terça-feira, 24 de junho de 2025

Por que o Brics não pode brincar com o poderoso dólar - Pedro Cafardo

Valor Econômico

Com Trump ou qualquer outro presidente, porém, os EUA não abrirão mão tão facilmente de suas poderosas e confortáveis regalias globais

Em meio a guerras estúpidas e ao massacre humano dos últimos meses, pouco espaço tem sobrado para o debate sobre a poderosa arma representada pelo dólar na atual geopolítica mundial. Antes mesmo de tomar posse, em novembro do ano passado, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fez uma ameaça aos países-membros do Brics: se o bloco insistir em criar uma moeda própria para negócios internacionais, os produtos dos países integrantes serão taxados em até 100% ao entrar no mercado americano.

Após a posse, no fim de janeiro, Trump renovou a ameaça da taxação e disse que iria exigir um compromisso desses países, liderados por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, de não criar nem apoiar a criação de uma unidade monetária para substituir o dólar americano. “Eles podem procurar outra nação ingênua. Não há chance de o Brics substituir o dólar dos EUA no comércio internacional, ou em qualquer outro lugar, e qualquer país que tente isso deve dar as boas-vindas às tarifas e dar adeus à América”, escreveu Trump em seu perfil na Truth Social.

O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, correu para explicar a posição do bloco. Disse que o Brics não quer criar uma moeda comum, mas sim “novas plataformas” que permitiriam investimentos conjuntos em terceiros países.

Sabe-se lá se Trump acreditou nisso, mas ele teria razões para desconfiar. Em agosto de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou, na África do Sul, com todas as letras, que o Brics tomou a decisão de começar a criar uma moeda para que “a gente faça negócios sem precisar usar o dólar”. Mais tarde, em outubro de 2024, durante cúpula do bloco na Rússia, Lula afirmou que “nenhum fórum no mundo decidiu que o dólar seria a moeda de referência para os negócios internacionais”.

É mais fácil acreditar em Lula do que no Kremlin, mas o tema é sensível, embora pouco explorado no atual debate monetário. A moeda de referência internacional - já foi a libra inglesa e hoje é o dólar americano - constitui uma arma poderosa na geopolítica mundial, define o professor Mauricio Metri, da UFRJ. Em curso na FESPSP sobre a “Geopolítica do Século XXI”, ele explicou: o dólar referência permite aos EUA, desde o fim Guerra Fria, absorverem parte significativa da riqueza financeira mundial.

As razões são claras. Dada a liberdade de fluxos internacionais, tornou-se necessário aos países acumular reservas bilionárias e até trilionárias para lidar com possíveis ataques especulativos. A China, por exemplo, tem US$ 3,2 trilhões. O Japão, US$ 1,2 trilhão. O Brasil, US$ 346 bilhões. No ano passado, 46% das reservas globais eram em dólares, 20%, em ouro, e 16%, em euro.

Predominam, assim, as compras pelos bancos centrais de ativos denominados em dólar, sobretudo dos títulos da dívida pública americana. Essa dívida, que era de US$ 894 bilhões em 1980, passou a US$ 29 trilhões em 2020 e hoje atinge US$ 35 trilhões, estando US$ 9 trilhões nas mãos de não americanos.

Curiosamente, esse endividamento monumental, que para os demais países seria um sinal de fraqueza, para os EUA se apresenta como força, porque a poderosa nação americana não sofre pressões para corrigir seus desequilíbrios macroeconômicos, o que lhe permite carregar déficits crônicos há 40 anos. O professor Metri, em seu livro “História e Diplomacia Monetária”, chama esse endividamento excessivo de “sistema de extorsão mundial”.

Os EUA têm, observa Metri, recursos ilimitados que não advêm da posição credora tradicional diante do resto do mundo, mas sobretudo de sua condição devedora, porque conseguiram transformar sua dívida pública em ativo financeiro com atributo de porto seguro em âmbito global. Com isso, mantêm seu poderio militar mundial, participando direta ou indiretamente de guerras, como financiador ou fornecedor de armamentos. Mantêm também cerca de 750 bases militares pelo mundo.

Está claro, portanto, que, mesmo levando em conta a atual fraqueza do dólar nos mercados internacionais, o Brics não pode brincar com essa história de substituí-lo em suas transações comerciais. Isso seria uma declaração de guerra financeira contra os EUA, porque as vantagens da moeda de referência global não são triviais. O professor Metri enumera algumas: desproporcional alavancagem da capacidade de endividamento e gasto do estado emissor; utilização como instrumento de política externa por meio de diferentes controles, principalmente sanções econômicas; projeção de bancos e empresas nacionais do país emissor.

Nos anos 1980, a crise parecia ameaçar a hegemonia americana no Ocidente. Mas os EUA se recuperaram, tomaram conta do mundo, acabaram com a União Soviética e enriqueceram ainda mais.

Agora, em plena desordem global, outra vez imagina-se que essa hegemonia esteja em jogo. Com Trump ou qualquer outro presidente, porém, os EUA não abrirão mão tão facilmente de suas poderosas e confortáveis regalias globais. É perigoso ameaçá-las em qualquer área, em especial nessa que venha a sabotar o padrão dólar. Nem a China ousa correr esse risco.

 

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