segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

José Goldemberg* - A Conferência de Madrid, fracasso ou sucesso?

- O Estado de S. Paulo

Revolução silenciosa no mundo está evitando um aumento assustador das emissões de gases-estufa

A 25.ª Conferência das Partes da Convenção do Clima (COP 25), que se realizou em Madrid, na Espanha, em dezembro de 2019, tem sido descrita frequentemente como um completo fracasso, porque as decisões mais importantes a serem tomadas foram adiadas para a COP 26, neste ano de 2020, em Glasgow, na Inglaterra.

Essas decisões dizem respeito, basicamente, a recursos financeiros, tais como a transferência de recursos dos países mais ricos para os países em desenvolvimento para ajuda-los a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa e reconhecer créditos por ações já realizadas no passado por esses países.

Há anos que as discussões sobre esses temas se arrastam. A impressão que se pode ter, portanto, é de que os temas essenciais estão sendo transferidos de ano para ano e que as reuniões da COP são realmente convescotes em que se reúnem diplomatas, ativistas ambientais, celebridades e ministros do meio ambiente, nos quais a retórica é elevada, mas não tem consequências práticas.

A realidade é bem mais complexa: apesar das emissões estarem aumentando, elas teriam aumentado muito mais sem as decisões tomadas pela Convenção do Clima assinada no Rio de Janeiro em 1992 e pelas COPs subsequentes, realizadas desde então, que alertaram o mundo todo para os problemas do aumento das emissões de carbono e o consequente aumento da temperatura global.

Essa conscientização estimulou inovações tecnológicas (e sua adoção) que tornaram a economia mundial mais eficiente e, por conseguinte, reduzindo as emissões de carbono. Por exemplo, automóveis produzidos hoje podem rodar 15 quilômetros com um litro de gasolina, os produzidos há 20 anos atrás necessitavam 1,5 litro para rodar a mesma distância. Lâmpadas LED iluminam muito mais com menos consumo de eletricidade.

Bruno Carazza* - A corrida do ouro

- Valor Econômico

Super Terça indica para onde vai o dinheiro nos EUA

Super Terça. A expressão já começou a pipocar nos noticiários, e a ouviremos cada vez mais até a sua data fatídica: 03/03. Nesse dia, eleitores de 14 Estados americanos, incluindo os mais populosos - Califórnia e Texas - definirão suas preferências entre os pré-candidatos dos partidos Democrata e Republicano. No complexo sistema de primárias das eleições americanas, cada Estado tem um peso, e o fato de que vários deles se posicionam no mesmo dia dá à Super Tuesday o título de grande prévia sobre o que poderá ocorrer até as Convenções Nacionais dos partidos, que apontarão oficialmente os dois nomes que aparecerão nas cédulas eleitorais em 03/11/2020.

Um exemplo da importância da Super Terça na definição dos destinos da eleição americana aconteceu no pleito anterior. Em 2016 o partido republicano iniciou a disputa com 17 pré-candidatos, até então a maior divisão em um único partido na história americana. Entre as opções, os senadores Ted Cruz, Marco Rubio, Rand Paul e Rick Santorum, o governador Jeb Bush, a super executiva Carly Fiorina (ex-HP) e Donald Trump.

As primárias iniciais (Iowa, New Hampshire, Carolina do Sul e Nevada) haviam surpreendido com um bom desempenho de Trump, mas até a realização da Super Terça, em 01/03, ele sofria uma perseguição acirrada de Ted Cruz e Marco Rubio. Após o fechamento das urnas, porém, Trump celebrou a vitória em 7 dos 11 Estados, e se colocou como o nome forte do partido republicano. Nas semanas seguintes, seus adversários foram abandonando a peleja, um a um, até a Convenção Nacional do Partido ratificar seu nome em 19 de julho.

Uma medida de como esse evento é um divisor de águas na eleição americana é o fluxo de doações para os comitês de cada um dos candidatos. Em 2016, até a realização da Super Terça, Trump havia recebido 16,6% de todas as contribuições feitas aos candidatos republicanos. Após a sua vitória, a maré virou: nas semanas seguintes ele capitaneou nada menos que 79,4% do dinheiro destinado ao seu partido.

Alex Ribeiro - Copom dá pesos iguais às metas de 2020 e 2021

- Valor Econômico

Pausa anunciada no ciclo de corte de juros, porém, não tem relação com deslocamento de alvo da política monetária

Vários analistas econômicos ficaram incomodados com o foco que o Banco Central passou a dar, de forma mais prematura do que de costume, para a meta de inflação do ano que vem, embora este ano mal tenha começado. Para alguns, seria apenas um expediente para não reduzir ainda mais os juros básicos agora, quando as projeções de inflação para 2020 indicam um bom espaço para a meta de taxa Selic cair abaixo dos atuais 4,25% ao ano.

A explicação mais provável: o Banco Central não abandonou a meta de 2020, mas também está de olho na meta de 2021. A política monetária, neste momento, foca com peso iguais os dois anos. É como se o alvo imediato fosse a média entre a meta de inflação deste ano, de 4%, e a do próximo, de 3,75%. O que levou o Comitê de Política Monetária (Copom) a anunciar a interrupção do ciclo de distensão monetária, na verdade, parece ter sido um balanço de riscos assimétrico, que atribui um peso maior aos fatores potencialmente altista da inflação do que os potencialmente baixistas.

Ao longo dos meses, o Banco Central desloca gradualmente o alvo da política monetária de um ano para o outro. Isso é feito com trocas sutis de termos e na ordem das palavras dos documentos oficiais do Copom, quase imperceptíveis a olhos menos atentos. Primeiro, o BC avisa que o foco da política “inclui, em menor grau, o ano seguinte”. Depois, diz que inclui o ano seguinte “de forma crescente, mas em menor grau”. Mais adiante, diz apenas que “inclui de forma crescente” o ano seguinte. Por fim, tira o ano corrente do radar e diz que o foco é só o ano seguinte.

Luiz Carlos Mendonça de Barros* - Deixando as coisas bem claras

- Valor Econômico

Apesar do revés com ritmo de recuperação, humor e apoio à política econômica mais liberal vão continuar melhorando

Na última sexta-feira fiz uma apresentação em seminário promovido pela Amcham em São Paulo onde me concentrei em mostrar a natureza atípica da recessão que vivemos nos últimos seis anos. Algo muito parecido com o conteúdo da minha coluna no Valor de janeiro passado, apenas com mais recursos audio-visuais do que um jornal impresso. O objetivo era mostrar, através de gráficos, o comportamento semelhante de uma série de indicadores de natureza econômica, inclusive de expectativas futuras dos agentes, na formação da bolha de demanda entre 2010 e 2014 e sua posterior ruptura entre 2015 a 2017.

Em todos eles temos o mesmo padrão: visualização do início da fase de formação da bolha com a curva da variável do gráfico se afastando da linha de tendência histórica e formando uma corcova para cima no gráfico. Posteriormente, com a explosão da bolha, a mesma corcova invertida se formando agora abaixo da linha de tendência. Finalmente, a partir de 2018, uma nova linha de tendência de crescimento se forma com uma inclinação ainda muito reduzida.

Pretendia contradizer a afirmação, sempre presente na mídia brasileira, de que vivemos a mais lenta das recuperações cíclicas da economia dos últimos tempos. Esta afirmação é incorreta pois não leva em conta a natureza da crise que vivemos sob o governo do PT, também ela nunca vista antes neste país. E esquece ainda que a macroeconomia da crise provocada por uma bolha de consumo como a que vivemos é diferente de recessões que ocorrem em um fim de ciclo econômico.

Fernando Gabeira - Política em tempos de vírus

- O Globo

Para que resposta a uma epidemia funcione na plenitude, é preciso que democracia ande a pleno vapor

Antes que venha o carnaval, aproveito para especular sobre a política e o coronavírus. Ficou um pouco no ar um debate sobre que tipo de governo consegue lidar melhor com a epidemia.

Os chineses fizeram um hospital em dez dias, e alguns analistas acharam que isso era uma vantagem de um governo autoritário: não precisava de trâmites burocráticos da democracia.

Acontece que a própria democracia tem meios de suprimir sua lentidão quando se trata de uma emergência nacional. Os japoneses, por exemplo, demonstraram rapidez na recuperação do país dos estragos provocados pelo tsunami.

Um outro argumento, em muitos textos ocidentais, afirmava que só um país como a China tinha o poder de isolar 12 milhões de pessoas.

Possivelmente, muitos países falhariam em isolar tantas pessoas. No entanto, a própria China falhou de uma certa forma em Wuhan. Cinco milhões de pessoas deixaram a cidade, segundo o prefeito demissionário, antes que ela fosse isolada.

Um dos fatores que dificultaram Wuhan reconhecer a expansão do vírus era precisamente o medo da burocracia local de comunicar à burocracia nacional um fato tão grave. A tendência é esconder. O medico Li Wenliang, que chamou a atenção para a propagação do coronavírus, foi visitado pela polícia política e forçado a admitir que propagava fake news.

Depois de sua morte, tornou-se um herói popular. Mas o que aconteceu com ele mostra a fragilidade maior dos regimes autoritários ao lidar com esta questão: a falta de transparência.

Marcelo Trindade* - Patrulha noturna

- O Globo

Mais de 30 anos depois da redemocratização, nossa esquerda vitimiza-se à primeira oportunidade

No começo da década de 1980, boa parte de minha geração tinha um desejo latente de engajamento político. Os mais à esquerda frustravam-se por não termos sofrido como a geração anterior. Lendo Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis, invejávamos a coragem dos jovens antes de nós, e nos sentíamos fúteis e egoístas.

Votamos para governador em 1982, pela primeira vez desde 1965, e um metalúrgico radical liderava um partido de trabalhadores. Mas o ocaso da ditadura era lento e gradual, e as passeatas pelas Diretas só viriam em 1984. Os protagonistas da política eram do passado. Da esquerda à direita, pagava-se o preço de quase duas décadas de opressão.

Foi em meio a essa puberdade tardia de nosso desejo político que surgiram a rádio Fluminense e o rock nacional. Junto com o discurso dos velhos políticos retornados do exílio e os versos das canções de protesto murchados pela distensão, passávamos a ouvir músicas feitas por garotos e garotas como nós.

Ana Maria Machado - Quem tem medo de literatura?

- O Globo

Querem palavras de ordem e encontram desordem de palavras

Nunca usei o adjetivo “abjeto”. Mas foi o que me ocorreu quando vi um interrogado, numa CPI no Congresso, acusar uma jornalista de querer trocar sexo por falso testemunho. Somou-se a “inadmissível”, adjetivo que tem me ocorrido muito ultimamente, sempre que constato não haver limites para o desejo das autoridades de impor a mais completa ignorância ao maior número possível de pessoas. Já tivemos um presidente que comparava leitura a exercício em esteira ergométrica — todo mundo diz que faz bem, mas é insuportável. Agora temos um que reclama que livro é um montão de amontoado de muita coisa escrita.

Para agradá-lo, bajuladores no governo de Rondônia mandaram recolher muitos desses “objetos perniciosos” do lugar exato em que devem estar — as bibliotecas escolares. Produziram uma lista de clássicos literários para ninguém botar defeito. Recuaram diante da grita geral e dos protestos de instituições como a Academia Brasileira de Letras. Mas é apenas um dos episódios mais recentes desse tipo de arbítrio, entre tantos.

Cacá Diegues - Alô, alô, carnaval

- O Globo

Espectadores poderão cantar, com as escolas, sambas de grande qualidade, uma safra de composições para ficar na história

O carnaval vem aí, começa no fim desta semana. Mesmo que você não esteja a fim desse barato, pegue uma carona nas ondas da alegria, como os surfistas campeões se deixam levar pelas de Pipeline e Nazaré. E esqueça, por algum momento, o que nos aborrece.

Esqueça, por exemplo, que quando alguns políticos e funcionários do governo se manifestam, seja sobre o que for, há uma estranha e automática identificação entre eles, nem sempre muito claramente revelada. É como se um acordo secreto os ligasse na surdina. Na mesma semana em que o STJ liberou a nomeação de Sergio Camargo para a direção da Fundação Palmares, o ministro Paulo Guedes revelou seu desgosto em ver pessoas sem pedigree social viajar à Disneyworld.

Depois de tratar os servidores públicos como parasitas (antes do Oscar!), nosso ministro da Economia resolveu acusar as empregadas domésticas de serem responsáveis pelo valor do dólar. Uma acusação ambígua, pois ao mesmo tempo em que lamentava que elas, com o dólar barato demais, vivessem saracoteando em festas na Disney, ainda afirmava que era melhor mesmo que a moeda americana aumentasse de valor, isso não tinha nada demais. E ele é um grande economista, educado em Chicago.

Com um pouco de cuidado, constatamos o mesmo sentimento, em declaração semelhante de Sérgio Camargo, a propósito de sua nomeação para gerir o principal meio oficial de promoção da cultura afrodescendente em nosso país. Ele nos dizia que a escravidão, apesar de tudo, acabara por ser benéfica para os negros brasileiros, herdeiros dos africanos escravizados. Sendo a escravidão a mãe de quase todos os nossos males sociais.

Entrevista / Perigoso não é ler, mas censurar’, diz presidente da ABL

'Os livros estão aí para serem lidos; perigoso é não ler, é censurar’, diz presidente da ABL

Marco Lucchesi critica tentativas de censura e defende a instauração de um 'estado de emergência' para tirar a leitura da condição de calamidade no Brasil

Bruno Alfano | O Globo

RIO — Num país que tem mais de 100 milhões de analfabetos funcionais, o governo federal, em vez de tomar medidas importantes para atacar este problema, investe em um “macartismo de quinta categoria”, perseguindo autores e temas por motivos ideológicos.

Essa é a visão do imortal Marco Lucchesi, 56 anos, professor de Literatura Comparada da UFRJ e presidente da ABL, que se manifestou com veemência após os recentes episódios de tentativa de censura de livros em Rondônia e em presídios de São Paulo.

Ele defende que o governo declare algo semelhante a um “estado de emergência da leitura” no Brasil, um reconhecimento simbólico da calamidade pública na área, para chamar atenção para o problema.

Em entrevista ao GLOBO, Lucchesi destaca ainda a baixa média de livros lidos no país e o pequeno número de bibliotecas públicas, defedendo que elas cheguem também a hospitais e penitenciárias.

• Qual o tamanho do problema da leitura no Brasil?

Existe uma crise impressionante. São mais de 100 milhões de analfabetos funcionais, ou seja, com um grande prejuízo em sua capacidade de leitura propriamente dita. Mas você tem outros números que impressionam: segundo o último Censo do IBGE (2010), 44% da população não praticam a leitura. E temos uma média por pessoa de apenas dois livros lidos anualmente, já contando com os didáticos. Enquanto isso, na França, a média são dez livros. Temos pouco mais de seis mil bibliotecas no Brasil. Na Rússia são 40 mil. Nos EUA, 116 mil.

Também há uma zona escura de outras possibilidades que não são muito percebidas. Por exemplo, a maioria dos hospitais não tem bibliotecas. E não é só livro para quem está doente, é para o acompanhante, para o médico, para o enfermeiro. Isso é muito comum em outros países. Outra coisa pouco vista no Brasil é o número de bibliotecas em presídios. São raras as que existem.

• Por que o senhor diz que o Brasil deveria declarar estado de emergência na leitura?

É uma maneira de considerar, de forma intensa, embora não totalmente prática, que realmente há uma tragédia nos níveis de leitura, no acesso e na quantidade de bibliotecas no Brasil. É uma maneira de a sociedade compreender com maior rapidez e intensidade que estamos abaixo de padrões de leitura minimamente razoáveis.

• Quais os prejuízos desses baixos índices de leitura?

Os maiores possíveis. Com mais leitura, você vai tanto melhorar a capacidade técnica quanto terá uma sensibilidade mais avançada. Consegue aprofundar a sua compreensão do mundo com capacidade de articulação e pensamento cristalino.

• O Brasil já teve campanha de incentivo à leitura eficiente?

Houve vários projetos importantes. E não está atrelada à ideologia — a não ser essas loucuras recentes, de querer censurar livros, que é uma coisa assombrosa, mas excepcional nas duas últimas décadas. O problema é a imaturidade da política de Estado no Brasil. Parece que você tem, obrigatoriamente, que mudar algo, desfazer e recriar. O acesso ao livro é um direito da plena cidadania. Dá espessura cidadã e republicana ao país.

O que a mídia pensa – Editoriais

A ‘virada digital’ dos partidos – Editorial | O Estado de S. Paulo

Reportagem do Estado mostrou que os maiores partidos estão investindo em uma “virada digital” para recuperar relevância política e renovar seus quadros. É uma iniciativa alinhada com os tempos em que as redes sociais e os meios digitais dominam a comunicação e, por extensão, a mobilização política em todo o mundo.

Ao que parece, contudo, a “virada digital” restringe-se por ora ao fornecimento de ferramentas para ampliar o potencial eleitoral dos candidatos desses partidos. Pode até ser que muitos acabem sendo bem-sucedidos nas urnas a partir desse incremento de participação no mundo virtual, mas nada disso significará, em si mesmo, a redenção dos partidos como meios de representação política do eleitorado.

Faz todo sentido que os partidos busquem municiar seus filiados interessados em disputar cargos eletivos com cursos de formação online e instrumentos digitais de gerenciamento de campanhas. Os cursos servem, por exemplo, para orientar os aspirantes a candidatos sobre as atividades básicas de um parlamentar e como funciona a legislação eleitoral, o que a maioria provavelmente desconhece.

Música | Casuarina - Dia de Graça (com Teresa Cristina)

Poesia | Fernando Pessoa -Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.

Em que hei-de pensar?

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Opinião do dia – Karl Marx* (crítica religiosa)

É este o fundamento da crítica religiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o homem não é um ser abstrato acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d’honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.

A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.

*Karl Marx (1818-1883), filósofo, sociólogo, historiador, economista, jornalista e revolucionário socialista. Nascido na Prússia, mais tarde se tornou apátrida e passou grande parte de sua vida em Londres, no Reino Unido. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, (Introdução) p. 145. Boitempo Editorial , São Paulo, 2005.

Luiz Sérgio Henriques* - Quando os bárbaros bateram em retirada

- O Estado de S. Paulo

Um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é improvável que se repita...

No tempo em que a luta final parecia ser entre sistemas irremediavelmente contrapostos, a cultura bolchevique, tradução arriscada para o “Oriente” político de um pensamento claramente ocidental, como o de Marx, protagonizou não poucos episódios de fechamento sectário sobre si mesma. Exemplar, nesse sentido, o combate prioritário que em certo ponto os partidos comunistas deram aos “social-fascistas” – rótulo infame dado à esquerda social-democrata –, mesmo diante do avanço do nazismo e do fascismo. Ou, ainda nos anos 1930, a política interna da URSS stalinizada, que proclamava estar a caminho do socialismo e contraditoriamente apregoava o acirramento incessante da luta de classes, com processos falsificados, fuzilamento de velhos bolcheviques e afirmação de uma implacável estrutura verticalizada de mando.

Evidentemente, esse poder monolítico não duraria para sempre. Em face da vida política do capitalismo avançado, muito mais articulada e complexa, mesmo a versão atenuada do comunismo no poder, com a queda do ditador e a denúncia (parcial) dos seus crimes em 1956, mostrava-se primitiva e destituída de atração. Como no poema de Kaváfis, aquela constelação de partidos-Estado era como que a fonte e a razão de ser dos bárbaros à porta da cidade, que ameaçavam invadi-la e só provocavam reações irracionais, como a dos macarthistas e demais anticomunistas de profissão. Em 1989, por isso, entre esses setores atrasados da “cidade” capitalista viria a instalar-se um sentimento de frustração: para tais setores, os bárbaros eram uma “solução”, uma motivo de viver, um pretexto para cerrar fileiras e golpear os fantasmas prediletos. E agora batiam em retirada...

Celso Lafer* - Liberalismo/liberalismos

- O Estado de S. Paulo

Entende-se o valor da liberdade quando ela é cerceada pelo arbítrio e pelas intolerâncias

São muitas as referências ao liberalismo na pauta do debate público. Poucas as considerações mais satisfatórias e abrangentes sobre seu alcance, como expôs com densidade José Guilherme Merquior em O Liberalismo - Antigo e Moderno (1991).

Na elucidação conceitual do liberalismo, a primeira observação é a de que não se circunscreve ao catecismo simplificador dos seus críticos, que nele identificam, na atual conjuntura, apenas a defesa do pensamento único da liberdade econômica dos mercados.

São muitos os idiomas do liberalismo e múltiplos e diversificados os temas dos seus patronos intelectuais. Entre eles, Immanuel Kant e Adam Smith, Alexander von Humboldt e Alexis de Tocqueville, Benjamin Constant e John Stuart Mill, Friedrich Hayek e Raymond Aron, Karl Popper e Isaiah Berlin.

Todos esses autores têm afinidades. Resultam de uma compartilhada preocupação com a defesa e a realização da liberdade. Partem de uma visão da sociedade concebida como plural, na qual o ser humano, com a sua dignidade própria, não se dissolve no todo.

Pressupõem que o mundo não é uma realidade determinista, mas um conjunto de probabilidades e possibilidades que estão ao alcance do criativo e inovador exercício das múltiplas dimensões da liberdade.

É esse terreno comum que permite inserir esses grandes nomes e suas reflexões no âmbito do liberalismo. Caracterizam-se, no entanto, por diferenças apreciáveis. É por isso que cabe falar em liberalismos, no plural, e pontuar que em contraste com a tradição socialista, na qual avulta a hegemonia de Karl Marx, o panteão do liberalismo, desde as suas origens e nos seus desdobramentos, é plural. Não é por acaso que a palavra liberal, como adjetivo, designa a postura de um espírito aberto e não dogmático.

Filósofo Antonio Negri reflete sobre Félix Guattari e Gilles Deleuze

Novo livro do pensador italiano reúne entrevistas e artigos sobre a obra de Deleuze e Guattari

Rodrigo Petronio*, Especial para O Estado de S. Paulo / Aliás

O filósofo italiano Antonio Negri tornou-se conhecido dos leitores brasileiros sobretudo pelas duas obras escritas com o teórico literário estadunidense Michael Hardt: Império (2000) e Multidão (2004). Em um âmbito de estudos acadêmicos de Filosofia, seu estudo sobre Espinosa também é uma referência. Entretanto, a obra de Negri abrange um campo amplo de estudos que vão de Descartes e Marx a Leopardi, a filosofia do Direito de Hegel. Nesse campo de estudos, destaca-se especialmente a ênfase dada às obras do esquizoanalista Félix Guattari e ao filósofo Gilles Deleuze.

Para iluminar esta faceta, a editora Politeia publica Deleuze e Guattari: Uma Filosofia para o Século 21, conjunto de ensaios, artigos e entrevistas de Negri sobre Deleuze e Guattari, organizado pelo pesquisador Jefferson Viel. A obra contou com o auxílio e colaborações de Mario Marino, Homero Santiago, Lucas Carpinelli, Ana Carla de Abreu Siqueira e Lourenço Fernandes Neto e Silva.

Nesta obra, Negri reconstrói o pensamento de Deleuze-Guattari a partir do conceito de potência e de phylum, uma natureza proliferante, em forma de rizoma, sem centro e em constante devir. A emancipação coletiva e a noção mesma de singularidade tornam-se possíveis dentro do capitalismo apenas mediante essa potência de diferenciação. E por isso esses são autores importantes para Negri, que se formou na tradição de esquerda, mas sempre se preocupou em criar uma alternativa à matriz dialética que domina o pensamento marxista.

Para tanto, um dos pontos centrais do livro são os capítulos nos quais Negri explora o enorme projeto de Deleuze-Guattari conhecido como Capitalismo e Esquizofrenia, composto pelas obras Anti-Édipo (1972) e Mil Platôs (1980), seguida do livro-guia O que é Filosofia? (1991). Negri ressalta a importância das obras individuais de cada um desses autores, sobretudo de Guattari, muitas vezes ainda hoje vitimado pelo cinismo da filosofia acadêmica. Entretanto, estas e outras obras escritas a quatro mãos e na confluência das suas autorias são para Negri a grande revolução do pensamento do século 20 e a porta de entrada para um pensamento do século 21. No excelente ensaio que analisa Mil Platôs, Negri identifica os quatro grandes vetores do complexo Deleuze-Guattari: 1. A teoria dos agenciamentos e da expressão. 2. A teria das redes. 3. A nomadologia: a teoria do nomadismo ontológico. 4. Uma ontologia das superfícies.

Luiz Carlos Azedo - Encosta abaixo

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Não sei se Buarque se inspirou em Tony Judt, mas, com certeza, a esquerda brasileira tem as mesmas dificuldades de Eric Hobsbawm para fazer autocrítica. Persiste nos próprios erros”

Autor da grande trilogia Era das revoluções (1789-1948), A era do capital (1848-1875) e A era dos impérios (1875-1914) —, Eric John Hobsbawm fez a cabeça da esquerda brasileira sobre o mundo atual, com A era dos extremos: o breve século XX. O historiador nasceu em Alexandria, Egito, quando o país se encontrava sob domínio britânico, passou a infância entre Viena e Berlim e migrou para Londres aos 14 anos. Quando jovem, ingressou no Partido Comunista britânico; durante a II Guerra Mundial, cavou trincheiras no litoral do Canal da Mancha e fez parte da inteligência do Exército britânico.

Após a guerra, Hobsbawm voltou para Cambridge, onde se tornou um expoente da historiografia mundial, ao lado de Christopher Hill, Rodney Hilton e Edward Palmer Thompson. Sua Era dos extremos é o livro mais lido sobre a história recente da humanidade, e Tempos interessantes, de 2002, recebeu o Prêmio Balzan para a História da Europa. Membro da Academia Britânica e da Academia Americana de Artes e Ciência, lecionou na Universidade de Londres e na New School for Social Research, de Nova Iorque. Morreu em Londres, em 2012.

Nascido em 1948, o londrino Tony Judt era neto de russos e rabinos lituanos. Aos 15 , aderiu ao sionismo e quis emigrar para Israel, contra a vontade dos pais. Em 1966, foi passar o verão num kibbutz machanaim e acabou servindo como motorista e tradutor no Exército de Israel, na Guerra dos Seis Dias. No fim da guerra, porém, voltou para Inglaterra. Judt graduou-se em história na Universidade de Cambridge (1969), mas realizou suas primeiras pesquisas em Paris, na École Normale Supérieure, onde completou seu Ph.D., em 1972.

Em outubro de 2003, publicou um artigo na New York Review of Books, no qual recriminou Israel por se tornar um Estado étnico “beligerante, intolerante, orientado pela fé” e defendeu a transformação do Estado judeu num estado binacional, que deveria incluir toda a atual área de Israel, mais a Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental e a Cisjordânia. Nesse novo Estado, segundo sua proposta, haveria direitos iguais para todos os judeus e árabes residentes em Israel e nos territórios palestinos. Seu artigo causou um terremoto na comunidade judaica e lhe valeu a expulsão do conselho editorial da revista.

Judt lecionou na Universidade de Nova York, na cadeira de Estudos Europeus. Seu livro Pós-guerra — uma história da Europa desde 1945 é monumental. Em março de 2008, foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA). Um ano depois, estava tetraplégico; faleceu em 2010, depois de um calvário no qual escreveu três livros: O mal ronda a Terra, O chalé da memória e Pensando o século XX, baseado em conversações com Timothy Snyder. Judt fez parte do que chamou de “geração Hobsbawm”, homens e mulheres que começaram a se ocupar do estudo do passado em algum momento da “longa década de 1960” (entre 1959 e 1975), cujo interesse “foi marcado de forma indelével pelos escritos de Eric Hobsbawm, por mais que eles agora discordem de muitas de suas conclusões”.

Míriam Leitão - Não se enganem: nada disso é normal

- O Globo

Presidência militarizada, Câmara sendo palco de calúnia sexista, ministro ofendendo grupos sociais, livros censurados. Nada disso é normal

Há quem prefira o autoengano. O governo hostiliza a imprensa, e o filho do presidente dá sequência a uma difamação sexista contra uma jornalista, da tribuna da Câmara. O presidente se cerca de militares da ativa. O ministro da Economia ofende grupos sociais. A Educação está sob o comando de um despreparado. Alguns ministros vivem em permanente delírio ideológico. Os indígenas são ameaçados pelo desmonte da Funai e pelo lobby da mineração e do ruralismo atrasado. Livros são censurados nos estados. A cultura é atacada. Há quem ache que o país não está diante do risco à democracia, apenas vive as agruras de um governo ruim. E existem os que consideram que o importante é a economia.

Existe mesmo uma diferença entre governo ruim e ameaça à democracia, mas, no caso, nós vivemos os dois problemas. As instituições funcionam mal até pela dificuldade de reagir a todos os absurdos que ocorrem simultaneamente. Quando um tribunal superior decide que uma pessoa que ofende os negros pode ocupar um cargo criado para a promoção da igualdade racial, é a Justiça que está funcionando mal. O Procurador-Geral da República, desde que assumiu, tem atuado como se fosse um braço do Executivo. O Supremo Tribunal Federal (STF) parece às vezes perdido no redemoinho de suas divergências.

A calúnia contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da “Folha de S.Paulo”, foi cometida dentro do Congresso Nacional. O depoente de uma CPI praticou o crime diante dos parlamentares. Um deles, filho do presidente, reafirmou a acusação sexista. É mais um ataque à imprensa, num tempo em que este é o esporte favorito do presidente. Mas é também uma demonstração prática dos problemas do país. Alguém se sente livre para mentir e caluniar usando o espaço de uma comissão da Câmara e é apoiado por um parlamentar.

Bernardo Mello Franco - O jornalismo no faroeste

- O Globo

Na fronteira com o Paraguai, pistoleiros mataram um repórter que investigava o crime organizado. Em Brasília e na Bahia, outros episódios de agressão à imprensa

A fuga de 76 presos, a maioria ligada ao PCC, acirrou a tensão na fronteira seca do Brasil com o Paraguai. Os bandidos estavam presos em Pedro Juan Caballero, cidade colada a Ponta Porã (MS). Escaparam no mês passado, com a aparente conivência de guardas e da direção da cadeia.

A região é dominada pelo narcotráfico e registra altos índices de violência armada. Em dezembro, o Ministério Público Federal tomou uma medida drástica para se proteger. Abandonou a sede em Ponta Porã e transferiu os servidores para Dourados, a 120 quilômetros de distância.

Num faroeste em que nem procuradores estão seguros, o jornalismo virou atividade de alto risco. Na noite de quinta-feira, o repórter Léo Veras foi executado quando jantava com a família no lado paraguaio da fronteira. Ele tocava o site Porã News, que investigava a infiltração do crime organizado no poder local.

Dorrit Harazim - O chipeiro e a jornalista

- O Globo

Hans River foi ingênuo ao subestimar as ferramentas com as quais Patrícia trabalha: apuração rigorosa, provas, comprovantes

Foi em abril de 2018 que o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, estreou no Congresso dos Estados Unidos como convocado de uma comissão do Senado sobre o uso abusivo de dados de consumidores. A empresa havia admitido ter usado sem autorização informações pessoais de 87 milhões de usuários no chamado escândalo da Cambridge Analytica, e o foco dos 44 senadores estava na ameaça de interferência digital criminosa nas eleições presidenciais americanas. “Zuck” esmerou-se em eludir perguntas incisivas, deslizou por respostas que lhe convinham, e ostentou uma estudada paciência diante do enciclopédico desconhecimento digital de alguns inquiridores.

Ainda assim, a armadura impassível do criador de 33 anos saiu avariada. Mas o poder inescapável de sua criatura, o Facebook, ficou intocado: até os senadores mais combativos na sabatina orientaram seus seguidores a acompanhar a sessão através do... streaming Facebook Live.

Na terça-feira passada, em Brasília, ocorreu a 19ª sessão da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito instalada meio ano atrás para apurar a disseminação de notícias falsas na eleição presidencial brasileira de 2018. A testemunha única da sessão chamava-se Hans River do Rio Nascimento e tinha tudo a ver com o tema da “CPMI das fake news”: o depoente havia sido funcionário da Yacows, uma das empresas suspeitas de recorrer ao uso fraudulento de nome e CPF de idosos para registrar chips de celular, e disparar lotes de mensagens em benefício de políticos. O “Sr. Hans”, como passou a ser designado, havia se desentendido com o seu empregador em final de 2018, movera-lhe uma ação trabalhista, e à época fornecera valiosas informações e documentos à repórter investigativa Patrícia Campos Mello, da “Folha de S. Paulo”. Segundo a reportagem exclusiva publicada em dezembro daquele ano, a empresa Yacows prestara serviços a vários políticos e fora subcontratada por uma produtora (AM4) que trabalhou para a campanha do presidente eleito, Jair Bolsonaro.

Joaquim Falcão* - ‘Coringa’, ‘Parasita’ e desemprego

- O Globo

O normal seria comparar o índice de emprego deste mês com o índice de emprego do mês passado, dentro da mesma métrica

A pergunta é simples e decisiva. A resposta deveria ser simples e precisa.

Quantos brasileiros estão, a cada mês, empregados, recebendo seus plenos direitos trabalhistas? E vice-versa?

Quantos brasileiros estão, a cada mês, desempregados, sem receber seus plenos direitos trabalhistas?

Interessa saber a todo brasileiro, empresas, sindicatos, partidos, Banco Central. Sem o que não se pode avaliar se a política econômica do governo faz bem ou mal ao país. Espera-se que bem.

O sucesso da política financeira não se mede apenas por inflação e juros baixos. Quanto mais baixos, melhor.

Vejam a dura crítica social, indignação, mesmo criminosa, do povo, nos filmes “Coringa” e “Parasita”, ao atual sistema financeiro que gera desemprego.

Países adotam juros negativos. Outros querem subir juros e não conseguem. Outros querem baixar — até onde? — e conseguem.

O doente econômico ficou sem remédio unívoco e eficaz.

O normal seria comparar o índice de emprego deste mês com o índice de emprego do mês passado, dentro da mesma métrica. Simples assim.

Mas não somente cada instituição tem seu índice. OIT, IBGE, Caged etc. Como cada índice tem sua métrica. Cada métrica tem conceitos diferentes de emprego e desemprego.

Em nome de buscar a transparência total da realidade do emprego — o que é bom — criaram-se tantos conceitos, preconceitos, distintas realidades econômicas, especificidades, que a confusão é geral. Pura Babel.

Vejam só.

Elio Gaspari - O grande golpe da CIA

- O Globo | Folha de S. Paulo

Grampo americano em máquinas antiespionagem vendidas por empresa suíça durou 20 anos e atingiu uma centena de países, inclusive o Brasil

No maior golpe de um serviço de inteligência durante a Segunda Guerra Mundial, os ingleses quebraram os códigos alemães valendo-se dos melhores matemáticos do país e de uma equipe que chegou a reunir dez mil pessoas em Bletchley Park. Nos anos 1970, a Central Intelligence Agency Americana conseguiu quebrar os códigos de mais de uma centena de países com pouco esforço. Brasil, Argentina, Líbia, Irã e até o Vaticano compravam máquinas codificadoras da empresa suíça Crypto. Desde 1970 e por quase 20 anos a CIA foi simplesmente sócia secreta da Crypto, e as máquinas estavam grampeadas. Enquanto os ingleses gastaram milhões de libras para manter sua operação, a CIA ganhou milhões de dólares com a venda dos equipamentos aos países-clientes.

Esse grande golpe acaba de ser revelado pelo repórter Greg Miller, do The Washington Post. O grampo americano funcionou durante 20 anos e nele estava, como sócio, o serviço de inteligência alemão.

O Brasil entrou na lista das vítimas, mas em 1976 o Serviço Nacional de Informações decidiu criar uma operação de criptografia, recrutando professores, militares e diplomatas. Nessa época, só dez pessoas sabiam da existência do projeto, e os equipamentos comprados no exterior eram trazidos como contrabando diplomático. Os técnicos brasileiros disseram que as máquinas suíças eram cavalos de Troia e mostraram onde estavam os furos de suas concepções, decifrando mensagens de outros governos. Depois de 1978, as máquinas suíças foram desativadas. Mais tarde, a operação virou uma estatal, a Prólogo, e em 1981 ela tinha 350 funcionários.

Comprovadamente, em 1972 a Marinha brasileira fez uma compra de US$ 250 mil à Crypto. Segundo um documento da CIA de 1977, o Brasil forneceu máquinas do modelo CX52 da Crypto aos governos da Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai metidos na Operação Condor.

No mundo da criptografia, há anos desconfiava-se que as máquina suíças estavam envenenadas. Em 1982, durante a Guerra das Malvinas, os militares argentinos suspeitaram que suas máquinas estivessem bichadas e interpelaram a Crypto, mas foram engambelados.

A autofritura de Paulo Guedes
O “Posto Ipiranga” colocou-se num processo de autofritura. Suas declarações demófobas contra as mulheres que trabalham nas casas dos outros e os servidores públicos, revelam o destempero pessoal de uma mente autoritária e ególatra.

Deixando-se de lado a retórica de Paulo Guedes (o que não é pouca coisa), o maior problema da quitanda do ministro está na entrega de berinjelas à freguesia. A contração da indústria e a queda das vendas do varejo em dezembro são fatos reais. Os servidores poderiam ser parasitas e as domésticas poderiam ser proibidas de ir à Disney e a economia continuaria andando de lado. Se isso fosse pouco, Mansueto Almeida, o quadro mais qualificado de seu ministério, está com um pé e a alma fora do governo.

Ricardo Noblat - Bolsonaro, mais um gesto obsceno e o desejo de mandar na imprensa

- Blog do Noblat | Veja

Outra quebra de decoro

Em sua escalada de agressões à imprensa, sentindo-se autorizado por seus seguidores nas redes sociais, o presidente Jair Bolsonaro, ontem, pela manhã, à saída do Palácio da Alvorado, deu mais uma “banana” para os jornalistas que tentavam entrevistá-lo. Foi a segunda em uma semana.

À noite, de volta ao palácio, avisado de que a TV Globo divulgaria a resposta do governador Rui Costa (PT), da Bahia, ao ataque que Bolsonaro lhe fizera à tarde, o presidente divulgou uma nota e advertiu em seguida: “Ou a TV Globo lê as duas notas ou não lê nenhuma, tá ok.”

De manhã, Bolsonaro irritou-se com perguntas sobre a redução do espaço da biblioteca do Palácio do Planalto para a construção, ali, de um gabinete destinado à sua mulher, Michelle. À tarde, no Rio, com perguntas sobre as ligações de sua família com o miliciano Adriano da Nóbrega.

Na ocasião, alegou que Nóbrega, morto na Bahia na semana passada, era “um herói” da Polícia Militar do Rio quando seu filho Flávio, então deputado estadual, o homenageou duas vezes. Disse que, à época, Nóbrega ainda não fora condenado com sentença transitado em julgado.

Foi quando aproveitou para tentar sair das cordas e desviar o foco das perguntas. Disparou então: “Quem é responsável pela morte do capitão Adriano? A PM da Bahia, do PT. Precisa falar mais alguma coisa?” Da Bahia, o governador replicou horas depois:

– O Governo do Estado da Bahia não mantém laços de amizade nem presta homenagens a bandidos nem a procurados pela Justiça. […]. Mas se estes atiram contra pais e mães de família que representam a sociedade, os mesmos têm o direito de salvar suas próprias vidas, mesmo que os marginais mantenham laços de amizade com a Presidência.

Gaudêncio Torquato* - Não há boa fé na América

- Blog do Noblat | Veja

O capitão desfralda a bandeira da “salvação do país contra a ameaça comunista”

Lamento do timoneiro Simon Bolívar, há dois séculos, parece apropriado para nossos dias: “não há boa fé na América, nem entre os homens nem entre as nações. Os tratados são papéis, as constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia e a vida um tormento”. O cotidiano nacional que o diga.

A desconfiança grassa, a boa fé se esvai, as emboscadas se multiplicam. Matar? Coisa banal. A política é uma colcha de retalhos; partidos, fontes de negócios. Hoje, há 33 e mais um pouco serão 70. O governo vai trocando músicos de sua orquestra, convocando generais de grande expressão e mantendo seus dois pilares: o “Posto Ipiranga” pilota a economia, e tem falas desastradas, enquanto o outro comanda a Justiça e a Segurança Pública, desviando-se de enfrentamentos. Olha para o horizonte de 2022, se não subir ao STF.

Ontem, petistas semeavam o ódio com o “nós e eles”. E o maestro Luiz Inácio glorifica os tempos da “redenção nacional” sob o lema: “nunca se fez tanto na história no Brasil”. Não reconhece os desvios petistas nem a maior recessão econômica da história, fruto do lulopetismo.

Hoje, bolsonaristas cultivam o refrão invertido “eles e nós”. O capitão desfralda a bandeira da “salvação do país contra a ameaça comunista”.

Janio de Freitas* - É um cacho de banana

- Folha de S. Paulo

Gesto de Bolsonaro é síntese e símbolo da concepção que a gorilagem faz

A banana gestual que Bolsonaro dirigiu a um grupo de jornalistas, sem sequer pergunta ou observação que o incomodasse, fez mais do que um instante apalhaçado em telejornais mundo afora.

Proporciona uma síntese e um símbolo da concepção que a gorilagem faz não só dos jornalistas, mas de toda a sociedade que eles representam, na intermediação entre os homens e a vida do seu planeta.

No país em que ao ocupante da Presidência é admitido gesticular bananas, quando não insultos verbais, o que um moleque faz ao caluniar uma jornalista admirável por todos os bons motivos, como Patrícia Campos Mello, é identificar-se com o seu presidente.

Note-se, também como próprio deste tempo, outro fator que os identifica. Liga-os até em comprometimento pessoal e de fora da lei. O moleque trabalhou na produção de mensagens em massa, por internet, que fraudaram a disputa eleitoral para favorecer Bolsonaro.

Coisas assim permitem alargar muito o conceito de parasita restringido por Paulo Guedes aos funcionários públicos (sem esquecer, nesse conceito, que os militares também são funcionários públicos).

O próprio Paulo Guedes é, em pessoa, um exemplar notável de parasitismo, na margem do serviço público mas às custas dele. Sua riqueza veio de operar com e para fundos de pensão. De servidores.

Bruno Boghossian - Bolsonaro ganha quando perde

- Folha de S. Paulo

Presidente estimula sua base mesmo quando não consegue entregar soluções concretas

Dias depois da eleição, Jair Bolsonaro anunciou a transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. Parecia uma simples mudança de CEP, mas não era assim. Ainda no primeiro ano de mandato, os militares desmontaram a armadilha, já que o plano era visto como afronta pelos países árabes.

O presidente perdeu a queda de braço dentro do governo, mas não admitiu desistir e passou a empurrar a ideia com a barriga. Em dezembro, disse ao primeiro-ministro israelense que a troca aconteceria em 2020. Dois meses depois, deu uma entrevista a um pastor evangélico e disse que tudo seria feito até 2021.

Para Bolsonaro, as bravatas e a propaganda valem mais que resultados objetivos, na maior parte das vezes. O presidente se especializou em vender planos de difícil execução e soluções impossíveis para problemas fantasiosos, apenas para manter sua base política estimulada.

Vinicius Torres Freire – Ala militar pode ajudar ala ideológica

- Folha de S. Paulo

Governo pode ficar mais livre para fazer demagogia, da gasolina à religião

A “ala militar” deu um chega para lá na “ala ideológica” do governo, a gente lê por aí. Hum.

É verdade que a seita de aloprados reacionários perdeu cadeiras no Planalto, mas a turma ainda mora de pijaminha no coração do presidente, de resto líder de torcida das milícias virtuais. Se por mais não fosse, a seita é liderada politicamente pela filhocracia bolsonariana.

No mais, a “ala ideológica” continua fora da casinha e vivíssima, o que é evidente por exemplo na demagogia com a gasolina ou no ataque à razão, à cultura ou a jornalistas, como na campanha imunda contra Patrícia Campos Mello, jornalista desta Folha, aliás difamada com apoio do Twitter.

O ministro-general Augusto Heleno é “ideológico” ou “militar”? Acaba de acusar até o papa de “confraternizar com um criminoso” (Lula), “exemplo de solidariedade a malfeitores, tão a gosto dos esquerdistas”.

Dá-se pouca bola para demagogias como a da gasolina, que pegou. Quem conversa com o povo na rua e nas redes ouve que “o Bolsonaro quer baixar a gasolina, mas os governadores e os deputados não deixam” e variantes.

Preços de comida, gasolina, ônibus e dólar são indicadores econômicos “pop” importantes, qualquer demagogo grosso sabe. O índice de irritação com a gasolina, o “Irrigás”, digamos, está no nível mais alto desde pelo menos 2012, com exceção de maio de 2019 (época de mau humor na economia) e da greve dos caminhoneiros, baderna apoiada por Bolsonaro e empresários bolsonaristas e espertalhões em geral.

Ruy Castro* - Pau, vinil, papel

- Folha de S. Paulo

Quando surge uma nova tecnologia, por que é a antiga que muda de nome?

Escrevi um dia que todas as vezes que Tom Jobim abriu o piano o mundo melhorou. A beleza que ele extraía do que tocasse —notas soltas, um novo acorde, uma canção completa— parecia transfigurar quem o ouvisse, fosse uma plateia doméstica, de trabalho, ou de centenas, num teatro. E nunca vi alguém tão amoroso diante de seu instrumento. Até a maneira com que dizia a palavra, como se a acariciasse com a voz, revelava isso. Certa vez ele o definiu, para mim e para o editor Almir Chediak: “O piano é uma fábrica, não é?”.

Daí seu susto em Los Angeles, em 1973, ao saber que Cesar Camargo Mariano, diretor musical do disco “Elis & Tom”, que iriam começar a gravar, queria que ele tocasse piano elétrico, maquininha que Tom chamava de “aporrinhola”. E susto maior ainda ao ouvir Mariano referir-se ao piano acústico, de madeira e cordas, obra-prima da criação humana, como “piano de pau”. Tom chamou o produtor Aloysio de Oliveira: “Aloysio, me socorre! Ele chamou o piano de piano de pau!”.

Vera Magalhães - Tristeza não tem fim

- O Estado de S.Paulo

Euforia da virada do ano com a economia esmorece antes da Quarta-Feira de Cinzas

“A felicidade do pobre parece/ A grande ilusão do carnaval/ A gente trabalha o ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a fantasia/ De rei ou de pirata ou jardineira/ E tudo se acabar na Quarta-Feira.”

Os versos acima são da pungente A Felicidade, de Tom Jobim, e me voltaram à mente de forma recorrente nesta semana depois da fala de Paulo Guedes a respeito dos malefícios do real sobrevalorizado.

O ministro da Economia atravessou o samba e acabou por contribuir com uma fantasia candidata a hit do carnaval de 2020: além de reis, piratas e jardineiras, vem aí uma legião de empregadas com malas etiquetadas para a Disney.

Porque a tal “festa” das domésticas no exterior só é imaginável em blocos e carros alegóricos, uma vez que, ainda que o real estivesse na base do “um para um” com o dólar, não sobra dinheiro para a grande maioria dos empregados domésticos viajar.

Então, por que raios o homem mais importante do governo, aquele em quem o “deus mercado” aposta todas as fichas, a ponto de tapar o nariz para os despautérios do presidente e a incompetência gerencial em quase todas as outras áreas, se põe a fazer perorações sem nexo dia sim, outro também?

Talvez Guedes esteja percebendo que a pauta que idealizou para 2020 vai deslizando como a felicidade do pobre, e que a euforia com o “boom” da economia brasileira neste ano 2 da gestão Bolsonaro já passou antes mesmo da Quarta-Feira de Cinzas que anuncia a tristeza sem fim da música de Jobim.

Eliane Cantanhêde - Onde Huck se encaixa

- O Estado de S.Paulo

Huck tira votos do PT, mas precisa ser considerado pelo eleitor de Bolsonaro

Ano eleitoral, nervos à flor da pele e o instinto de preservação da espécie política em alerta. Afinal, para onde vão os ventos da polarização brasileira? E é assim que começam as pesquisas formais e informais, as conversas que extrapolam partidos e os cálculos sobre os investimentos, não só para o outubro como também, ou principalmente, para 2022. O senador Ciro Nogueira, do PP do Piauí, começou a sentir “um declínio muito grande do PT e quis sentir para onde esses votos estavam migrando”. Encomendou pesquisas, ou melhor, levantamentos sem controle de amostra, em cidades representativas, e surpreendeu-se com o resultado. Agora, anima outros partidos, como o PDT, e outros estados, como Tocantins, a fazerem o mesmo: detectar a movimentação dos votos.

No Piauí, foram escolhidas duas cidades onde o PT deu um banho em 2018, refletindo o poder vermelho no Estado e em todo o Nordeste. E esses levantamentos do senador, feitos em dezembro para consumo próprio, sem registro oficial, mostram a entrada em cena de um novo personagem: Luciano Huck, o apresentador de TV que nem partido tem, mas já mostra a cara, monta equipe e prepara plano de governo.

Em Picos, o petista Fernando Haddad teve 74,74% (30.013 votos) no segundo turno e Jair Bolsonaro, 25,26% (10.143). No levantamento agora, Haddad caiu para 38,4, Huck ficou em segundo, com 24,8%, e Bolsonaro recuou para 20,1%. Em Floriano, Haddad teve 74,87% no segundo turno, com 24.011, contra Bolsonaro, 25,13%, com 8.059.

Albert Fishlow* - O resultado das eleições conta

- O Estado de S. Paulo

A globalização cede espaço a um populismo intenso e a barreiras protetoras

No mundo todo, a espera angustiante por notícias otimistas tornou-se a regra. O coronavírus parece estar se espalhando. A taxa de mortes vem crescendo acentuadamente na China, enquanto em outros países o número de casos vem aumentando, ainda que com menor intensidade. As restrições às viagens de chineses estão se ampliando em toda parte, especialmente após a pausa dos feriados de ano-novo. Apropriadamente, estamos no Ano do Rato, o que traz à lembrança os horrores da Peste Negra de muitos séculos atrás. Desta vez, o morcego parece ser o principal responsável.

As consequências para o comércio internacional são negativas, o que impede a recuperação do mercado mundial e a reversão dos baixos números dos anos recentes. A globalização cede espaço a um populismo intenso e a barreiras protetoras, que dificultam o fluxo de bens e serviços, de capitais e pessoas. A busca por soluções locais ganhará prioridade.

Sem um impulso econômico externo, vai se apelar para déficits nacionais para manter o crescimento. Todos estão surpresos de que a menor alta nos preços não tenha levado a taxas de juros maiores. Assim, nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e outros países europeus, bem como na China, Índia e parte da América Latina, têm se registrado grandes déficits. O menor custo da manutenção de estoques e as taxas menores de juros nos países em desenvolvimento ainda são suficientes para atrair um capital externo que, em seus países de origem, tem retorno negativo.

A política é a principal preocupação do momento. A maioria dos líderes (e parlamentares) prefere hoje ações governamentais que aumentem os gastos em lugar de os restringir. Entre a atual retração e o anterior compromisso democrático, a decisão de gastar ganha força. Há ainda uma ajuda adicional na queda de preços, especialmente dos combustíveis, reduzidos por causa do menor crescimento industrial da China e do aumento do fraturamento hidráulico pelos EUA para extração de petróleo.

O que a mídia pensa – Editoriais

Planalto militar – Editorial | Folha de S. Paulo

Escolha de general para Casa Civil amplia peso excessivo das Forças no governo

Jair Bolsonaro foi um militar indisciplinado, durante anos visto dessa forma pela maioria do alto escalão do Exército, sua Força de origem.

Em meio à sua surpreendente ascensão como presidenciável, cercou-se de generais da reserva, que estabeleceram pontes com o comando ativo. Virtual eleito, a aliança já estava selada.

A resultante foi um governo com número inédito de ministros vindos da caserna —8 de 22. O primeiro ano de mandato transcorreu com numerosos entrechoques entre esta ala e a dita facção ideológica do bolsonarismo, associada aos filhos do presidente e ao escritor Olavo de Carvalho.

Aos poucos, militares que pareciam servir de contrapeso a uma gestão turbulenta se tornaram parte da confusão, retraindo-se. Alguns perderam o cargo, dos quais o mais vistoso foi o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que ocupava a Secretaria de Governo.

Para a vaga foi outro general, Luiz Eduardo Ramos, muito próximo de Bolsonaro. Viu crescer sua influência, enquanto fardados eram chamados para tratar de temas como os incêndios na Amazônia.

A nomeação do general Walter Braga Netto para a Casa Civil coroa essa reabilitação. Ela serve para fortalecer o núcleo do governo, e ao mesmo tempo gera incerteza sobre a capacidade de articulação política do Palácio do Planalto.

Música | Alceu Valença - Voltei Recife (Luiz Bandeira)

Poesia | Manuel Bandeira - Evocação do Recife

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
- Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
- Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
- Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.