Correio Braziliense
Deputados agem como se
pudessem reinventar o passado e ressuscitar mecanismos que sempre serviram à
impunidade dos poderosos, sob comando de Hugo Motta
A Câmara dos Deputados decidiu restabelecer o
voto secreto para analisar a abertura de processos contra parlamentares pelo
Supremo Tribunal Federal (STF). Cerca de 70 congressistas estão sendo
investigados por desvio de recursos de emendas parlamentares. A decisão é um
retrocesso político, que visa a perpetuar várias práticas de autoproteção da
atual “elite” política do Congresso.
Tal decisão, com tanta desfaçatez, fragiliza a democracia e desmoraliza uma de suas principais instituições. Quando havia essa prerrogativa, de 250 deputados investigados, somente um foi punido. Querem ressuscitar a regra porque os deputados dispõem de tantos recursos provenientes dessas emendas, em média R$ 50 milhões cada, que podem dar as costas à sociedade e comprar os votos necessários para sua reeleição, em evidente disparidade de armas em relação aos demais candidatos.
Essa decisão não pode ser lida apenas como
uma manobra regimental, mas como a recidiva de velhas e perversas estruturas
sociais, herdadas do período colonial e do regime escravocrata, e da emergência
de relações mafiosas na política, muitas vezes associada ao crime organizado
dos grandes centros. Em Os Donos do Poder (Biblioteca Azul), Raymundo Faoro
descreveu como o Estado brasileiro foi moldado pelo patrimonialismo, herdado da
tradição portuguesa, em que a linha entre público e privado se dissolve. O que
se vê hoje é justamente a continuidade desse modelo: deputados e senadores
agindo como donos do poder, transformando a coisa pública em instrumento de
defesa corporativa e formando patrimônio com recursos públicos.
A PEC da Blindagem restabelece o que vigorou
entre 1988 e 2001: a necessidade de aval do Congresso para processar
parlamentares criminalmente. O resultado é previsível. A volta desse sistema,
agora com voto secreto, é a blindagem perfeita para a impunidade. Se Faoro nos
ajuda a compreender o caráter patrimonialista dessa decisão, Victor Nunes Leal
ilumina outro aspecto, como descreveu em Coronelismo, Enxada e Voto (Companhia
das Letras): a opressão e o clientelismo nas bases eleitorais desses
parlamentares, para as quais são destinadas as emendas parlamentares.
O voto aberto, sem sigilo, servia para
submeter o eleitor ao coronel pela intimidação; hoje, o voto é comprado às
vésperas das eleições, assim como apoio de prefeitos, vereadores e empresários,
com dinheiro desviado das emendas parlamentares destinadas às prefeituras e
organizações sociais. O eleitor continua sem voz, enquanto os parlamentares se
escondem atrás do lusco-fusco dos processos administrativos sem transparência.
É uma síntese perversa: o patrimonialismo garante a apropriação privada do
Estado; o coronelismo inspira a manipulação do voto; juntos, produzem um
sistema fechado, que esvazia o conteúdo democrático da representação parlamentar.
De volta ao passado
A Câmara age como se pudesse reinventar o
passado, repetindo mecanismos que sempre serviram para garantir a impunidade
dos poderosos. No centro desse processo está Hugo Motta (Republicanos-PB),
presidente da Casa. Jovem, 35 anos, deputado desde 2011, filho de uma família
tradicional da política paraibana, Motta parecia representar uma nova geração.
Mas, ao assumir a presidência, mostrou-se herdeiro fiel do velho patriarcado
associado ao pragmatismo do Centrão. Liberou votação semipresencial, conduziu
negociações de bastidor, patrocinou a manobra regimental que ressuscitou o voto
secreto. Não hesitou em rejeitar questionamentos da oposição, impondo a
blindagem como vitória pessoal. Agora, articula a anistia para os golpistas de
8 de janeiro.
Motta construiu sua carreira nos bastidores
da Câmara, foi relator de CPIs e ocupou cargos estratégicos. Agora, como
presidente, escolheu usar essa habilidade de bom articulador para aprofundar o
fosso entre representantes e representados. Seu gesto revela mais continuidade
do que renovação: é a política da autopreservação, reciclada sob nova embalagem
geracional. Seu recado é claro. Não vê o Parlamento como instituição a serviço
da sociedade, mas como corporação voltada para proteger a si mesma. É uma
mistura de transformismo político, daí a adesão de parlamentares que não
representam velhas oligarquias, e o cretinismo parlamentar, que ignora os
interesses da sociedade que deveriam estar representados.
Como diz o ditado popular, passarinho que
come pedra sabe o fiofó que tem. Quando ameaçada pelo avanço das investigações
do STF e pela exigência de transparência, a Câmara fecha as portas e apaga as
luzes. O voto secreto é a escuridão que esconde a responsabilidade. Não apenas
dos que já foram pegos com a boca na botija, mas também de parte daqueles que
por terem adotado as mesmas práticas resolveram zerar os riscos de serem
identificados, porque sabem que os recursos desviados serão rastreados se
houver investigação.
A sociedade, no entanto, não é a mesma da
República Velha. Nem pode aceitar passivamente que seus representantes atuem
como coronéis modernos ou como herdeiros de um estamento patrimonialista. O
Brasil de hoje exige mais transparência, mais responsabilidade e mais
democracia. A História mostra que esses mecanismos não são eternos. Desabam
quando a sociedade decide que já não aceita ser tutelada. O grande desafio é
transformar a indignação em resistência e mobilização, para que o voto secreto
para proteger falcatruas não se converta em símbolo definitivo da desconexão
entre política e cidadania.
Como sempre acontece em arranjos concebidos
nas madrugadas e aprovados a fórceps, a PEC da Blindagem tem, ao menos, duas
inconstitucionalidades, passíveis de anulação pelo Supremo: desrespeita a regra
regimental de o mesmo texto da emenda ser aprovado duas vezes; a prerrogativa
de foro privilegiado não se aplica aos presidentes de partidos, porque se
destina a agentes públicos, e os partidos são entes privados.
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