segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Entrevista / Perigoso não é ler, mas censurar’, diz presidente da ABL

'Os livros estão aí para serem lidos; perigoso é não ler, é censurar’, diz presidente da ABL

Marco Lucchesi critica tentativas de censura e defende a instauração de um 'estado de emergência' para tirar a leitura da condição de calamidade no Brasil

Bruno Alfano | O Globo

RIO — Num país que tem mais de 100 milhões de analfabetos funcionais, o governo federal, em vez de tomar medidas importantes para atacar este problema, investe em um “macartismo de quinta categoria”, perseguindo autores e temas por motivos ideológicos.

Essa é a visão do imortal Marco Lucchesi, 56 anos, professor de Literatura Comparada da UFRJ e presidente da ABL, que se manifestou com veemência após os recentes episódios de tentativa de censura de livros em Rondônia e em presídios de São Paulo.

Ele defende que o governo declare algo semelhante a um “estado de emergência da leitura” no Brasil, um reconhecimento simbólico da calamidade pública na área, para chamar atenção para o problema.

Em entrevista ao GLOBO, Lucchesi destaca ainda a baixa média de livros lidos no país e o pequeno número de bibliotecas públicas, defedendo que elas cheguem também a hospitais e penitenciárias.

• Qual o tamanho do problema da leitura no Brasil?

Existe uma crise impressionante. São mais de 100 milhões de analfabetos funcionais, ou seja, com um grande prejuízo em sua capacidade de leitura propriamente dita. Mas você tem outros números que impressionam: segundo o último Censo do IBGE (2010), 44% da população não praticam a leitura. E temos uma média por pessoa de apenas dois livros lidos anualmente, já contando com os didáticos. Enquanto isso, na França, a média são dez livros. Temos pouco mais de seis mil bibliotecas no Brasil. Na Rússia são 40 mil. Nos EUA, 116 mil.

Também há uma zona escura de outras possibilidades que não são muito percebidas. Por exemplo, a maioria dos hospitais não tem bibliotecas. E não é só livro para quem está doente, é para o acompanhante, para o médico, para o enfermeiro. Isso é muito comum em outros países. Outra coisa pouco vista no Brasil é o número de bibliotecas em presídios. São raras as que existem.

• Por que o senhor diz que o Brasil deveria declarar estado de emergência na leitura?

É uma maneira de considerar, de forma intensa, embora não totalmente prática, que realmente há uma tragédia nos níveis de leitura, no acesso e na quantidade de bibliotecas no Brasil. É uma maneira de a sociedade compreender com maior rapidez e intensidade que estamos abaixo de padrões de leitura minimamente razoáveis.

• Quais os prejuízos desses baixos índices de leitura?

Os maiores possíveis. Com mais leitura, você vai tanto melhorar a capacidade técnica quanto terá uma sensibilidade mais avançada. Consegue aprofundar a sua compreensão do mundo com capacidade de articulação e pensamento cristalino.

• O Brasil já teve campanha de incentivo à leitura eficiente?

Houve vários projetos importantes. E não está atrelada à ideologia — a não ser essas loucuras recentes, de querer censurar livros, que é uma coisa assombrosa, mas excepcional nas duas últimas décadas. O problema é a imaturidade da política de Estado no Brasil. Parece que você tem, obrigatoriamente, que mudar algo, desfazer e recriar. O acesso ao livro é um direito da plena cidadania. Dá espessura cidadã e republicana ao país.

• Existe alguma campanha de fomento à leitura que o Brasil poderia mirar?

Houve programas interessantes, como um na França, em que o ministro da Cultura fez a campanha “O furor de ler”. Eram mensagens intensas que propagavam a ideia da leitura. Não adianta pegar um grande artista e fazer com que ele diga que está lendo, quando não está. Isso foi feito aqui. O artista nem estava com o livro na mão.

• Como deve ser um programa ideal para o incentivo da leitura?

Um trabalho lento, mas que, ao mesmo tempo, demanda urgência. Tem que haver a construção de um processo intenso e precisa ter a escola como um meio praticamente central. Quando a gente fala de biblioteca pública ou na escola, não está contando livro didático. A preocupação com o Enem, que é sim legítima, precisa ser transformada.

• O que senhor acha do Conta Para Mim, programa criado pelo governo federal no ano passado para incentivar os pais a lerem para os filhos?

É uma ideia importantíssima. O primeiro livro que nós aprendemos é sonoro, uma canção de ninar. Leitores de poesia, em geral, foram os que receberam essas canções. Mas, infelizmente, é rara essa realidade nas famílias, porque as pessoas trabalham por muitas horas, principalmente nas grandes cidades. E a escola acaba tendo papel de protagonismo imenso nesse processo. Ou nós partimos das escolas, ou vamos perder essa guerra.

• O senhor tem experiência em programas de incentivo à leitura nos presídios. Como viu a denúncia de censura de obras nas penitenciárias paulistas?

Foi ainda mais grave do que o caso de Rondônia (onde se cogitou vetar obras nas escolas). A pessoa pagando a própria pena não é um cidadão menor. Tem que ser tratado com toda a dignidade. E isso não pode passar pela tutela. É mais uma cena desse teatro de horrores.

• Dos escritores consagrados, alguma obra é inadequada para adolescentes?

Nunca! Nada é inadequado. O livro não é um tribunal. A literatura não é um manual de bons costumes. A literatura forma. Se fosse assim, não se poderia ler Dostoiévski, um dos autores mais fundamentais na história do Ocidente, pois, na obra dele, você encontra assassino, prostituta, dependentes de álcool.

É preciso quem faça a mediação, o professor. Não existe interdição. A interdição está na cabeça desvairada daqueles que projetam seus próprios horrores nos livros e na capacidade dos outros de interpretar o mundo. Os livros estão aí para serem lidos. Nada é perigoso. Perigoso é não ler. Perigoso é censurar. Isso é que faz mal. O resto é bem-vindo.

• Como o senhor vê essa perseguição a Paulo Freire?

Duas ou três pessoas que não entendem nada da educação, na contra-mão do mundo, colocam em Paulo Freire seus próprios fantasmas. Mas Paulo Freire recebeu uma grande influência de um filósofo judeu extraordinário que se chama Martin Buber. Esse vínculo é esquecido. Eles pensam que a história da cultura humana não se passa nessa guerra de mocinhos e bandidos, porque isso é uma leitura pequena, mesquinha, que não faz jus ao sublime de cada autor. São posturas adultas, de diálogo. Não essa guerra infâme. Não é por aí que se constrói um diálogo pleno, com admiração pelo outro, admirando aquilo que você não é ou as ideias que não parecem consoantes com as suas. É outra forma de pensar, mas e daí? É bonita! 

Algumas pessoas acham que podem fazer algumas regras que eram usadas no século XVI, mas a sociologia do conhecimento mostrou que o conhecimento é colocado diante de uma espécie de mercado de ideias. O conhecimento é diversificado e pleno. E não há mais a preponderância de um conhecimento sobre o outro. É impossível. E não há como controlar. É impossível. As escolas e universidades vivem da diferença. Isso é fundamental e altamente tônico para uma musculatura intelectual e artística mais desenvolvida. Não há quem possa ser o dono da universidade ou da escola. Essa ideia de dono acabou no século XVI. Tentar retomar essa ideia no século XXI não é apenas anacrônico, mas ridículo e deplorável. Mostrando que não se entendeu muito bem o que aconteceu nesses últimos 400 anos.

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