O Estado de S. Paulo
As pilosidades do jurídico não merecem o achincalhe. Já prestaram à deusa Têmis serviços mais valiosos que as tranças de Rapunzel ou os cachos de Sansão
Luís XIV, reida França, fez delas uma
coqueluche. Nas vagas absolutistas entre os séculos 17 e 18, o famoso “Rei Sol”
cintilava em perruques de cores várias: houve as escuras, as quase rubras e
aquelas outras, em tons prateados. O monarca se esbaldava em mechas volumosas.
Segundo os historiadores, sua intenção era disfarçara calva. Também há
registros sob referidas cutâneas causadas pela sífilis que, aflorando no régio
cocuruto, deveriam ficar escondidas. Outros sustentam que era só capricho fútil
do solar chefe de Estado, apreciador de madeixas alheias. As razões, como se
vê, podem ter sido múltiplas, mas o fato é que foi ele, Luís XIV, quem pôs na
moda o adorno peludo.
Na Inglaterra, o rei Carlos II, também no século 17, cultivou gosto igual. Há retratos em que ele aparece coma coro a por cimada juba caudalosa, pujante e artificial. A exemplo doque sedaria em Paris, a estética real pesou sobre as cabeças da nobreza londrina e as melenas inautênticas se tornaram um costume fidalgo.
Os juízes ingleses, desembaraçados pelas
franjas de Carlos II, adotaram de vez o estilo de vestir uma periwig branca,
feita de crina de cavalo, durante o expediente. No início, eram wigs grandiosas
e derramadas em caracóis soberbos. Depois, com o passar dos séculos, o tamanho
diminuiu. Em 2008, o lorde Nicholas Phillips, então a maior autoridade dos
tribunais da Inglaterra e do País de Gales, viu no apetrecho um anacronismo e
tentou decretar-lhe o fim. Não conseguiu eliminá-lo de todo, porém. A tosa não
foi total. Juízes criminais se opuseram, advogados idem, e hoje, na Justiça
britânica, o enfeite persiste, embora numa versão mais contida, que tem o
aspecto de um gorrinho de alta alvura a arrematar a testa das excelências.
Nas ex-colônias do velho império, aquele em
que o sol nunca se punha, a etiqueta jurisprudencial se manteve com mais
imponência: na África, há modelos ainda em vigor no Quênia, no Zimbábue e em
Gana. No Canadá e na Austrália, o adereço segue com modalidades menos
chamativas.
O uso judicial da cabeleira, enfim, não se
deve a narcisismos. O egrégio chumaço não foi adotado porque os árbitros
quisessem parecer mais jovens ou mais roqueiros. O acessório não tem o
propósito de embelezar o usuário nem de dar a ele o topete que lhe falta. Ao
contrário, a razão dos pelos nos tribunais é tornar o sujeito indistinto, um
meritíssimo genérico, um funcionário como os demais. A ideia é suprimir
qualquer traço de originalidade personalista, tanto que o magistrado não pode
escolher a padronagem capilar segundo suas próprias inclinações ornamentais.
Assim como todos são iguais perante a lei, todos os aplicadores da lei devem
ser idênticos sob a peça de perucaria que os uniformiza. Daí decorre que os
penteados equinos que lhes cobrem o crânio são burocraticamente iguais entre
si.
Assim, em termos dogmáticos, o que era
fantasia na cachimônia de Carlos II virou signo cerimonial no Poder Judiciário.
O ato de tapar o couro cabeludo com fios de terceiros equivale ao ato de vedar
o corpo com a toga. A velha túnica, de origem romana, está lá para dizer que o
jurisconsulto, no instante de decidir, tem as suas paixões pessoais devidamente
barradas. A toga significa que o corpo de quem julga foi desligado do
julgamento. Em outras palavras, significa que o servidor que bate o martelo não
se deixa mover por paixões ou preferências íntimas. Quando togado, o magistrado
não é uma pessoa: ele é uma função.
Além da toga, capelos ou barretes, assim como
capas e cintos, podem fazer parte das chamadas vestes talares. Todas servem
para simbolizar o mesmo barramento, para o bem da impessoalidade.
No Brasil, porém, a tradição admite
peculiaridades que às vezes atrapalham a compreensão do princípio da
impessoalidade. Uma dessas peculiaridades é que a toga, obrigatória nas sessões
solenes, pode ser dispensada nas sessões ordinárias, as de todo dia. Nessas
ocasiões, mais comuns, o uso da capa é suficiente. Ocorre que a capa, em vez de
cingir, parece mais emoldurar o tronco da autoridade, dando a ela um certo
jeitão de Batman. O tecido preto e brilhante, que se desfralda ao comando dos
braços em abano do encapado, imprime ao vulto um ar quase esvoaçante,
sobre-humano. A cena talvez seja uma metáfora involuntária: os excessos
individuais que, na mais alta Corte do Brasil, têm afrontado a colegialidade,
vão se traduzir no uso egocentrado da capa, vestimenta, podemos chamar de
metonímia desviante da toga.
Voltando agora às cabelamas judicantes, estas
têm sido vítimas de pilhérias descabidas. Injustas. Postagens nas redes sociais
chegam às raias da crueldade só porque não se gostou de um voto mais... – como
eles dizem?, ah, sim – teratológico. As pilosidades do jurídico não merecem o
achincalhe. Já prestaram à deusa Têmis serviços mais valiosos que as tranças de
Rapunzel ou os cachos de Sansão. Com seus entrelaçamentos heurísticos, tão
meticulosamente tramados que parecem naturais, e tão naturais que parecem de
mentira, as perucas não têm culpa de nada.
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