade de realizar seu prioritário plano de se reeleger para mais um mandato. Portanto, a depender dele na essência não se modifica.
A questão é que as coisas independem, as circunstâncias não necessariamente obedecem à vontade do rei, do presidente e às vezes nem se curvam às ordens dos ditadores. Por mais que as recentes pesquisas mostrem um aumento significativo de sua reprovação como governante, Bolsonaro ainda não deu sinais claros de que compreende o tamanho do buraco no qual entra cada vez mais fundo e segue achando que a resistência de 30% de adoradores basta para lhe assegurar vaga no segundo turno das eleições de 2022.
Muita gente
colabora com essa percepção ao fazer dessa constatação um mantra. O.k., a força
do poder é imensa e ainda não temos desenhado o quadro do antagonismo eleitoral
capaz de ameaçar o acesso do presidente à reta final do pleito. São duas
condições objetivas incontestáveis, mas a preço de hoje. Ou quase isso, porque,
ao navegar nas águas do exagero, o presidente derrapa nelas e reduz o próprio
valor.
Vai formando um
tal ambiente de desagrado, vai colecionando tal sorte de atritos que aquela
mesma força pode se materializar em sentido contrário atuando para fragilizar
seu poder. Quanto mais se pode, mais é preciso ter cuidado para não ultrapassar
limites. Seja da institucionalidade ou da paciência humana. Se Bolsonaro
abandonar o viés persecutório e olhar em volta, verá o tamanho do passivo de
prejuízos que contratou.
Não é por obra do
alheio que a maioria dos governadores se posiciona contra seus atos e palavras,
não havendo um só que se poste ao seu lado. E isso a despeito da dependência
dos estados em relação ao governo federal. É uma atmosfera de autonomia
política fadada a repercutir no processo eleitoral.
“O cultivo de
terreno daninho em torno de si pode fazer de Bolsonaro um pato manco em 2022”
No mundo jurídico, salvo exceções pautadas por interesses imediatos, o presidente da República não tem exatamente recebido acolhimento. O Supremo Tribunal Federal o enfrenta e mostra com quantos paus se faz uma canoa onde não cabe a convocação de um cabo e um soldado para resolver os problemas.
O empresariado
fica ali com receio de retaliações, mas obviamente no aguardo de uma
alternativa que livre o setor de ser empurrado para a renovação do contrato de
aluguel com o liberalismo de Paulo Guedes. Havendo chance, esse pessoal pula
fora.
O universo
político dá sempre o seu jeito na direção de melhores ventos. Bolsonaro
conseguirá produzir o favoritismo necessário para repetir a atração de 2018?
Nunca se sabe. De repente, aos 66 anos de idade e premido pela urgência, poderá
até se reinventar como pessoa, mas é improvável.
Hoje o que se tem
nessa seara é a inusitada situação de o presidente da República ter visto a
eleição de seus preferidos às presidências da Câmara e do Senado sem ter podido
mantê-los como aliados na saga da negação. Ambos têm um mês e pouco nos cargos
e até agora no que é importante, o manejo da pandemia, não fizeram um gesto nem
disseram uma palavra de respaldo às atitudes do presidente.
E aqui chegamos
ao eleitorado, de quem Jair Bolsonaro tanto precisará em 2022 e com quem
cometeu seu maior erro de cálculo ao considerar como uma ofensa pessoal a luta
pela vida e o medo da infecção. Privilegiou o nicho que segue suas diretrizes e
menosprezou o anseio da maioria por medidas de salvação.
Agora, com a
troca de guarda no ministério e adaptação do discurso a uma fase de mediana
aceitação da realidade, corre atrás desse público na esperança de que seja
agraciado com um lapso coletivo de memória.
Mas, conforme
decidiu recentemente o STF, o direito ao esquecimento “é incompatível com a
Constituição, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do
tempo”, fatos já registrados na história.
Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730
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