quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Sinais mostram governo desconfortável e em meio a um flerte com o passado

Por Claudia Safatle - Valor Econômico

BRASÍLIA - Os últimos dias foram pródigos em indicações de que o governo Dilma Rousseff está desconfortável com a realidade e tenta reagir de acordo com seu DNA. Não foi só a elaboração de um Orçamento deficitário, transferindo a solução para o Congresso, que revelou o desânimo para aprofundar os cortes de gastos públicos. A intenção de incluir o Banco Central na reforma administrativa, tirando do presidente da instituição o status de ministro, é outro aviso importante.

Não foi à toa que nos últimos dias jornais de grande circulação publicaram que Alexandre Tombini estaria procurando emprego ou ameaçando deixar o governo, caso esteja para perder o posto de ministro e voltar a estar subordinado ao Ministério da Fazenda e à Justiça de primeira instância.

Os esforços para "queimar" o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e Tombini, só podem indicar que o Palácio do Planalto quer retomar para si as rédeas da política econômica, cuja essência seria a expansão fiscal, monetária e creditícia. Importante lembrar que, há poucos dias, a Caixa e o Banco do Brasil anunciaram linhas de crédito para salvar o setor automobilístico.

O clima de desacertos e desentendimentos está instalado no governo, sem que se faça o menor esforço para evitar a perda do grau de investimento. O pretenso acordão, ensaiado há dez dias para dar condições de governabilidade à Dilma, não durou 48 horas.

O presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, pediu a exoneração do ministro da Fazenda, em jantar com o vice-presidente Michel Temer e um grupo de grandes empresários, e nenhuma voz oficial se levantou para defender Levy.

Dilma e os ministros palacianos estão flertando com o passado. O mesmo passado que levou o Brasil para a recessão e o desemprego de hoje. Levy resiste na esperança de evitar um desastre, mas trava a batalha solitário.

Tombini, por seu lado, fez desse BC a instituição mais dura do planeta na expectativa de vencer a resistência da inflação. O risco que está colocado é Dilma desistir de tudo e dar um "meia volta, volver".

Senado acaba com doações empresariais

Por Vandson Lima – Valor Econômico

BRASÍLIA - Em decisão surpreendente, o Senado aprovou, com 36 votos favoráveis e 31 contrários, mudança do projeto da reforma política que acaba com as doações de empresas às campanhas eleitorais de candidatos e aos partidos políticos.

Revertendo o principal ponto do substitutivo elaborado por Romero Jucá (PMDB-RR), aprovado instantes antes pelo próprio Senado, os parlamentares derrubaram a permissão para empresas repassarem recursos apenas a partidos.

Com a mudança, candidatos e partidos só poderão receber doações de pessoas físicas. O limite será o rendimento recebido pelo doador no ano anterior à eleição.

A Câmara poderá ainda reverter as alterações feitas no Senado e restabelecer o texto por ela votado anteriormente, com limite de R$ 20 milhões para doação de empresa, seja a partido ou candidato.

"Demos um passo para descriminalizar a política. Hoje boa parte dos escândalos de corrupção estão ligados às doações de empresas em campanhas. Estamos fazendo história", comemorou o senador Jorge Viana (PT-AC).

Os partidos poderão repassar dinheiro recebido a seus candidatos, o que ainda permite uma brecha para a chamada "doação oculta", em que o doador que não quer se vincular ao candidato envia o dinheiro com destinatário definido de maneira informal, como já acontece atualmente.

Também foi aprovado destaque que cria uma espécie de janela permanente a cada dois anos para a migração partidária. Pela proposta, 13 meses antes do período de cada eleição os parlamentares poderão trocar de legenda sem perderem seus mandatos. Presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) alertou para a possível inconstitucionalidade da proposta, que deveria ser objeto de emenda à Constituição e não de lei ordinária.

Outra mudança significativa feita pelo Senado determina que, do tempo reservado para propaganda em rádio e TV, 90% será distribuído proporcionalmente ao número de representantes dos partidos na Câmara dos Deputados. Os 10% restantes serão distribuídos igualitariamente. Na regra atual, 2/3 do tempo são distribuídos proporcionalmente ao número de deputados. A regra, se passar, dificulta a vida de novos partidos, como a Rede Sustentabilidade da ex-senadora Marina Silva.

Foi igualmente aprovada regra que obriga, no segundo turno, os candidatos a governador e a presidente a participar de pelo menos três debates televisivos. Até as eleições de 2020, candidatos de partidos com mais de quatro deputados terão direito a participar dos debates em rádios e TVs. Depois disso, apenas candidatos de partidos com nove deputados participarão.

Ficará proibida contratação de empresa para realizar pesquisa que tenha prestado, nos 12 meses anteriores, serviços a partidos, candidatos, órgãos ou entidades da administração pública.

Será vedada a contratação dos chamados "militantes pagos".

A desaprovação das contas será punida com a devolução apontada como irregular, acrescida de multa de até 20%. Hoje a desaprovação implica na suspensão de novas cotas do Fundo Partidário.

Foi mantida mudança que obriga a emissão de recibo impresso do voto nas urnas eletrônicas.

Cunha impede ação contra Dilma e preocupa oposição

• Deputados queriam visitar gráfica suspeita de fraude na campanha eleitoral

Júnia Gama e Simone Iglesias- O Globo

- BRASÍLIA e RIO- O encontro reservado de segunda- feira no Palácio do Planalto entre a presidente Dilma Rousseff e o presidente da Câmara, Eduardo Cunha ( PMDB- RJ), surtiu seu primeiro efeito ontem e deixou a oposição apreensiva. Um mês e meio após anunciar seu rompimento com o governo, Cunha dissuadiu líderes oposicionistas de levar adiante requerimento para criar uma comissão externa da Câmara com o objetivo de visitar a gráfica VTPB, em São Paulo, suspeita de fraude pelo recebimento de R$ 22,9 milhões da campanha da presidente Dilma Rousseff, no ano passado.

O pedido, assinado pelos líderes de DEM, PPS, PSDB, Solidariedade e da minoria, foi apresentado terça- feira a Cunha, pouco após o encontro dele com a presidente. Cunha então apelou aos deputados para que deixassem sua apreciação apenas para o dia seguinte, já que poderia atrapalhar a votação das matérias pautadas para o dia, como a do Supersimples.

“Jogo de sedução”
Ontem, os deputados voltaram a insistir na apresentação do requerimento em plenário, mas Cunha, reservadamente, pediu que deixassem a ação para outro momento. O presidente da Câmara disse que não queria tomar decisão que pudesse aparentar ser mais uma investida contra o governo.

— Notamos que ele está mais reflexivo e menos impulsivo em relação ao governo — disse um deputado da oposição.

O movimento apaziguador de Cunha gerou tensão entre os oposicionistas. Há uma percepção de que o governo estaria fazendo um “jogo de sedução” para neutralizar o ímpeto oposicionista do peemedebista na Câmara, e que Cunha estaria suscetível a essas investidas, já que se encontra enfraquecido pela denúncia de que é alvo no âmbito da Operação Lava- Jato.

Representantes da oposição realizaram ontem atos públicos de apoio a Cunha. Primeiro, foi um café da manhã com deputados do DEM; depois, um encontro com a juventude do Solidariedade, no qual Cunha foi recebido com gritos de “guerreiro do povo brasileiro”.

— A oposição vai reforçar o respaldo a Eduardo, não queremos entregá- lo aos leões — resumiu um líder da oposição.

Na noite de segunda, Cunha recebeu aliados para um jantar e disse que a conversa com Dilma não significa que haverá um armistício. Segundo aliados, ele sinalizou apenas que terá uma postura mais colaborativa nas pautas econômicas.

A presidente fez um apelo a Cunha pela manutenção dos vetos, em especial os que aumentam as despesas do Executivo. Cunha respondeu que é problema do Congresso, não só da Câmara. E fez críticas ao ministro Joaquim Levy.

Os sete governadores do PMDB decidiram se reunir na próxima terça- feira, em Brasília, com o vice Michel Temer e com Cunha para tentar agilizar as reformas no Congresso.

Crise gaúcha pode se repetir em mais Estados, diz Pezão

• Análise é compartilhada com colegas de PMDB; governador avalia enviar previsão de Orçamento deficitário à Assembleia

Luciana Nunes Leal - O Estado de S. Paulo

RIO - Reunidos nesta quarta-feira, 2, no Palácio Guanabara, sede do governo fluminense, quatro dos sete governadores do PMDB traçaram um cenário sombrio da economia e disseram que a crise financeira do Rio Grande do Sul pode se repetir em outros Estados. O governo gaúcho atrasou pagamento da dívida com a União e parcelou os salários dos servidores, o que gerou greve de várias categorias. O governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, avalia a possibilidade de enviar à Assembleia Legislativa o Orçamento de 2016 com previsão de déficit, como fez a presidente Dilma Rousseff com o projeto de lei orçamentário remetido ao Congresso.

Pezão estima déficit de R$ 11 bilhões nas contas estaduais em 2016. A previsão inclui todos os gastos, até mesmo o pagamento da dívida.

“O governador Ivo Sartori tem nossa solidariedade, o Rio Grande do Sul passa por momentos difíceis e outros Estados estão se aproximando destas dificuldades. Mais de dez Estados estão em dificuldades para fechar a folha de pagamento, as contas não estão fechando”, afirmou Pezão. “O problema do Rio Grande do Sul está presente em todos os Estados. Se não olharmos a dimensão do problema, teremos uma visão equivocada deste momento”, reforçou o capixaba Paulo Hartung.

Reunião. Os governadores anunciaram que na próxima terça-feira levarão a Brasília uma pauta de propostas para mudanças de médio e longo prazos, centradas nas reformas previdenciária, tributária e trabalhista. Eles se reunirão com o vice-presidente Michel Temer e os presidentes do Senado, Renan Calheiros (AL), e da Câmara, Eduardo Cunha (RJ).

“O PMDB tem o vice-presidente, os presidentes da Câmara e do Senado e sete governadores. É um partido que pode decidir muita coisa. É hora de nos unirmos ou nós, governadores, seremos meramente gerenciadores de folha de pagamento”, disse Marcelo Miranda (TO).

Pezão disse que não foram discutidos ontem temas como o Orçamento da União de 2016 e a volta da CPMF e que também não esteve em pauta a instabilidade do governo Dilma. Sobre o envio de Orçamento deficitário à Assembleia, o governador do Rio afirmou que a decisão será tomada após reuniões com secretários, Ministério Público, Tribunal de Justiça e Tribunal de Contas do Estado. Pezão tem dúvidas se o Orçamento deficitário fere a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

“Vamos discutir esses números, quero mandar (o Orçamento de 2016) o mais equilibrado e realista possível”, disse Pezão, acrescentando que a queda na arrecadação com royalties do petróleo comprometeu seriamente as contas do Estado este ano e o quadro deve se repetir em 2016. O déficit este ano chegou a R$ 13,5 bilhões. Agora está em R$ 2,5 bilhões.

Uma das alternativas em estudo no governo fluminense para melhorar as contas de 2016 é a venda da dívida ativa do Estado, de R$ 66 bilhões. Projeto de lei aprovado pela Assembleia autorizou a securitização da dívida, com emissão de debêntures por uma instituição financeira, ainda não escolhida.

Também participou do encontro de governadores peemedebistas Confúcio Moura, de Rondônia.

Roberto Freire - Um governo que já não governa

- Blog do Noblat / O Globo

Como se ainda fosse necessário, a presidente Dilma Rousseff parece se superar a cada dia na dedicada tarefa de apresentar aos brasileiros as credenciais de sua própria incompetência. A mais recente trapalhada de um governo que não tem mais nada a oferecer ao país é a entrega ao Congresso Nacional da peça orçamentária de 2016 com um déficit de mais de R$ 30 bilhões, o que escancara o tamanho do rombo produzido pelo PT nas contas públicas e o total descompromisso do Executivo com suas obrigações.

Além de assumir categoricamente que o governo não tem capacidade sequer de pagar as próprias contas, Dilma não demonstra constrangimento em violar a Lei de Responsabilidade Fiscal, que entrou em vigor durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. O texto legal é claro e não deixa margem para dúvidas: o Executivo tem de dizer de onde vêm as receitas para cobrir as despesas previstas – e entregar ao Legislativo uma proposta de Orçamento equilibrada, e não deficitária.

A desfaçatez lulopetista, além de flagrantemente ilegal, é moralmente inaceitável. Incapaz de realizar os cortes e ajustes que se impõem para o equilíbrio orçamentário, sobretudo depois da farra dos últimos 13 anos que destruiu as contas do país em troca da popularidade fácil e para perpetuar o PT no poder, o governo joga sobre os ombros do Parlamento uma proposta inconcebível e tenta transferir aos congressistas uma prerrogativa exclusiva da presidente da República.

Com todos os seus problemas, é nítido que o Legislativo vem atuando de forma soberana e mais independente em relação ao governo federal do que nas legislaturas anteriores. Neste momento, é fundamental que os parlamentares ajam mais uma vez de forma altiva e devolvam a peça orçamentária ao Executivo para que a presidente resolva um problema criado por ela e por seu antecessor – ao invés de descumprir a lei como vem fazendo, o que pode configurar mais uma das inúmeras razões para a abertura de um processo de impeachment por crime de responsabilidade.

O rombo no Orçamento é o atestado definitivo da incapacidade do governo do PT de conduzir o país em meio a uma das maiores crises de nossa história republicana. A política econômica irresponsável levada a cabo por Lula, com base no incentivo ao consumo exacerbado, levou o país ao chão. A conta que a sociedade paga hoje é altíssima e vem na forma de desemprego, inflação, endividamento e queda da renda das famílias, além da desindustrialização que comprometerá o desenvolvimento do Brasil por décadas.

A conjunção de diversas crises – econômica, social, política e moral – se agrava a cada dia e paralisa o país. A ingovernabilidade se instalou de tal forma que a presidente da República já não consegue comandar coisa alguma, pois perdeu a credibilidade e o apoio parlamentar que lhe dava sustentação no Congresso. O único objetivo de Dilma é permanecer no cargo e concluir o mandato para o qual foi eleita graças às mentiras, aos ataques rasteiros contra os adversários e às irregularidades nas contas de campanha – mas esse desfecho parece cada vez mais improvável diante das enormes dificuldades no horizonte político, o que reforça a tese do impeachment.

O país não aguenta mais três anos de incompetência, desfaçatez e desmantelo. Com Dilma e o PT, estamos condenados a mais do mesmo e não sairemos do buraco. Este governo não sabe o que fazer para enfrentar a crise, não oferece nenhuma perspectiva, não tem futuro. O futuro é nos livrarmos dele, respeitando a Constituição e o calendário eleitoral, e resgatarmos a confiança dos brasileiros no Brasil.
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Roberto Freire é deputado federal por São Paulo e presidente nacional do PPS

Merval Pereira - Dilma no labirinto

- O Globo

A presidente Dilma Rousseff deve aos brasileiros muitas explicações, que vão se acumulando com o passar do tempo, mas a que se dispôs a dar sobre o Orçamento com déficit que enviou ao Congresso não faz nenhum sentido. Se vai mandar uma emenda ao Orçamento para cobrir o rombo de mais de R$ 30 bilhões, por que não o fez antes, enviando um Orçamento equilibrado?

Averdade é que até quando pretende ser transparente este governo está apenas fingindo transparência. O movimento político de chocar o Congresso com um Orçamento nunca visto tinha o objetivo de fazer dos parlamentares cúmplices dos aumentos de impostos que serão necessários acrescentar às nossas contas públicas.

Como não deu certo, o governo vai ter que assumir a culpa sozinho, e não é descartável a chance de recriação da CPMF, ou imposto da mesma natureza com outro nome. Repercutiu muito mal no mercado financeiro a decisão de assumir o déficit primário como número oficial para 2016, como se o governo dissesse ao mundo que não há mais nada a fazer a não ser não pagar as dívidas.

Tudo fica mais difícil quando o governo tem uma oposição vigorosa dentro de seu próprio corpo político, já que o PT decidiu oficialmente combater o ajuste fiscal e pedir a saída do ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Isso é de um déjà vu tremendo, pois, quando Antonio Palocci era ministro da Fazenda, seus assessores provenientes do mercado financeiro — a maioria com ligações com o PSDB, mas disposta a ajudar um governo petista a organizar as finanças públicas — eram atacados quase que diariamente por setores do PT.

Como Palocci é um capa preta do petismo, os protestos não tinham nenhuma importância política. Com Levy é diferente. Ele é o ministro da Fazenda e não tem ninguém, a não ser a presidente Dilma, para segurá- lo. Acontece que Dilma também não é petista de alma e não tem a menor influência no esquema partidário.

Corremos o sério risco de ver daqui a pouco o próprio partido pedindo que renuncie, para livrálo das consequências do desastroso segundo mandato de Dilma. E com o apoio de Lula, que assim estaria livre para exercer a oposição a um governo de Michel Temer, do PMDB, que terá que fazer tantas e tamanhas maldades financeiras e fiscais que será alvo fácil do petismo tentando se reinventar na oposição.

Desconfio que essa seja uma das principais razões para o arrefecimento da campanha da oposição pelo impeachment de Dilma. Mesmo um novo governo, no caso de o Tribunal Superior Eleitoral chegar à conclusão de que deve cassar a chapa, teria dificuldades para se sair bem no complemento do mandato de Dilma, por mais ou menos dois anos.

Mesmo com a legitimidade que as urnas lhe dariam, é pouco tempo para consertar o estrago que já foi feito. O pior, porém, é que deixar do jeito que está só fará aumentar o estrago, haja vista o Orçamento deficitário que alguma inteligência palaciana convenceu a presidente a enviar ao Congresso como uma grande chantagem sobre os políticos.

Pior ainda se a ideia foi da própria presidente, pois ficaria patente que não existe a seu redor ninguém capaz de demovê- la de atitudes insensatas. No seu discurso característico, em que o pensamento parece que vai para um lado, e a oratória, para o outro, Dilma garantiu que não quer dividir a responsabilidade com o Congresso, para logo em seguida afirmar que quer construir junto com o Congresso uma proposta orçamentária que seja realista.

Além de serem incoerentes entre si, os termos revelam que os Orçamentos anteriores, que acabaram apresentando um déficit onde se previa superávit, eram maquiados, irrealistas. Estão explicadas as “pedaladas fiscais”, o Tribunal de Contas da União ( TCU) não precisa de mais nada para se pronunciar.

José Roberto de Toledo - Cálculos políticos

- O Estado de S. Paulo

A situação do governo no Congresso é tão precária que são escassas as chances de aprovar um novo imposto sem a ajuda da oposição – que é contra. Não precisa ter três articuladores com status de ministro para descobrir isso. Basta tocar meia dúzia de vezes na tela do celular. Quem fizer isso vai ver que, mesmo com apoio formal do PMDB e do PSD, a probabilidade de Dilma Rousseff aprovar uma emenda constitucional na Câmara é de 39%.

Se PMDB e PSD ficarem em cima do muro e liberarem as bancadas para cada deputado votar como quiser – um cenário provável –, há duas vezes mais chance de derrota do governo do que de vitória. Se os líderes do PMDB e do PSD encaminharem contra a emenda, o risco de Dilma perder cresce 50% e chega a três para um. Mágica? Quase: estatística.

O “Vai Passar?” (estadaodados.com/vai-passar) é um algoritmo de computador elaborado pelo Estadão Dados. Seu modelo analisa as votações nominais desta legislatura na Câmara. Foram 141 até agora. Com base nos resultados passados e na orientação que os líderes dos principais partidos deram para seus deputados, o algoritmo projeta o que é mais provável que aconteça na próxima votação. Basta o usuário simular o que cada líder vai fazer.

A probabilidade varia em função de quais e quantos partidos estão a favor ou contra a proposta e do quórum necessário para aprová-la. Um projeto de lei ordinária precisa de maioria simples – metade mais um dos parlamentares presentes, que não podem ser menos de 257. Já uma lei complementar à Constituição requer maioria absoluta de todos os deputados: 257 votos. E uma emenda constitucional precisa de dois terços: 308 votos.

Quanto menor o número de votos necessários à aprovação, maior a chance de vitória do governo. Assim, para validar uma medida provisória, por exemplo, basta a Dilma, em tese, o apoio formal do PMDB e do PSD. Mesmo que a oposição e o PSDB encaminhem contra, são enormes as chances de a MP virar lei. Mas se os dois principais “aliados” liberarem suas bancadas, há uma chance em três de o governo perder a votação e a MP ir para o limbo.

O modelo do “Vai Passar?” é infalível? Não, ele erra uma a cada dez previsões. É raro, mas acontece. Em maio, por exemplo, a MP 664 (restringe o acesso à pensão por morte) passou, mas modificada. Mesmo com o apoio dos líderes do PMDB e do PSD, o governo não conseguiu evitar que a Câmara alterasse o texto, contrariando a previsão do modelo. O erro aconteceu porque as bancadas do PSD e do PMDB racharam. Mesmo assim, 90% de acerto é mais do que a articulação do Planalto costuma emplacar.

E a volta da CPMF, o antigo “imposto do cheque”? Em tese, novos impostos são criados por lei complementar. A chance de o governo alcançar a maioria absoluta que esse tipo de lei requer é de apenas 50%, mesmo que PMDB e PSD encaminhem a favor. Meio a meio de probabilidade já é muito arriscado, mas, para piorar, quando a CPMF foi criada, em 1996 no governo FHC, foi por emenda constitucional. Idem quando caiu, em 2007. E a chance de o governo aprovar um remendo da Constituição é de apenas 39%.

O déficit bilionário no Orçamento para 2016 prova que a soma dos lobbies empresariais, burocráticos e políticos é maior do que tudo o que a União consegue arrecadar. Sem força para barrá-los no Congresso, Dilma sonha com a CPMF, ou algo do gênero. Há jeito de ela reverter as probabilidades a seu favor? Talvez se tivesse o apoio dos governadores, inclusive os da oposição.

Os governos estaduais também sofrem com a crise. O gaúcho atrasa salários. O paulista arrecadou quase R$ 1 bilhão a menos do que previa em agosto e adiou obras. Como contrapartida a eventual apoio no Congresso, Dilma poderia elevar o limite de endividamento dos Estados – sonho de todo governador. Mas, além de arriscada, é provável que a manobra lhe custasse um ministro.

Bernardo Mello Franco - Levy na frigideira

- Folha de S. Paulo

Na política, um "não" repetido muitas vezes pode confirmar mais do que um "sim". A presidente Dilma Rousseff deu um exemplo disso nesta quarta, ao negar, negar e negar que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, esteja "desgastado" ou "isolado" no governo.

Dilma foi questionada sobre a fritura após uma fastidiosa solenidade no Planalto. "Olha, eu acho que nessa questão do ministro Levy, eu já disse uma vez que tem fatos que não são verídicos, não são verdadeiros. O ministro Levy não está desgastado dentro do governo", respondeu. "Não contribui para o país esse tipo de fala de que o ministro Levy está desgastado, que ministro A briga com ministro B. Não contribui para o país. Ele não está desgastado."

Uma repórter perguntou, então, se Levy está "isolado". "Ele também não está. E isolado de quem? De mim ele não está. Então, não está isolado", disse Dilma. "Me desculpa, mas acho que é um desserviço para o país esse processo de transformar e falar que o ministro Levy está isolado, está desgastado. Não está, não. Dentro do governo, ele não está. Nós temos o maior respeito pelo ministro."

As 12 vezes em que a presidente pronunciou a palavra "não" só ajudaram a reforçar que Levy está, sim, desgastado e isolado no governo.

O novo revés veio com a decisão presidencial de fechar o Orçamento de 2016 com previsão de deficit, contra a vontade do ministro. Sua fritura alcançou temperatura recorde, e ele sabe disso –não é um político profissional, mas também não é bobo.

Depois de mais uma derrota pública e sob fogo cerrado do PT, Levy tem motivos de sobra para se perguntar se deve sair do governo. Ao menos para ele, as 12 negativas da chefe podem não ser a melhor resposta.

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Ao deixar o PT, a senadora Marta Suplicy disse que "não tinha mais como conviver" com a corrupção. Agora que decidiu se filiar ao PMDB, será colega de Cunha, Jader e Renan.

Luiz Carlos Azedo - A grana da política

• Pressionados pela opinião pública e pelos órgãos de controle, os políticos resolveram estabelecer regras mais rigorosas para as doações de campanha

- Correio Braziliense

O Senado derrubou ontem o financiamento de empresas a partidos e a candidatos. Os senadores alteraram o texto aprovado pela Câmara, que previa um limite de R$ 20 milhões para as doações de empresas aos partidos. O projeto volta para a Câmara onde deve causar grande polêmica.

O financiamento eleitoral é o nervo exposto da política nacional hoje — não a política dos cidadãos, que se exerce no dia a dia da sociedade, mas a política dos políticos, principalmente em campanha eleitoral. O fundo partidário, que tem financiamento público, recentemente foi triplicado, mas serve para manter o funcionamento dos partidos; quando nada, para manter seus dirigentes principais. É um nervo exposto porque a Operação Lava-Jato colocou em xeque o modelo atual, como veremos mais adiante.

Pressionados pela opinião pública e pelos órgãos de controle, os políticos resolveram estabelecer regras mais rigorosas para as doações, muito mais com a preocupação de se protegerem do que de garantir mais transparência aos gastos de campanha. A proposta aprovada pela Câmara, por exemplo, proíbe a doação de empresas a candidatos, mas na prática são eles que farão a captação e receberão o grosso dos recursos, como, aliás, já acontece. É uma maneira de camuflar o lobby que fazem em benefício das empresas doadoras.

A proposta também determina que cada partido possa receber doações de até 0,5% da receita da empresa doadora, ou seja, caso a empresa opte por doar o teto de 2% da receita, o valor deverá estar diluído entre ao menos quatro siglas. Pelo texto, as pessoas físicas podem fazer doações a candidatos ou partidos, de até 10% dos rendimentos que obtiveram no ano anterior à eleição. Essas regras somente serão mantidas se houver objeção ao fim do financiamento privado por parte da Câmara, para onde o projeto voltará depois de concluída a votação no Senado.

Volta à pauta o financiamento público de campanha, uma bandeira que o PT empunhou com ardor, em parte para se defender das acusações de envolvimento no processo do “mensalão”, a famosa Ação Penal nº 470 julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e no escândalo da Petrobras. Foi sepultada na Câmara e, agora, ressuscitada pelo Senado, onde foi derrotada a tese de que a proposta fortaleceria em demasia a cúpula dos partidos e ainda provaria um desequilíbrio nas disputas eleitorais, pois favoreceria os candidatos de riqueza pessoal elevada, em detrimento dos demais.

Toda essa discussão, entretanto, tem por pano de fundo a crise de financiamento das campanhas eleitorais, depois que a legislação pôs na ilegalidade uma velha tradição da política brasileira: o “caixa 2” de campanha, geralmente formado a partir do superfaturamento de contratos, desvios de verbas públicas e favorecimentos em licitações. O que distinguia o político honesto do desonesto era uma linha sinuosa, que apartava quem utilizava os recursos para a campanha propriamente dita e aquele que se apropriava do dinheiro para formar patrimônio.

Essa linha divisória, porém, nunca existiu para a opinião pública, muito menos para os órgãos de controle e fiscalização — como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Ministério Público e a Polícia Federal.

Doações
O estouro da boiada ocorreu com o chamado “mensalão”, cuja existência o PT nega até hoje. Consistiu num esquema de propina para financiamento da base do governo Lula no Congresso. A tese de defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do PT, orientada pelo então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, um grande advogado e jurista, foi de que de tudo não passou de “caixa 2” para a campanha eleitoral, que teria sido financiada por um empréstimo bancário.

Escaldado pelo mensalão, o PT optou por outro esquema mais sofisticado nas campanhas de 2010 e 2014, cuja execução ficou a cargo do ex-tesoureiro João Vaccari Neto, que se encontra preso preventivamente, em razão da Operação Lava-Jato. O escândalo da Petrobras revelou um bilionário esquema de desvio de recursos da empresa e de outras estatais, a partir da formação de um cartel entre as maiores empreiteiras do país e outras empresas, que em alguns casos existem apenas para lavar dinheiro.

O PT sustenta que todas as doações que recebeu na campanha foram legais e declaradas ao TSE, assim como a maioria dos políticos envolvidos. Uma parte dos recursos desviados foi movimentada através de contas no exterior e foi parar na conta pessoal de muitos envolvidos, que estão no sal. Mas o que foi parar na campanha como doação legal ensejará uma grande polêmica jurídica, cujo desfecho pode marcar uma renovação dos costumes políticos do país e promover um strike no Congresso e nos partidos políticos.

Jarbas de Holanda - Rombo fiscal turbina crises política e do governo Dilma

Após o bloqueio das propostas do, ainda, ministro Joaquim Levy, para centrar o enfrentamento do enorme rombo das contas públicas no corte de gastos da máquina federal, ao invés disso a decisão de recriar a CPMF. Voltada às “respostas” ao déficit fiscal (e demais dimensões das crises econômica e política, e até para a da ética), apontadas pelo ex-presidente Lula – a “flexibilização” do ajuste fiscal e a retomada eleitoreira de “ações anticíclicas”. Mas, no frigir dos ovos, em face do rechaço político e social, amplo e irresistível, impôs-se o imperativo do descarte da volta da CPMF. Seguido da transferência para o Congresso da tarefa – de competência exclusiva do Executivo – da montagem do próximo orçamento federal. Adotada com o cálculo de que, assim, ele assumirá a responsabilidade e o ônus por medidas, penosas, de forte corte de gastos, inclusive sociais, e de aumento de impostos que dependem de respaldo legislativo. Mas montagem que, a rigor, vai rebaixar ainda mais o precaríssimo grau de governabilidade que é mantido ao evidenciar que a atual presidente está sendo incapaz de exercer funções institucionais intransferíveis.

Inteiramente previsíveis as reações do mercado financeiro a tudo isso, no início desta semana (antecedidas na sexta-feira por dados do IBGE indicativos do recuo de 1,9%, do PIB no segundo trimestre, puxado por um de 8,1% nos investimentos). Reações que já começam a “precificar” a perda do grau de investimento do país pelas agências internacionais de avaliação de risco, no início de 2016. Com o dólar disparando – dia a dia – em direção aos R$ 4,00, e o Ibovespa ampliando os prejuízos acumulados. Cabendo assinalar que o mercado põe em xeque projeções (do déficit primário confessado de R$ 30,5 bilhões) incluídas na proposta orçamentária encaminhada ao Congresso e proclamadas como “realistas” e “transparentes” – de uma reanimação em 2016 de 0,2% do PIB (o qual deverá sofrer mais um baque, entre -0,5% e -1%) e sobre uma melhora de receita, que com esse baque continuará dependendo de mais aumento de impostos.

Quanto ao desafio, original, de montagem do orçamento pelo Congresso, que vai estender-se pelo resto do ano e provavelmente até o primeiro trimestre do próximo, será desenvolvido sob a pressão do agravamento da crise econômica e dos seus efeitos sociais, e dos desdobramentos da operação Lava-Jato, bem como do avanço do processo de apuração e julgamento político das “pedaladas” do primeiro governo Dilma e das tentativas de impeachment – das pendentes de decisões do TSE e do STF e de pedidos feitos diretamente à Câmara. E a influência que a presidente Dilma – conseguindo manter-se no cargo – terá na montagem parlamentar do orçamento será bem secundária ou marginal. Pois nas complexas negociações a respeito, o PMDB – através do vice-presidente Michel Temer e dos dirigentes do Senado e da Câmara – buscará afirmar-se junto ao empresariado e outros segmentos da sociedade como verdadeiro polo de decisões político-institucionais. Para isso precisando menos do Palácio do Planalto (se preservado o mandato de Dilma) e mais da oposição, tendo em vista entendimentos em torno de medidas para a contenção de despesas e aumento de receitas, sobretudo as primeiras que enfrentarão forte resistência das bancadas petistas.

Mas as incertezas a respeito da qualidade e da viabilidade de respostas, emergenciais e de fôlego mais amplo, do Congresso à crise fiscal, no contexto de uma presidente extremamente fragilizada mas disposta a manter-se no cargo, acentua a insegurança e o pessimismo dos investidores, internos e externos e dos agentes produtivos em geral. Quanto à duração do agudo processo recessivo e do horizonte de uma retomada do crescimento.

Na verdade, são muito elevados – e ainda sem soluções à vista – os custos econômicos, sociais e éticos, do ciclo de governos lulopetistas que está chegando ao fim.

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Jarbas de Holanda é jornalista

Maria Cristina Fernandes - O Supremo impedido

• Quem rouba a cena, não deve cultivar privilégios adquiridos

- Valor Econômico

Dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, quatro já se declararam suspeitos no julgamento da ação dos bancos para suspender decisões em favor das perdas inflacionárias da caderneta de poupança provocadas por sucessivos planos econômicos dos governos Sarney/Collor. Dois deles (Luiz Edson Fachin e Luís Roberto Barroso) advogaram em nome de poupadores, um (Luiz Fux) tem a filha contratada em escritório envolvido na causa e a quarta (Cármen Lúcia) não explicitou a razão de seu impedimento.

Associação de poupadores alega que José Antônio Dias Toffoli defendeu bancos (públicos) como advogado-geral da União e Gilmar Mendes incorre na mesma suspeição de Fux. Se a alegação for aceita, mais da metade dos ministros estará impedida de julgar o expurgo inflacionário que, nas contas mais modestas, margeia o rombo orçamentário de 2016 e nas mais extremadas, o quintuplicam.

O lobby de bancos públicos e privados já levou 13 ex-ministros da Fazenda a assinar manifesto em defesa da ação que tramita no Supremo desde 2009. O impedimento dos ministros deixa a Corte entre duas alternativas ruins: esperar a aposentadoria dos impedidos, o que não deve se iniciar antes de 2023, ou apelar a juízes substitutos egressos do STJ.

O Judiciário é o senhor das causas que afiançam na incerteza os acordos políticos da conjuntura. A suspeição generalizada que paira sobre a Corte no julgamento dos planos é a invasão do Judiciário pelo tempo da política.

Foi a partir da Constituição de 1988 que o Judiciário passou a assumir um papel mais ativo no concerto dos poderes. Em grande parte, esse ativismo se dá pela omissão dos demais poderes, mas não no caso do expurgo inflacionário em questão.

Àquela época, o Brasil se debatia com o conflito distributivo radicalizado pela Constituinte de 1988. Foram as dificuldades de arbitrá-lo que, em grande parte, levaram à hiperinflação. O pacto buscado na ocasião, que ficaria conhecido como o 'contrato social', é hoje o norte do debate em torno do Orçamento deficitário apresentado ao Congresso.

A bilheteria continua nas mãos do mesmo 'Centrão', com duas diferenças: o espetáculo tem mais pagantes e a gerência incumbida de acomodá-los em arquibancadas puídas está sob a mira de um Judiciário que rouba a cena. Os mesmos juízes impedidos de julgar uma ação que apavora tanto o Tesouro quanto a Febraban, revolucionam a cena política brasileira. São dois atos, não necessariamente, de uma tragédia.

Em debate recente no Instituto Fernando Henrique Cardoso, o ministro Luís Roberto Barroso, advogou em defesa do papel do Supremo que, ao se confrontar com Poderes majoritários como o Executivo e o Legislativo, abre atalhos civilizatórios. Usou a denominação, para a decisão em favor da união homoafetiva e da interrupção da gravidez de fetos anencefálicos à guisa de tergiversar temas que ainda estarão sob seu juízo, como a Lava-Jato.

Nessa função mais claramente política, contestou-o o professor da FGV, Oscar Vilhena, o Judiciário, ao contrário dos Poderes majoritários, não é periodicamente renovado pelo eleitor e segue sem vigilância constitucional para seus erros. É a reação legislativa que os corrigirá, respondeu Barroso.

Não é o caso do julgamento dos planos econômicos, em que não cabe deliberação parlamentar. O Judiciário parece contaminado pela paralisia decisória que, esta semana, foi coroada pela omissão do Executivo na elaboração do Orçamento. No jogo de pressões que enredam o país na armadilha fiscal, o Judiciário tem-se imbuído de uma missão mais corporativista que civilizatória.

A proposta orçamentária abrigou um aumento ao Judiciário superior ao dos demais Poderes para aplacar a reação de servidores ao veto, ainda por ser apreciado, a um reajuste de até 78%.

A tramitação do Orçamento é o aperitivo da batalha que está por vir neste governo ou naquele que vier a sucedê-lo. Seja pela reabertura do 'contrato social' ou pela reforma do Estado, sob o comando de Joaquim Levy, Nelson Barbosa ou José Serra, as variantes de coalizão política decorrentes desta crise não terão como tergiversar direitos adquiridos. Por desprotegidos, os beneficiários de programas sociais são o primeiro alvo. Serão tão mais atingidos quanto maiores forem as salvaguardas das corporações.

No Rio, maior Estado governado pelo PMDB, juízes, desembargadores e servidores do Tribunal de Justiça passaram a ter direito desde segunda-feira, por deliberação da Assembleia Legislativa, a incorporar a seus proventos, um auxílio-educação 12 vezes superior ao Bolsa Família por cada filho matriculado em escola pública ou privada.

A extensão deste e de uma ampla lista de benefícios ao conjunto da magistratura nacional depende da aprovação de uma lei orgânica. A cereja do bolo é a incorporação, pela elite do funcionalismo público, da proposta de reajuste automático indexado ao PIB, salvaguarda dos brasileiros que recebem salário-mínimo.

Ministros do Supremo como Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia já se manifestaram contrariamente à proposta, mas sua gestação em meio a um ano de penúria fiscal demonstra o quão resistente será a corporação a abrir mão de benefícios já adquiridos, como férias de 60 dias e gratificações de toda ordem que levam os vencimentos de um juiz de primeira instância a ultrapassar facilmente o salário de ministro do Supremo, teto do funcionalismo público.

Nas últimas décadas as corporações abrigaram-se sob o discurso de que seus benefícios cabem no milésimo da taxa Selic. Deram-lhe guarida governos de PT e PSDB, além do PMDB, sempre o mais poroso aos lobbies corporativos.

O país já passou por crises fiscais sem tocar no que Oscar Vilhena chama de privilégios adquiridos. O artigo 60 da Constituição veda emendas para suprimir direitos e garantias individuais. Interpretação generosamente garantista, salvo em momentos de conjunção astral, perpetua uma das mais viçosas jabuticabas nacionais - um mercado que abriga desde trabalhadores à margem da CLT até servidores que viajam com despesas pagas e diárias de três salários mínimos bancadas pelo erário.

Se não chega a fazer cócegas no ajuste fiscal, colocaria o Estado em sintonia com a maior faxina já promovida nos seus contratos. E, quem sabe, sobraria algum para honrar os direitos dos poupadores.

Rogério Gentile - Temer quer ser o novo Itamar

- Folha de S. Paulo

Dilma Rousseff precisa começar a governar neste segundo mandato, sob o risco de em breve não ter mais condições políticas de o fazer, se é que ainda tem.

Não é à toa que um empresário do porte de Abílio Diniz diz publicamente que "o Brasil precisa trancar FHC, Lula e Temer numa sala para resolver a crise política" e deixa a atual mandatária do lado de fora.

Os seus últimos atos foram de um amadorismo quase que obsceno, inimagináveis para uma presidente e para um partido que estão há tanto tempo no poder.

Primeiro, Dilma anunciou uma reforma ministerial sem definir quais pastas vão sumir e, principalmente, como ficará a configuração de forças na Esplanada. Simplesmente jogou a informação no ar e tchau, agravando um clima que há tempos já é de pega pra capar na base aliada.

Depois, lançou uma CPMF sem combinar com ninguém, como se fosse possível aprovar uma medida impopular desse tipo apenas por vontade pessoal. Com 71% de rejeição na opinião pública, Dilma teve de recuar em três dias. Em 1996, para comparação, o tributo foi criado em meio a uma grande batalha no Congresso por um governo FHC que tinha, à época, reprovação de apenas 25%, e contava com o empenho e o prestígio de Adib Jatene.

Por fim, sem a CPMF e sem saber como fazer para fechar as contas, Dilma tentou transferir o problema do Orçamento para o Congresso. Resolvam aí esse pepino, disse, na prática, para Eduardo Cunha e companhia, aumentando ainda mais a desconfiança sobre a capacidade deste governo de conduzir a economia brasileira. Ouviu um sonoro não, claro.

O dado novo é que, enquanto Dilma abusa do direito de errar, os profissionais do PMDB, que há décadas alinham-se a todo e a qualquer governo, não estão lá mais para ajudá-la. A bem da verdade, começaram a jogar contra, pois Temer convenceu-se de que há uma grande chance de virar um novo Itamar Franco.

Carlos Alberto Sardenberg - Déficit sincero não é superávit

• Não está entre as opções de um governo legalmente instituído essa de produzir um orçamento manipulado

- O Globo

Então, ficamos assim: o governo da presidente Dilma poderia ter apresentado um orçamento com superávit de mentira. Em vez disso, teve a coragem de fazer um orçamento com déficit de verdade. E se não mentiu, teve o mérito de ser sincero.

É o que nos dizem representantes do governo, aplaudidos por aliados e até adversários. Muitos se declararam positivamente surpreendidos por tal realismo.

Mas, gente, vamos reparar: não faz o menor sentido. Não está entre as opções de um governo legalmente instituído essa de produzir um orçamento manipulado. O que nos leva a outra pergunta: como tanta gente pode considerar que seria uma alternativa possível?

Resposta simples: porque o governo Dilma 1, sob o comando de Guido Mantega, apresentou não um, mas diversos orçamentos não realistas, digamos assim, para não ofender ninguém. No ano passado, depois de prometer sucessivos superávits, o governo entregou um déficit equivalente a 0,6% do PIB.

Mas a presidente Dilma iniciou seu segundo mandato prometendo um ajuste fiscal. Parecia sincera. Tanto que nomeou para o Ministério da Fazenda o economista Joaquim Levy, conhecido no Brasil e lá fora como ortodoxo. Para ele, o equilíbrio sustentado das contas públicas, mantendo-se a dívida em níveis prudentes, é a base necessária de qualquer outra política.

Sua nomeação teve ainda um caráter simbólico. Levy foi secretário do Tesouro no primeiro governo Lula, quando, sob o comando de Antonio Palocci na Fazenda, se fez o maior superávit primário da era do real.

Logo, todo mundo pensou, a começar por Levy, que a mudança do Dilma 1 para Dilma 2 seria passar de déficit para superávit.

Pois estavam todos enganados. A mudança era de um superávit falso para um déficit assumido. Ou, de um déficit escancarado. Os números são até parecidos. Na projeto de orçamento/2016 enviado ao Congresso, estima-se um déficit primário de R$ 30 bilhões, ou 0,5% do PIB — praticamente o mesmo resultado obtido no ano passado.

Reparem: na sua primeira projeção, no começo do ano, a equipe econômica (Levy e mais o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa) estipulou meta de 1,1% do PIB de superávit para 2015 e de 2% para os dois anos seguintes.

Depois, verificados o tamanho da recessão, com queda de receita, e o tamanho maior do rombo deixado pela administração anterior, as metas de superávit foram revistas (0,15% para este ano e 0,7% para 2016). Levy já não gostou.

Com os sucessivos fracassos do ajuste fiscal imediato — o Congresso aumentando gastos em vez de cortar e a presidente Dilma se recusando a enterrar a tesoura na despesa do Executivo —, ninguém mais acredita em superávit neste ano. E para consolidar essa percepção, Levy e Barbosa entregam ao Congresso o déficit sincero de 2016. Levy também não gostou, mas a palavra final nisso foi de Dilma, com o apoio de Barbosa.

O dólar subiu forte, sinal clássico de expectativa negativa. Andaram reclamando dos mercados. Mas o que queriam? Um déficit sincero continua sendo um déficit com todas as consequências desastrosas, especialmente o aumento da dívida pública, que já veio elevada por conta dos superávits mentirosos.

Talvez ninguém tenha ficado mais decepcionado com isso do que o ministro Levy. Seu estado de espírito apareceu no day after com uma análise bem pessimista da economia brasileira. Chegou a comparar com o início dos anos 80, a pior das décadas perdidas, quando houve uma combinação de juros altos internacionais com a queda do preço das commodities exportadas pelo Brasil, que quebrou duas vezes.

Foi meio exagerado. Há agora uma fortíssima queda no preço das commodities brasileiras e os EUA vão subir juros, mas hoje o Banco Central tem reservas de mais de US$ 300 bilhões, o que afasta o risco de moratória da dívida externa. E o Brasil fez duas naquela década, 1982 e 87.

Por outro lado, o gasto do governo federal era bem menor (abaixo de 10% do PIB), com receita de impostos totais em torno dos 20%. Hoje, o governo federal gasta 21% do PIB, sem contar as transferências que faz a estados e municípios e sem contar pagamento de juros. Tudo somado, o setor público torra perto de 40% do PIB. A carga tributária para pagar isso chegou aos 37% do PIB e a dívida bruta, tomada para cobrir os rombos, se aproxima dos 70%.

Ou seja, as contas internas chegaram a um limite dramático — e foi essa sensação que o ministro Levy tem tentado passar. “A ficha tem que cair”.

Pois enquanto ele dizia isso, seu colega do Planejamento, Barbosa, sustentava: o pior da crise está passando; a recessão acaba no último trimestre deste ano; os investimentos voltam no primeiro semestre de 2016; e o consumo das famílias recupera fôlego no segundo semestre. É exatamente o discurso de Dilma: uma dificuldade passageira, e o Brasil logo volta ao ciclo de crédito e consumo, os ingredientes da farra de gastos do Lula 2 e Dilma 1.
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Carlos Alberto Sardenberg é jornalista

Celso Ming - A indústria afunda

• O problema não está na indústria em si mesma; O problema está na condução da política econômica dos últimos quatro anos, que não cuidou dos fundamentos

- O Estado de S. Paulo

Os números sobre o desempenho da indústria são de amargar, mas neles não há do que se espantar. É apenas o quadro geral um pouco pior do que já era ruim e tende a piorar.

Espanta-se apenas quem acreditava no keynesianismo tosco colocado em prática ao longo de todo o primeiro governo Dilma, que despejou na indústria R$ 400 bilhões do BNDES, pavimentou seu caminho com desonerações, reduções de impostos, créditos subsidiados, incentivos para veículos, materiais de construção, aparelhos domésticos, reservas de mercado e protecionismo alfandegário.

Apesar da profusão de bondades e dos constantes apelos do governo aos empresários para que liberassem de uma vez seu espírito animal, as coisas na indústria desandaram para essa situação aí: queda da produção de 6,6% no acumulado dos primeiros sete meses de 2015 e de 5,3% nos últimos 12 meses (veja o gráfico ao acima). As aproximadamente cem instituições auscultadas semanalmente pelo Banco Central, por meio da Pesquisa Focus, preveem, em média, queda da produção industrial brasileira em todo o ano de 2015 de 5,6%.

É a crise externa, a derrubada dos preços das commodities e a seca - repete a presidente Dilma. "A maré mudou e a ficha tem de cair", passou a dizer o ministro da Fazenda, Joaquim Levy. E, no entanto, apesar da crise externa, da desaceleração da China, do câmbio adverso, apesar da derrubada dos preços das commodities e apesar da seca, a agricultura, o setor que mais tenderia a ser prejudicado com esses fatores, deita e rola e continua deitando e rolando. Neste ano ruim, apresentará um aumento de produção física em torno de 8%, como apontam os levantamentos do IBGE e da Conab. Nem o custo Brasil, nem a precariedade da infraestrutura, nem o ativismo do governo prostraram a agricultura.

A indústria, no entanto, está baqueada pela baixa produtividade e decepcionante competitividade. Não se preparou para a virada da maré, porque foi asfixiada pela política industrial descabida, casuística e protecionista.

O problema não está na indústria em si mesma. O problema está na condução da política econômica dos últimos quatro anos, que não cuidou dos fundamentos, não levou em conta a virada da maré nem deixou cair a ficha, como pede o ministro Joaquim Levy. Não cuidou do equilíbrio das contas públicas, não tratou de destravar as negociações comerciais, deixou que a inflação disparasse e criou enormes inseguranças.

Ninguém sabe quanto tempo essa tempestade vai durar. O próprio ministro Levy, há uma semana, evocava a perspectiva de queda de inflação e a forte melhora das contas externas (contas correntes) como sinais de reversão próxima desta fase ruim. Mas, na última terça-feira, reconheceu que o País precisa ser preparado "para um choque grande e persistente". Se precisa ser preparado é porque ainda não está. E o choque grande será tão mais persistente quanto mais tempo o governo levar para produzir o ajuste.

Sem explicações
O comunicado do Copom divulgado após a reunião não adiantou nenhum comentário sobre como fica a política de juros depois que a administração Dilma admitiu a existência de um rombo orçamentário de 0,5% do PIB nas contas de 2016. Mas manteve a política de juros calibrada para atingir a meta da inflação, de 4,5%, ao fim de 2016. Portanto, ignorou a projeção oficial do governo de uma inflação de 5,4% para o próximo ano.

Míriam Leitão - Cena econômica

- O Globo

O Banco Central se reuniu diante de um quadro lastimável da economia. Tinha que decidir se elevaria os juros ou não. Em um mês e meio, desde a última reunião, o quadro piorou. O dólar subiu 13,9%, o governo enviou um orçamento deficitário ao Congresso, o desentendimento entre ministros da área econômica ficou mais evidente, a indústria caiu 1,5% em julho, e o PIB do segundo trimestre recuou 1,9%.

OBC tinha números e fatos sobre a mesa que justificariam qualquer decisão. O quadro inflacionário piorou, mas ao mesmo tempo o nível de atividade encolheu. Ele acabou decidindo manter os juros em 14,25%. Na última Ata do Copom, o Banco Central deu sinais de que manteria a taxa no mesmo patamar por um tempo suficientemente longo para levar a inflação para o centro da meta no final de 2016.

O BC continua apostando nisso, pelo visto na nota de ontem. Ele trabalhava com a hipótese de superávit primário de 0,7% do PIB no ano que vem, e o governo acaba de entregar o Orçamento com 0,5% de déficit, podendo ser mais. O dólar subiu 13,9% desde o último Copom. Os cenários com que o BC trabalhava, segundo a última Ata, era de dólar a R$ 3,25 no final deste ano e de R$ 3,40 no final de 2016. Tudo está um pouco pior nos fatores que influenciam a inflação.

O economista Luiz Roberto Cunha, da PUC- Rio, acha que o câmbio pode alterar as projeções de inflação deste ano, que estão em torno de 9,5%. Em agosto, o IPCA deve ficar baixo, em 0,25%, no mesmo nível do ano passado, o que manteria a taxa em 9,56%. Em setembro, o índice pode ficar um pouco menor do que o número de 2014, em torno de 0,50%, o que reduziria o acumulado em 12 meses para 9,48%. O problema é que o índice volta a subir em novembro e dezembro:

— Com o aumento do botijão de gás em 15%, que não era esperado em época de queda do preço do petróleo, e mais o câmbio subindo forte, eu diria que a projeção para a inflação do ano é de 9,5% com viés de alta.

Por outro lado, a atividade também caiu mais do que se esperava e ontem isso ficou claro na produção industrial de julho. As previsões oscilavam em torno de 0,2% e foi 1,5% de queda. Até o setor de alimentos está sentindo a recessão, com uma queda de 6,2% em julho e 0,5% no ano.

— O setor de alimentos foi o último a sentir a crise, mas ela chegou. O consumidor está mais seletivo. Em 2014, criamos 14 mil empregos, já perdemos isso até julho, mas espero recuperar e fechar estável com a produção para o Natal — disse o diretor do Departamento Econômico da Abia, Denis Ribeiro, associação que representa a indústria de alimentos.

A queda da indústria como um todo em julho reforça o temor de um PIB negativo no terceiro trimestre, prolongando a recessão. O tombo em relação ao mesmo mês do ano passado foi de 8,9%, na 17 ª queda consecutiva. A produção está 14,1% menor do que em junho de 2013. Há, nos dados divulgados ontem, um ou outro número positivo, mas é alta em setor que já caiu demais.

Com o encolhimento generalizado, a queda dos investimentos — que fica claro no recuo de 20% nos bens de capital —e a diminuição de consumo, que não poupa nem a indústria de alimentos, o BC tinha bons argumentos para manter as taxas de juros em 14,25%. Até porque o aperto monetário não se dá apenas quando se elevam as taxas, mas quando elas são mantidas em um nível alto pelo tempo necessário.

O BC agora terá que ter um trabalho maior na redação da Ata e na preparação dos discursos do presidente. Não basta mais o corte- cola. Um dos pontos enfatizados em discurso de Alexandre Tombini em 14 de agosto foi que a recuperação dos resultados fiscais estava ocorrendo em velocidade inferior à prevista, porém “a trajetória de geração de superavits primários que fortaleça a percepção de sustentabilidade do balanço do setor público é fundamental para o ambiente macroeconômico e, portanto, para o crescimento sustentável”.

Agora, o presidente do BC não poderá dizer isso, porque a percepção é que o governo não está conseguindo gerar superávit primário algum. Teve déficit em 2014, caminha para outro em 2015, e o Orçamento já informa que em 2016 acontecerá novamente. Três anos de vermelho não é “trajetória de superávits primários”.

O desentendimento da equipe econômica agrega outro fator de instabilidade numa conjuntura que já tem muita turbulência. Isso não se resolve com política monetária. Há mais a mudar que não sejam os juros.

Clóvis Rossi - Demitiram a Dilma

• Proposta de Abilio Diniz de reunir Lula/FHC/Temer exclui a presidente, que vai se tornando invisível

- Folha de S. Paulo

Leia, por favor, a frase abaixo e diga qual é o sujeito oculto:

"Tem que juntar o Temer, o Fernando Henrique, o Lula, trancar dentro de uma sala e jogar a chave fora, para encontrar a solução."

Sim, você adivinhou (convenhamos que era fácil): o sujeito oculto é Dilma Vana Rousseff, que vem a ser a presidente da República mas que foi "demitida" de uma sonhada reunião de caciques para encontrar solução para a crise.

Se o autor da frase fosse um doidivanas qualquer, desses que infestam as redes sociais, eu nem prestaria atenção.

Mas foi pronunciada por uma das figuras mais sensatas, sóbrias e ativas do mundo empresarial, Abilio Diniz, que foi dono do Pão de Açúcar quando Pão de Açúcar era sinônimo de supermercado no Brasil (é ainda hoje, mas o dono, agora, é o Casino, marca francesa não utilizada na rede, exatamente porque Pão de Açúcar tem muito mais apelo).

Abilio raramente ocupou cargos de comando em entidades de classe, mas transita no mundo político com grande facilidade (e muita audiência).

Ao "demitir" Dilma Rousseff, o empresário está apenas ecoando o que se ouve frequentemente entre seus pares.

Boa parte dos homens de negócio do Brasil já não conta com a presidente para desatar o nó que ela própria criou.

Em outros tempos, mais sombrios, essa gente correria para os quartéis e pediria uma intervenção militar. Agora, ao contrário, pedem que se reúnam líderes políticos de signos opostos para encaminhar uma solução.

Avançamos, pois, muitos passos na direção da civilização.

O descarte da presidente é consequência, direta ou indireta, de suas próprias renúncias.

Primeiro, renunciou à condução da política econômica, entregando-a a um "Chicago boy", como tal contrário às suas convicções.

Depois renunciou à coordenação política, passando-a a Michel Temer, que, por sinal, também renunciou a ela, deixando um vazio.

Aliás, antes de Abilio Diniz, o próprio Temer havia igualmente"demitido" Dilma, com aquela frase sobre a necessidade de encontrar alguém para "reunificar" o país.

Em bom português, Temer tratou Dilma como "ninguém".

Deve ser triste para a presidente verificar que seu vice não a considera capaz de reunificar o país, ou seja, de ser a presidente de todos os brasileiros, como prometem, um após o outro, os que chegam ao Palácio do Planalto.

Como é insólito ver um empresário de antenas ligadas excluir a presidente da discussão de uma saída para a crise.

Uma reunião Lula/FHC tal como proposta por Diniz faria todo o sentido. Poderia produzir a luz no fim do túnel e seria, pois, a solução, mas não dá rima, considerados os egos e interesses da dupla.

De todo modo, a proposta de Diniz deixa a nítida sensação de que Dilma tornou-se invisível aos olhos de uma parte do establishment político e empresarial. Pior: mais que invisível, tornou-se inconveniente para um número recorde de eleitores, conforme aponta a mais recente pesquisa do Datafolha.

Bem que o Financial Times escreveu outro dia que o Brasil é "um filme de terror".

Vinicius Torres Freire - Juros fervem no óleo de Levy

• 'Obra aberta' do Orçamento e boataria sobre ministro levam juros ainda para cima, apesar do BC

- Folha de S. Paulo

Joaquim Levy "não está desgastado", "não está isolado", faz parte de uma "família que tem várias opiniões", que não "está desunida", disse ontem Dilma Rousseff no início da tarde de um dia de taxas de juros e câmbio subindo em espiral de fumo para os céus. Não adianta, sob certo aspecto, que o Banco Central tenha deixado a taxa "básica" da economia em 14,25%. Na praça, o sangue continua correndo.

Pior essa emenda da presidente do que a epopeia pelo avesso que vive o ministro da Fazenda. Pelo menos para os donos do dinheiro grosso e seus operadores, para quem a declaração presidencial apenas confirmou que o plano de Levy é apenas um dentre tantos de que eles, "mercado", não gostam.

A presidente acabou por dizer que o ministro está "prestigiado", lembrando a velha e caricata história do presidente de clube de futebol com time em crise, na zona de rebaixamento, a dizer que o técnico não vai cair. Foram umas gotas adicionais de vinagre em um dia azedo pelos boatos de que o ministro conversara com a presidente e com Michel Temer sobre seu "futuro incerto" no governo.

Dada a boataria dispersa, é uma temeridade ainda maior dizer se e o que a presidente conversou ontem com Levy. Quanto à conversa com o vice-presidente, gente do PMDB vazava sem dó para o "mercado" e para jornalistas que o ministro da Fazenda dissera estar em dúvida sobre o que fazer de seu "futuro incerto" no governo e muito preocupado com o futuro da eco- nomia, com o presente "descontrole". Um peemedebista dizia alegremente que o ministro está "frito e desenganado". Parcela importante do PMDB tem uma birra incompreensível com Levy.

O dia nem precisava de mais notícias confusas, telefones sem fio e azedume. Começara com o ministro da Fazenda dado como destituído em vida em vários jornais, embora o problema de fundo nem de longe seja esse, mas o fato de um gover- no que já tem não apoio popular e parlamentar agora não contar também com um Orçamento. Ou que talvez tenha um Orçamento em prestações, parcelado, como insinuou ontem a presidente quando adiantou a ideia exótica de que seu governo mandará ao Congresso um adendo ao projeto de lei orçamentária. Trata-se de uma obra em progresso, menos inteligível que o Finnegans Wake, de James Joyce, que popularizou o termo.

Em paniquito pela falta de sentido dessa obra aberta, o "mercado" reagiu à altura, levando as taxas de juros da praça e o dólar para as alturas. A taxa de juro real de curto prazo, um ano, foi a 8,72% (14,87% nominais), para onde não viajava desde novembro de 2008. Os juros longos, taxas que os donos do dinheiro cobram para ficar com papéis do governo que vencem em dez anos ou mais, por aí, foram a 7,5% (por exemplo, papel de 2024), em disparada quase contínua desde a trégua de meados de julho. Para constar, a taxa real de juros estava em 7,7% na data da reunião anterior do BC para decidir juros, quando elevou a Selic para 14,25%, em 29 de julho.

Na praça do mercado, as condições de negociar dinheiro estão mais duras. O aperto monetário, na prática, continua. Mesmo sem histerias e especulações desvairadas, o aperto deve continuar até o início de 2016.

Sem rumo e sem liderança – Editorial / O Estado de S. Paulo

Mais um fiasco foi adicionado à coleção de tropeços políticos e econômicos da presidente Dilma Rousseff, com a recusa dos presidentes da Câmara e do Senado de consertar a pífia proposta de lei orçamentária apresentada pelo Executivo. “Não é papel do Congresso zerar déficit nem resolver questão de custos”, disse o senador Renan Calheiros.

“Sou favorável a que se aprove o Orçamento como o governo mandou”, manifestou-se o deputado Eduardo Cunha. Ao recusar o auxílio pedido pelos ministros do Planejamento e da Fazenda e pela presidente, os dois parlamentares evidenciaram, mais uma vez, o principal fator de risco para um país já afundado em recessão. Muito piores que o buraco de R$ 30,5 bilhões previsto no projeto orçamentário são os déficits de competência, de seriedade e de liderança de um governo sem rumo, sem credibilidade e sem apoio até do próprio partido. Como se fosse preciso deixar esse fato ainda mais claro, no mesmo dia o plenário da Câmara aprovou o texto-base do projeto de ampliação do programa Super Simples, contra a opinião da Receita Federal.

O governo só conseguiu, nesse caso, uma alteração do texto original para transferir de 2016 para 2017 a vigência dos novos benefícios, com custo de R$ 11,43 bilhões pela estimativa da Receita. Mas a votação realçou de novo a fraqueza do Executivo. A aprovação foi garantida por 417 votos contra apenas 2. Foi uma vitória do ministro da Micro e da Pequena Empresa, Guilherme Afif Domingos, e mais uma derrota do Ministro da Fazenda, Joaquim Levy. O projeto poderá cair no Senado, mas essa aposta é arriscada.

O governo poderá mandar um adendo e será possível mexer nos números da proposta de lei orçamentária, mas será preciso mais que isso para resolver o problema. A presidente Dilma Rousseff já assinou decretos e medidas provisórias para elevar alguns tributos. A taxação adicional de bebidas e de bens de informática poderá proporcionar R$ 11,3 bilhões, segundo se estima em Brasília, mas nem assim o buraco previsto para o próximo ano será fechado. Além do mais, já há quem considere subestimado o déficit de R$ 30,5 bilhões. Se a aritmética do projeto estiver correta, ainda sobrará a incerteza quanto ao dinheiro a ser obtido com a venda de terrenos e as concessões de infraestrutura.

Mas a proposta orçamentária, mesmo com os defeitos já apontados, é muito mais articulada e funcional que o próprio governo. A vitória do ministro Guilherme Afif Domingos sobre a Receita Federal e, portanto, sobre o Ministério da Fazenda é só uma ilustração um tanto cômica da baderna administrativa e da qualidade da liderança no interior do Executivo. O ministro Joaquim Levy, ainda apresentado ao mundo como o fiador da política de ajuste, continua acumulando derrotas e humilhações e é difícil de dizer com alguma segurança, nesta altura, por que ele permanece no posto e a quem ele insiste em demonstrar lealdade.

Embora sua fraqueza seja evidente, de alguma forma sua permanência parece ainda ser considerada um sinal positivo pelo pessoal do mercado. Sua substituição – este é o risco – poderá consagrar oficialmente o abandono de qualquer compromisso, mesmo fingido, com a seriedade na condução da política econômica.

Mesmo com a permanência de Levy, tudo aponta, no entanto, para um agravamento dos problemas no próximo ano. Inseguro, o setor privado continua e continuará sem investir. Se as contas públicas continuarem esburacadas, ou se o buraco aumentar, o Banco Central dificilmente poderá cortar os juros no próximo ano, e isso retardará o início da reativação econômica.

O ajuste das contas públicas está longe de ser apenas uma questão fiscal. Ele faz enorme diferença para o combate à inflação, para a política de juros e, portanto, para a expansão do crédito, e é um passaporte para a retomada do crescimento. Para os financiadores e investidores, é um selo de qualidade da política brasileira. Seria ingenuidade tentar enganá-los com um selo falso.

Propostas inconsistentes para cobrir o déficit – Editorial / O Globo

• Será grave erro não se fazer as reformas para o controle de fato do Orçamento; uma delas, acabar com a função do salário mínimo de indexador de gastos sociais

Com o inédito envio ao Congresso de uma proposta de Orçamento com déficit, o governo exercita a transparência e instala amplo debate sobre como tapar o buraco bilionário. Nada mal, embora deva o Executivo assumir a responsabilidade de formular uma proposta para a deliberação final do Congresso, a ser enviada à sanção presidencial.

O debate põe tudo em escrutínio. A começar pelo próprio tamanho do déficit, calculado em R$ 30,5 bilhões pelo Planalto, mas já contestado. O relator do Orçamento, Ricardo Barros (PP-PR), por exemplo, diz faltarem na cifra pelo menos R$ 1,5 bilhão em emendas parlamentares e R$ 1,9 bilhão do FEX, um fundo do Tesouro que ressarce estados de incentivos dados às exportações.

As maiores desavenças, no entanto, ocorrem no campo das providências para se tapar o rombo. Do lado do PT, surgem ideias mirabolantes e suicidas: emitir títulos da dívida, algo que, se vier a ser feito, acelerará a trajetória já preocupante de aumento do peso da dívida bruta no PIB, e decretará o rebaixamento da nota de risco do Brasil em questão de horas; ou a redução, à base da canetada, dos juros, a fim de economizar nas despesas públicas, porém sinalizando para mais inflação.

Como todo governo petista, o Dilma 2 busca cortar menos e arrecadar mais, por meio de impostos — ressuscitados, como pretende fazer com a CPMF, ou recalibrados, caso de gravames que incidem sobre produtos eletrônicos e bebidas, por exemplo. Em entrevista coletiva, Dilma admitiu, ontem, que a CPMF tem “complicações”, mas deixou claro que pode tentar mais uma vez enviar ao Congresso a proposta da volta do “imposto do cheque”. Mesmo que seja iníquo do ponto de vista social — ao atingir proporcionalmente mais as pessoas de renda baixa —, e desastroso do ponto de vista do aumento do custo das empresas e, por consequência, redução da competitividade do país no comércio internacional.

Será seriíssimo equívoco Dilma continuar se esquivando da necessidade de fazer reformas de fundo, para tornar o Orçamento administrável. A reforma da Previdência, por exemplo, mesmo com resultados a médio e longo prazos, já sinalizaria que o país começou a recuperar a capacidade de solvência. E com isso haveria reflexos imediatos na redução do custo da rolagem (juros).

Outra mudança urgente, esta mais simples, é retirar do salário mínimo a função de indexador de parte ponderável da despesa pública: benefícios da Previdência, como aposentadorias e pensões, e os pagamentos feitos dentro da Loas (Lei Orgânica da Assistência Social), para idosos de baixa renda, por exemplo. Só em benefícios previdenciários, são previstos para o ano que vem R$ 491 bilhões, o equivalente a 40% de todo o gasto público. Com o reajuste de 10% do mínimo, já previsto, não haverá corte e mesmo imposto que cobrirão o déficit. A crise se agravará em 2016.

Toda crise grave é uma Esfinge da mitologia: precisa ser decifrada; se não, devora o governante.

Ferreira Gullar lança biografia que trava diálogo emocional

Entrevista. Ferreira Gullar

Por Ubiratan Brasil – O Estado de S. Paulo/ Caderno2, 02 de setembro de 2015.

A poesia persegue Ferreira Gullar e não o contrário. “Posso passar anos sem criar um verso, pois necessito do espanto que ela me provoca para então escrever”, conta o poeta, que completa 85 anos no dia 10. A criação literária é apenas um dos temas tratados em Autobiografia Poética e Outros Ensaios (Autêntica), que Gullar lança nesta quarta-feira, 2, à noite, na Livraria Travessa do Shopping Leblon, no Rio.

O livro reúne entrevistas, artigos e um ensaio inédito. Nele, descobre-se que Gullar também é cronista, crítico, pintor, mas são meros ofícios para garantir a sobrevivência – é na criação de poemas que Gullar se sente realmente um homem livre. Basta observar sua obra mais conhecida e divulgada, Poema Sujo. Considerada por muitos como uma das principais realizações poéticas do século passado, foi escrita em 1975, quando o poeta ainda vivia forçosamente exilado em Buenos Aires. Uma rápida leitura e a constatação de que o poema é um doloroso canto em favor da liberdade.

Um dos mais importantes poetas da literatura brasileira, Gullar ganhará ainda uma nova edição de O Formigueiro, obra de 1955, e, no próximo ano, uma coletânea de textos sobre artes plásticas. Sobre a vida e o ofício, Gullar conversou por telefone com o Estado, desde o Rio de Janeiro.

Como foi refletir sobre a sua história de poeta?
Jamais imaginei que me tornaria um poeta. Eu era um moleque de rua. Vivia jogando pelada, em São Luís, na rua. Jamais pensei porque na minha casa ninguém era poeta nem tinha livro de poesia. Acredito que as pessoas nascem com determinadas qualidades. O cara nasce com a tendência de ser um bom administrador. Assim como outro nasce jogador de futebol, pois traz internamente algumas qualidades que o tornam isso. Há também quem tenha tendência para ser ladrão, independentemente de ser rico ou pobre – a Operação Lava Jato não me deixa mentir.

Esse DNA parece estar mais presente em você. Se pudesse viver só de poesia, faria isso?
Não. A poesia é algo incontrolável. Se alguém vive de poesia, ou morre de fome ou começa a escrever bobagens porque não é fácil assim. A poesia, como vejo, nasce do espanto, de alguma coisa que surpreende e que você tem necessidade de comunicar aos outros. É uma experiência de vida especial, não acontece todo dia. Isso é o que move o poeta a escrever. Sem isso, é possível até manusear bem as palavras, mas o poema fica vazio. É meu caso. Outro dia, disseram que eu garanti que não mais escreveria poesia. Nunca fiz isso. Algumas vezes, a poesia se arrancou, se negou a comparecer e fiquei perplexo, mas reconheci que parecia que não mais escreveria. Publiquei meu último livro há vários anos (Em Alguma Parte Alguma, de 2010), o que me deu a impressão de que não vou escrever mais. Claro que não é bom. Não é escolha minha. Mas as coisas não são eternas e, como isso não se controla, não digo que farei de qualquer jeito, ou que não vou fazer. Só constato que faz tempo que não faço.

É admirável seu rigor com a palavra. Como conjuga a emoção de fazer o poema e ele comover ao mesmo tempo?
Acredito que, se me comovo, outros também vão se comover. Passo no poema a emoção que tive. Às vezes, a situação é mais complicada e o poema saía menos acessível, dependendo do motivo que me levou a escrever. Minha preocupação é chegar a dizer aquilo que foi novo na vida, que experimentei ali, e encontrar a melhor maneira de expressar. O acaso é decisivo não só na vida pessoal, mas também na arte. Quando vou escrever um poema, a folha surge em branco, ainda não sei o que vai surgir ali. Qualquer coisa pode acontecer, a probabilidade é total porque a página está em branco. Quando coloco a primeira palavra, reduz a probabilidade, agora já não é o acaso. Quando se escreve o primeiro, o segundo verso, aí o poema vai deixando de ser fruto da probabilidade e do acaso e vai se tornando necessário. Ele próprio começa a determinar o que entra ali ou não. Você não sabe o que vai resultar daquilo. É um jogo entre acaso e necessidade. Cada poeta tem seu modo de se expressar. Com isso, aumenta a segurança de se expressar. E, com a experiência, é possível se tornar mais capaz de expressar o que se deseja.

Seu momento de vida é sempre importante na sua criação. Poema Sujo nasceu durante uma fase muito difícil de sua vida, de quase desespero – seria uma catarse?
Há quem acredite que os poetas sofrem muito para escrever. Não é verdade – no momento da escrita, surge uma felicidade. Escrever é uma alquimia, pois transformo sofrimento em alegria, em beleza, em emoção que o outro vai sentir. No Poema Sujo, eu realmente vivia um impasse, pois não sabia o que ia acontecer comigo. Eu já tinha saído da ditadura chilena e, na Argentina, preparavam outro golpe. Não tinha para onde ir porque em volta só havia ditaduras e, como meu passaporte estava vencido, não conseguia ir para a Europa. Tentei renovar na embaixada brasileira, mas me foi negado e ainda cancelaram o que eu tinha. Então, escrevi o Poema Sujo como se fosse a última coisa da minha vida, daí essa relação de emoções: eu estava no limite. Isso ninguém inventa. Eu preferia não ter vivido daquela forma, mas a vida é incontrolável. A situação era insuportável, mas o fato de eu ser capaz de expressar aquele impasse me ajudava. O pior é aquele que não consegue se expressar.

Como é sua relação hoje com Poema Sujo?
Não releio, mas essa Autobiografia Poética foi o caminho que encontrei para voltar àqueles momentos, desde quando publiquei A Luta Corporal, em 1954, quando descobri a poesia moderna, até Poema Sujo e outros poemas. Eu queria reviver aqueles momentos sem o sofrimento daquela época, sem um general na esquina para me fuzilar.

O Poema Sujo ainda é capaz de chocar as pessoas?
Acho que emociona. Claudia (Ahimsa, sua companheira, que conheceu em 1994) soube que foi criada uma banda de rock chamada Poema Sujo. Isso é legal, pois expressa a vida e beleza dentro do sofrimento. Cada qual tem suas perdas. Então, quando a pessoa se defronta com um poema que a comove é como se ela estivesse vivendo isso. É o melhor da literatura: compartilhar com o autor o sofrimento, mas de forma sensorial. É a tal alquimia: transformar sofrimento em alegria estética.

Como surgiu o título do Poema Sujo? Até parece uma contradição...
Nasceu de imediato, praticamente junto com o poema. Às vezes, escrevo um poema e não sei o título. No caso do Poema Sujo, eu não só tinha o título como sabia que teria de 70 a 100 páginas. Escolhi esse título porque sabia que ia falar de assuntos sofridos, de pobreza, que foi minha experiência de vida. Ele é sujo ao mesmo tempo que é poesia e tenta superar o sujo da vida, trazendo impregnada essa experiência. Eu não aceitava estar longe do Brasil, havia pessoas dispostas a passar anos na Europa, mas não era o meu caso – eu queria voltar a todo custo. Assim que pude, voltei, mesmo correndo riscos. Aí entra o Poema Sujo, que foi trazido ao Brasil pelo Vinicius de Moraes. A publicação me deu uma notoriedade que, praticamente, impedia qualquer ação dos militares contra mim. Quando cheguei ao aeroporto do Rio, havia uma ordem de prisão para José de Ribamar Ferreira, mas havia uma multidão me esperando e não puderam fazer nada. Ou melhor: me prenderam no dia seguinte, mas logo fui solto.

Como a poesia ocupa hoje a vida das pessoas?
Dizem que a arte revela a vida. Penso o contrário: a arte inventa a vida. Hamlet só existe na peça de Shakespeare. E existe porque, quando leio, ele renasce, alguma coisa é acrescentada. A Noite Estrelada, de Van Gogh, é uma noite a mais que ele acrescentou às milhares de noites que existem no universo. A poesia não é cotidiana, com assistir à televisão. Rubem Fonseca me disse, certa vez, que lemos um romance e esquecemos, enquanto a poesia sempre volta. Ninguém precisa ficar lendo a poesia todo dia. Mas, quando releio Elliot, Rilke, Drummond, me parece que estou lendo pela primeira vez, com prazer da descoberta.

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AUTOBIOGRAFIA POÉTICA E OUTROS TEXTOS. Autor: Ferreira Gullar Editora: Autêntica (160 págs., R$ 44,90)