Folha de S. Paulo
Os julgamentos de presidentes por golpes ou
corrupção representam avanços, mas o saldo institucional líquido para o STF
terá sido negativo
O caráter histórico do julgamento da
conspiração tem sido reiterado por analistas de diversas matizes. Douglass
North (Nobel de Economia) e coautores enfatizam o controle civil sobre os
militares como uma das pré-condições para a transição a uma "ordem social
de acesso aberto" (que combina democracia e
prosperidade) ao lado do império da lei e de organizações impessoais.
Julgamentos e condenações de presidentes por golpes ou corrupção têm se tornado muito mais frequentes em todo mundo inclusive na Europa. Da Ros e Gehrke, com dados para 1946-2022, mostram que há, a partir dos anos 1990, mudança qualitativa e quantitativa: a proporção de líderes condenados sobe de cerca de 2% para 9%. As condenações criminais tornam-se mais comuns e a punição violenta e arbitrária menos frequente. Considerando todos os chefes de governo que deixam o cargo, a probabilidade de um líder ser morto, encarcerado ou ir para o exílio no primeiro ano pós-mandato cai de mais de 30% (1960–1980) para apenas 12% (2000–2015).
O eixo da responsabilização deslocou-se com o
tempo de golpes para a corrupção —subornos, enriquecimento ilícito, manipulação
de recursos estatais. O golpe que está sendo julgado é prima facie uma reversão
desse movimento; mas ele foi abortado endogenamente, o que sugere resiliência
do próprio estamento militar. É algo novo. E como já argumentei aqui não se
trata apenas de decisões individuais de generais. Há uma dimensão
institucional.
A aplicação do império da lei e a punição a
setores da elite política e empresarial no mensalão foi também histórica; foi
aplicada por tribunal com maioria nomeada pelo incumbente e alcançou a cúpula
do partido no poder e a presidente de um banco —o 0,01% da distribuição de
renda— , condenada e mantida por três anos em regime fechado. O padrão
histórico — no Brasil e fora — era punir, quando muito, políticos após deixarem
o cargo, e por obra de uma elite rival.
O país da impunidade garantida por formalismo
e seletividade penal —dos três Ps: "no Brasil, só vai para a cadeia preto,
pobre e puta"— parecia romper com o passado. Simbolicamente, o processo do
mensalão invertia esse padrão. Por pouco tempo. A sina do julgamento do golpe
pode ser similar, podendo levar a retrocessos e nulidades anômalas —como na
Lava Jato, que
discuti aqui.
Antes do processo, afirmei aqui na
coluna que, sob qualquer cenário, o saldo do julgamento seria
negativo para o STF por
hiperpartidarismo, confusão entre julgador e vítima (o primeiro também foi alvo
de ataque instigado pelo próprio presidente), questão do foro, padrão
personalista de nomeação dos ministros, julgamento em turma, monocratismo...
A alternativa à Moraes como relator incluiria
cenários ainda piores: ex-advogado pessoal do presidente e/ou políticos que são
adversários notórios dos réus. Quando apontei esses aspectos, a bizarra
interferência de Trump ainda não havia ocorrido, o que exacerbou o nível de
conflito em torno do julgamento em algumas ordens de magnitude. Aliás, a
recepção do julgamento por analistas nos EUA faz tabula rasa dos aspectos
apontados porque enfoca apenas a (necessária) resistência à Trump.
O resultado é avanço pírrico com potencial de retrocesso futuro.
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