quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Maria Cristina Fernandes - O Supremo impedido

• Quem rouba a cena, não deve cultivar privilégios adquiridos

- Valor Econômico

Dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, quatro já se declararam suspeitos no julgamento da ação dos bancos para suspender decisões em favor das perdas inflacionárias da caderneta de poupança provocadas por sucessivos planos econômicos dos governos Sarney/Collor. Dois deles (Luiz Edson Fachin e Luís Roberto Barroso) advogaram em nome de poupadores, um (Luiz Fux) tem a filha contratada em escritório envolvido na causa e a quarta (Cármen Lúcia) não explicitou a razão de seu impedimento.

Associação de poupadores alega que José Antônio Dias Toffoli defendeu bancos (públicos) como advogado-geral da União e Gilmar Mendes incorre na mesma suspeição de Fux. Se a alegação for aceita, mais da metade dos ministros estará impedida de julgar o expurgo inflacionário que, nas contas mais modestas, margeia o rombo orçamentário de 2016 e nas mais extremadas, o quintuplicam.

O lobby de bancos públicos e privados já levou 13 ex-ministros da Fazenda a assinar manifesto em defesa da ação que tramita no Supremo desde 2009. O impedimento dos ministros deixa a Corte entre duas alternativas ruins: esperar a aposentadoria dos impedidos, o que não deve se iniciar antes de 2023, ou apelar a juízes substitutos egressos do STJ.

O Judiciário é o senhor das causas que afiançam na incerteza os acordos políticos da conjuntura. A suspeição generalizada que paira sobre a Corte no julgamento dos planos é a invasão do Judiciário pelo tempo da política.

Foi a partir da Constituição de 1988 que o Judiciário passou a assumir um papel mais ativo no concerto dos poderes. Em grande parte, esse ativismo se dá pela omissão dos demais poderes, mas não no caso do expurgo inflacionário em questão.

Àquela época, o Brasil se debatia com o conflito distributivo radicalizado pela Constituinte de 1988. Foram as dificuldades de arbitrá-lo que, em grande parte, levaram à hiperinflação. O pacto buscado na ocasião, que ficaria conhecido como o 'contrato social', é hoje o norte do debate em torno do Orçamento deficitário apresentado ao Congresso.

A bilheteria continua nas mãos do mesmo 'Centrão', com duas diferenças: o espetáculo tem mais pagantes e a gerência incumbida de acomodá-los em arquibancadas puídas está sob a mira de um Judiciário que rouba a cena. Os mesmos juízes impedidos de julgar uma ação que apavora tanto o Tesouro quanto a Febraban, revolucionam a cena política brasileira. São dois atos, não necessariamente, de uma tragédia.

Em debate recente no Instituto Fernando Henrique Cardoso, o ministro Luís Roberto Barroso, advogou em defesa do papel do Supremo que, ao se confrontar com Poderes majoritários como o Executivo e o Legislativo, abre atalhos civilizatórios. Usou a denominação, para a decisão em favor da união homoafetiva e da interrupção da gravidez de fetos anencefálicos à guisa de tergiversar temas que ainda estarão sob seu juízo, como a Lava-Jato.

Nessa função mais claramente política, contestou-o o professor da FGV, Oscar Vilhena, o Judiciário, ao contrário dos Poderes majoritários, não é periodicamente renovado pelo eleitor e segue sem vigilância constitucional para seus erros. É a reação legislativa que os corrigirá, respondeu Barroso.

Não é o caso do julgamento dos planos econômicos, em que não cabe deliberação parlamentar. O Judiciário parece contaminado pela paralisia decisória que, esta semana, foi coroada pela omissão do Executivo na elaboração do Orçamento. No jogo de pressões que enredam o país na armadilha fiscal, o Judiciário tem-se imbuído de uma missão mais corporativista que civilizatória.

A proposta orçamentária abrigou um aumento ao Judiciário superior ao dos demais Poderes para aplacar a reação de servidores ao veto, ainda por ser apreciado, a um reajuste de até 78%.

A tramitação do Orçamento é o aperitivo da batalha que está por vir neste governo ou naquele que vier a sucedê-lo. Seja pela reabertura do 'contrato social' ou pela reforma do Estado, sob o comando de Joaquim Levy, Nelson Barbosa ou José Serra, as variantes de coalizão política decorrentes desta crise não terão como tergiversar direitos adquiridos. Por desprotegidos, os beneficiários de programas sociais são o primeiro alvo. Serão tão mais atingidos quanto maiores forem as salvaguardas das corporações.

No Rio, maior Estado governado pelo PMDB, juízes, desembargadores e servidores do Tribunal de Justiça passaram a ter direito desde segunda-feira, por deliberação da Assembleia Legislativa, a incorporar a seus proventos, um auxílio-educação 12 vezes superior ao Bolsa Família por cada filho matriculado em escola pública ou privada.

A extensão deste e de uma ampla lista de benefícios ao conjunto da magistratura nacional depende da aprovação de uma lei orgânica. A cereja do bolo é a incorporação, pela elite do funcionalismo público, da proposta de reajuste automático indexado ao PIB, salvaguarda dos brasileiros que recebem salário-mínimo.

Ministros do Supremo como Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia já se manifestaram contrariamente à proposta, mas sua gestação em meio a um ano de penúria fiscal demonstra o quão resistente será a corporação a abrir mão de benefícios já adquiridos, como férias de 60 dias e gratificações de toda ordem que levam os vencimentos de um juiz de primeira instância a ultrapassar facilmente o salário de ministro do Supremo, teto do funcionalismo público.

Nas últimas décadas as corporações abrigaram-se sob o discurso de que seus benefícios cabem no milésimo da taxa Selic. Deram-lhe guarida governos de PT e PSDB, além do PMDB, sempre o mais poroso aos lobbies corporativos.

O país já passou por crises fiscais sem tocar no que Oscar Vilhena chama de privilégios adquiridos. O artigo 60 da Constituição veda emendas para suprimir direitos e garantias individuais. Interpretação generosamente garantista, salvo em momentos de conjunção astral, perpetua uma das mais viçosas jabuticabas nacionais - um mercado que abriga desde trabalhadores à margem da CLT até servidores que viajam com despesas pagas e diárias de três salários mínimos bancadas pelo erário.

Se não chega a fazer cócegas no ajuste fiscal, colocaria o Estado em sintonia com a maior faxina já promovida nos seus contratos. E, quem sabe, sobraria algum para honrar os direitos dos poupadores.

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