segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Marcelo Trindade* - Patrulha noturna

- O Globo

Mais de 30 anos depois da redemocratização, nossa esquerda vitimiza-se à primeira oportunidade

No começo da década de 1980, boa parte de minha geração tinha um desejo latente de engajamento político. Os mais à esquerda frustravam-se por não termos sofrido como a geração anterior. Lendo Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis, invejávamos a coragem dos jovens antes de nós, e nos sentíamos fúteis e egoístas.

Votamos para governador em 1982, pela primeira vez desde 1965, e um metalúrgico radical liderava um partido de trabalhadores. Mas o ocaso da ditadura era lento e gradual, e as passeatas pelas Diretas só viriam em 1984. Os protagonistas da política eram do passado. Da esquerda à direita, pagava-se o preço de quase duas décadas de opressão.

Foi em meio a essa puberdade tardia de nosso desejo político que surgiram a rádio Fluminense e o rock nacional. Junto com o discurso dos velhos políticos retornados do exílio e os versos das canções de protesto murchados pela distensão, passávamos a ouvir músicas feitas por garotos e garotas como nós.

Tinha 19 anos quando saiu o primeiro disco dos Paralamas do Sucesso, “Cinema mudo”, de 1983. O amigo Vital, a dificuldade de focar no estudo para o vestibular, o medo das blitzen policiais que infernizavam nossas escapadas noturnas. A simplicidade juvenil dos temas me acertou em cheio. E eu nem sabia que amadureceríamos juntos, disco a disco, por décadas.

Estava tudo lá, o som era alto e bom, outros talentos vieram, mas mesmo assim muitos amigos fizeram cara feia e patrulharam o rock nacional. Não gostavam das letras pequeno-burguesas e diziam que o momento era de atuação política. Como eu ouvia aquela música o tempo todo, sabia as letras e ia aos shows, vira e mexe sentia-me como uma espécie de fã ressuscitado da Jovem Guarda. Levou algum tempo até aqueles jovens músicos serem aceitos pela intelligentsia brasileira.

O sentimento me voltou com os ataques recentes a Regina Duarte. Quase ninguém considerou o sacrifício para uma atriz, mesmo não sendo da patota, dispor-se a assumir uma função em um governo abominado, e com razão, por seus pares. Sem conhecê-la, presumi que, ao menos em parte, ela tivesse aceito o risco do linchamento público por perceber o ponto a que as coisas haviam chegado no tratamento da cultura pelo governo Bolsonaro. Regina não fará milagres, mas tem uma oportunidade. Ciente do ônus que o presidente teria para demiti-la, pode impor limites e denunciar quem quiser ultrapassá-los. Parece pouco para quem apedreja, mas só até ser apedrejado.

Antes que a brasa da fogueira de Regina Duarte apagasse, o camburão da patrulha ideológica passou recolhendo outro acusado de traição. Pedro Bial foi linchado por ter criticado “Democracia em vertigem”, o filme de Petra Costa que concorria ao Oscar. No GLOBO, a diretora disse que conseguiu “superar” o “baque” graças à “quantidade de abraços” que recebeu e à “irmandade” com que foi “acolhida”. As coisas vão mal quando opiniões sobre um filme geram ataques em massa. Mas vão muito pior quando uma diretora de cinema considera uma crítica como um ataque, e ainda merecedor de solidariedade. Perguntar não ofende: no que difere esse sentimento daquele do presidente da República, que trata qualquer crítica a seu governo como um ato de traição à pátria?

Mais de 30 anos depois da redemocratização, nossa esquerda segue na patrulha, vitimiza-se à primeira oportunidade e silencia quando se trata de criticar seu próprio campo. Isso seria apenas triste, ou ridículo, não fosse o fato de que essa postura é explorada politicamente pelo extremo oposto. E as pessoas comuns, cansadas da encenação e da moralidade seletiva, terminam reagindo da pior maneira, votando em quem ataca os patrulheiros com mais virulência.

Com a Jovem Guarda e o rock nacional, foram as palavras e ações de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Nelson Motta, e outros brasileiros insuspeitos de colaboracionismo, que surgiram para arejar as cabeças e resgatar a liberdade de expressão do sequestro ideológico. Quem dera um desses super-homens venha nos restituir a glória da lucidez.

*Marcelo Trindade é advogado e professor da PUC-Rio

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