domingo, 16 de fevereiro de 2020

Filósofo Antonio Negri reflete sobre Félix Guattari e Gilles Deleuze

Novo livro do pensador italiano reúne entrevistas e artigos sobre a obra de Deleuze e Guattari

Rodrigo Petronio*, Especial para O Estado de S. Paulo / Aliás

O filósofo italiano Antonio Negri tornou-se conhecido dos leitores brasileiros sobretudo pelas duas obras escritas com o teórico literário estadunidense Michael Hardt: Império (2000) e Multidão (2004). Em um âmbito de estudos acadêmicos de Filosofia, seu estudo sobre Espinosa também é uma referência. Entretanto, a obra de Negri abrange um campo amplo de estudos que vão de Descartes e Marx a Leopardi, a filosofia do Direito de Hegel. Nesse campo de estudos, destaca-se especialmente a ênfase dada às obras do esquizoanalista Félix Guattari e ao filósofo Gilles Deleuze.

Para iluminar esta faceta, a editora Politeia publica Deleuze e Guattari: Uma Filosofia para o Século 21, conjunto de ensaios, artigos e entrevistas de Negri sobre Deleuze e Guattari, organizado pelo pesquisador Jefferson Viel. A obra contou com o auxílio e colaborações de Mario Marino, Homero Santiago, Lucas Carpinelli, Ana Carla de Abreu Siqueira e Lourenço Fernandes Neto e Silva.

Nesta obra, Negri reconstrói o pensamento de Deleuze-Guattari a partir do conceito de potência e de phylum, uma natureza proliferante, em forma de rizoma, sem centro e em constante devir. A emancipação coletiva e a noção mesma de singularidade tornam-se possíveis dentro do capitalismo apenas mediante essa potência de diferenciação. E por isso esses são autores importantes para Negri, que se formou na tradição de esquerda, mas sempre se preocupou em criar uma alternativa à matriz dialética que domina o pensamento marxista.

Para tanto, um dos pontos centrais do livro são os capítulos nos quais Negri explora o enorme projeto de Deleuze-Guattari conhecido como Capitalismo e Esquizofrenia, composto pelas obras Anti-Édipo (1972) e Mil Platôs (1980), seguida do livro-guia O que é Filosofia? (1991). Negri ressalta a importância das obras individuais de cada um desses autores, sobretudo de Guattari, muitas vezes ainda hoje vitimado pelo cinismo da filosofia acadêmica. Entretanto, estas e outras obras escritas a quatro mãos e na confluência das suas autorias são para Negri a grande revolução do pensamento do século 20 e a porta de entrada para um pensamento do século 21. No excelente ensaio que analisa Mil Platôs, Negri identifica os quatro grandes vetores do complexo Deleuze-Guattari: 1. A teoria dos agenciamentos e da expressão. 2. A teria das redes. 3. A nomadologia: a teoria do nomadismo ontológico. 4. Uma ontologia das superfícies.

O agenciamento diz respeito à profunda revisão que os autores produzem nas noções de sujeito e objeto. Relaciona-se com outro conceito-matriz: devir. Como diz Deleuze, agenciar não é imitar. Agenciar é desfaz as linhas de demarcação entre subjetividade e objetividade. Instaurar um plano de consistência capaz de criar novos mundos ou reconfigurar mundos existentes. Esse apagamento de fronteiras, de corpos e de conceitos produz singularidades expressivas, no sentido de Espinosa. Todo plano de imanência do universo é constituído de redes de seres em constante devir.

Por seu turno, a passagem da virtualidade à atualidade dessa rede depende da natureza nômade do ser. A dimensão puramente transitiva da vida, dos eventos, dos seres, a todo momento constituídos e constituintes, produz novos planos de consistência. Por fim, nesse universo não existe profundidade. A superficialidade não é a face negativa de uma profundidade perdida. Conceber os signos, os seres e os eventos como um processo de singularização é concebê-los como uma pele de planos, pontos e redes sem volume e, por isso mesmo, passíveis de serem remodelados ao infinito.

Contra os conceitos de pensamento fraco (Gianni Vattimo) e o entendimento da filosofia como sinônimo de democracia (Richard Rorty), Negri vê em Deleuze-Guattari uma ontologia da potência e do nomadismo molecular. Um pensamento capaz de atravessar os estratos da estrutura capitalista e explicitar o “fundamento vazio e o misticismo da democracia”. Essa abordagem revela uma tendência curiosa em ser notada em alguns autores da esquerda atual: uma clara relativização da efetividade das democracias. Essa perspectiva tem como esteio o comunismo. E também o horizonte político recente da emergência dos populismos de direita, bem como a devastação das instituições promovida pelos algoritmos e pela mineração de dados e a nova era do extrativismo digital (Evgev Morozov), capitalizada por oligarquias transnacionais.

Parafraseando o ensaio homônimo do livro, enquanto a ciência renuncia ao infinito e a arte o aborda na dimensão finita, a tarefa da filosofia é salvar o infinito. Ou seja: rejeitar todas as paixões tristes e toda negatividade dos afetos e do pensamento. Contra esse estado de coisas, mais do que uma reedição de Marx e da dialética, seja ela positiva ou negativa, Negri se apoia nos conceitos de transversalidade e de interseccionalidade, tanto dos saberes quanto dos planos e estratos do real.

O encontro entre Negri, Deleuze e Guattari abre a possibilidade de uma revolução do capitalismo, para usar a expressão de Maurizio Lazzarato. Uma linha de fuga em direção ao futuro e a novas formas de existência capazes de libertar a vida de todas as formas de domesticidade e de escravidão.

Deleuze e Guattari: uma filosofia para o século 21
Autor: Antonio Negri
Tradução: Jeferson Viel
Editora: Politeia
192 páginas
R$ 36,45
*Rodrigo Petronio é escritor e filósofo. Professor titular da FAAP

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