Correio Braziliense
De todos os personagens envolvidos nos
conflitos do Oriente Médio, o grande vitorioso é Netanyahu. Por ironia, pode
ser preso quando a guerra acabar
A ideia de guerra justa (bellum iustum) é um
conceito filosófico, ético e jurídico greco-romano e cristão. Estabelece
critérios morais para legitimar o uso da força militar. Seus princípios são a
defesa contra agressão, a proteção de inocentes e/ou a restauração de direitos
violados. Seu objetivo deve ser a paz e não a vingança, a conquista e/ou
interesse econômico. Segundo Santo Agostinho de Hipona (séc. V) e Tomás de
Aquino (séc. XIII), os três critérios básicos de uma guerra justa são a
autoridade legítima, a causa justa e a intenção reta.
A justiça na condução da guerra (jus in bello) exige separar combatentes e não combatentes; uso da força proporcional ao objetivo; tratamento digno para prisioneiros e feridos. A resistência aos nazistas na Segunda Guerra Mundial; a intervenção internacional no Kosovo (1999) para evitar um genocídio; e a resposta inicial dos Estados Unidos ao 11 de setembro, com ataque ao Talibã no Afeganistão (2001), são consideradas guerras justas.
Mas o conceito também foi usado para
legitimar guerras consideradas injustas, como a do Vietnã; a invasão do Iraque
(2003) sem prova de armas de destruição em massa; a invasão da Ucrânia pela
Rússia (2022), vista como agressão territorial. É que “a guerra é a continuação
da política por outros meios”, conforme a definição clássica do general
prussiano Carl Von Clausewitz (1790-1831), autor do mais famoso tratado Da
Guerra (Martins Fontes).
É aí que surgem as decisões políticas
desastrosas. Quando a Itália entrou na I Guerra Mundial, em 1915, ao lado da
“Entente” (aliança entre França, Inglaterra e Rússia), por exemplo, os
políticos italianos viram uma oportunidade de libertar Trento e Trieste do jugo
do Império Austro-Húngaro. Centenas de milhares de jovens foram lançados à
batalha. No primeiro confronto, os austro-húngaros mantiveram a defesa de
Izonso. Morreram 15 mil italianos. Na segunda batalha, foram 40 mil mortos. Na
terceira, 60 mil.
Os italianos lutaram “por Trento e por
Trieste” em mais oito batalhas, até que, em Caporreto, na 12ª, foram derrotados
fragorosamente e empurrados para Veneza. No livro Homo Deus (Companhia das
Letras), Yuval Noah Harari classificou o episódio como a síndrome “Nossos
rapazes não morreram em vão”, porque foram contabilizados 700 mil italianos
mortos e mais de 1 milhão de feridos ao final da guerra.
Depois de perder a primeira batalha, os
políticos italianos tinham duas opções. A primeira, admitir o erro e assinar um
tratado de paz. Prevaleceu a segunda, porque não tinha o ônus de ter que
explicar para os pais, as viúvas e os filhos dos 15 mil mortos de Izonso por
que eles morreram em vão. Era mais fácil exacerbar o nacionalismo e continuar a
guerra. Entretanto, o povo também apoiou o envio de tropas para o front. Mais
tarde, descontente, entregou o poder a Mussolini.
Marcha da insensatez
Harari destaca que decisões políticas e
sociais podem não ser guiadas pela racionalidade estratégica, mas por decisões
narcisistas e emoções coletivas, como o medo da vergonha da derrota, o luto
familiar e o orgulho nacional, luto público. A síndrome “Nossos rapazes não
morreram em vão” escala quando se investe vida humana, recursos e tempo de
forma equivocada e fica difícil recuar.
É o que está acontecendo na Rússia, na
Ucrânia, em Israel, na Palestina e no Irã. Sem juízos de valor se a guerra é
justa ou não, esse conceito é utilizado e violado, ao mesmo tempo, por todos os
lados. Israel tem todo direito de punir exemplarmente o Hamas, mas não de
promover um genocídio em Gaza. O Irã não tem o direito de financiar grupos
terroristas contra a Israel, mas nem por isso deveria ser atacado pelos EUA
como foi.
Vladimir Putin não deveria ocupar parte da
Ucrânia, a pretexto se defender da ameaça da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan), mas isso não justifica que os países da Europa gastem
5% do seu orçamento com armamentos, em vez de usarem o dinheiro para combater o
aquecimento global. Agora, a Alemanha tem condições de voltar a ser a maior
potência militar da Europa. A história mostra que isso não torna o mundo mais
seguro.
A Marcha da Insensatez: De Tróia ao Vietnã
(BestBolso), da historiadora Barbara W. Tuchman, coleciona exemplos de
governantes que prejudicaram a si próprios e ao seu país. Os troianos aceitaram
o cavalo de madeira dos gregos; a corrupção e arrogância dos papas, no
Renascimento, levaram à Reforma Protestante; ao não fazer concessões políticas
aos colonos, o governo britânico precipitou a Revolução Americana; e a
intervenção militar, mesmo com alertas internos e crescente insatisfação
social, levou os EUA, a maior potência militar do pós-guerra, à derrota no
Vietnã. Donald Trump assumiu o poder com a narrativa de acabar com as guerras,
porém, com o ataque de surpresa ao Irã, em meio a negociações, tornou os EUA
ainda menos confiáveis e o mundo, mais perigoso.
Entretanto, de todos os personagens envolvidos nos conflitos do Oriente Médio, o grande vitorioso é o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Por ironia, pode ser preso por corrupção e/ou condenado por genocídio quando a guerra acabar. Conseguiu arrastar Trump com seu narcisismo para a guerra com o Irã. Agora, atrai o secretário-geral da Otan, Mark Rutte, outro vaidoso, que desafia a China para uma corrida armamentista. O Irã é um elo estratégico da Rota Transcaspiana, que liga a China com a Europa, via Rússia, Cazaquistão, Azerbaijão, Mar Cáspio e Turquia. Ou seja, sem passar pelo Atlântico.
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