quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Excluído, Lula tenta fazer as pazes com esquerda

Soraya Aggege e Maiá Menezes
DEU EM O GLOBO

No Fórum Social, presidente vai dizer que saída para a crise global é um novo modelo de produção e consumo

BELÉM. O presidente Lula vai tentar fazer as pazes com os movimentos sociais, hoje em Belém, no Fórum Social Mundial (FSM). Vaiado no encontro de 2005, agora Lula será cobrado por antigas promessas e engolirá até um veto - de antigos aliados, como o MST - para sua participação em um dos eventos. Lula vai dizer ao FSM o que a esquerda quer ouvir: a saída para a crise global será a construção de um novo modelo de produção e de consumo, ambientalmente sustentável. Lula também dirá que, graças aos avanços da esquerda, a América Latina está mais bem preparada para enfrentar a crise. Lula pretende pedir a "unidade de ação das forças populares" para combater a crise, além de propor uma cooperação entre os países amazônicos para projetos de desenvolvimento sustentável, segundo O GLOBO apurou.

O presidente deverá afirmar ainda que a crise financeira global se soma a outras, como a alimentar, a ambiental e a energética. Lula vai prometer que seu governo combaterá a crise com produção e geração de empregos. E vai aproveitar o embalo para apresentar sua candidata à sucessão, a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil), aos movimentos sociais que ajudaram a elegê-lo em 2002, no mesmo FSM.

Para muitas das organizações do FSM, no entanto, Lula não é mais considerado um governo de ruptura com o neoliberalismo, como são os governos de Bolívia, Venezuela, Equador e Paraguai.

- Não viemos aqui para vaiar o Lula, como alguns pequenos grupos querem fazer na visita. Mas não consideramos seu governo afinado com o FSM e por isso o excluímos dos convidados. Tanto Lula quanto seu governo, os ministros presentes, não são nossos convidados - disse Ulisses Manaça, da direção nacional do MST e da Via Campesina.

Foram convidados para o debate da integração popular da América Latina com MST e Via Campesina os presidentes Hugo Chávez (Venezuela), Rafael Correa (Equador), Evo Morales (Bolívia) e Fernando Lugo (Paraguai). Os presidentes teriam tentado convencer as organizações a convidarem Lula, alegando que a situação seria embaraçosa, mas não houve acordo.

- Não consideramos ofensivo. O fato é que o MST quer discutir temas como a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas), que não dizem respeito ao nosso governo - reagiu o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Dulci.

Lula se reunirá separadamente com os quatro colegas latinos em um hotel, logo que eles retornarem do evento. Na pauta, a crise global e as saídas para a América Latina. Depois, os cinco presidentes ocuparão um dos mais badalados palcos do FSM: cinco organizações sociais farão perguntas aos cinco presidentes, provavelmente sobre dois temas: crise mundial e Amazônia. É nessas respostas que Lula deverá encaixar seu discurso.

Amanhã, ele tem um encontro fechado com conselheiros internacionais do FSM. Foi o próprio presidente quem convidou o Conselho, integrado por 165 membros, incluindo o PT.

Alguns dirigentes petistas afirmaram ontem que a importância do FSM para Lula é de preparação para a crise. A ordem no PT é garantir uma reaproximação com os movimentos, não só para dar sustentação popular a Dilma Rousseff em 2010, mas para evitar oposição nos momentos críticos da economia. O presidente estaria temeroso de uma onda de greves, invasões e rejeição ao governo. O espaço de recomposição do partido com os movimentos é exatamente o FSM. Depois, em março, o partido convocará uma reunião para viabilizar sua rearticulação com os principais movimentos sociais.

O papel da oposição

Gustavo Fruet
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Com poucas exceções, o que temos é uma oposição tímida, num Congresso Nacional cada vez mais submisso ao governo

UMA REGRA não escrita, mas consagrada, das democracias é que quem ganha eleições governa, quem perde é oposição -critica e fiscaliza.

Idealmente, ambos os lados partilham os valores democráticos, o que pressupõe atitude construtiva mesmo na oposição e até a possibilidade de compor com o governo quando estiverem em jogo interesses maiores do país, do Estado ou da cidade.

O que não é razoável é que a oposição abra mão do seu papel institucional, que é justamente o de contrapor pontos de vista e projetos, além de fazer denúncias. Nos últimos anos, esse princípio salutar tem sofrido abalos no Brasil.

Numa realidade política em que o presidente da República ostenta altos índices de aprovação popular e vetores tradicionais de contestação -como os movimentos sociais e até o sistema financeiro- alinham-se ao governo, ser oposição transformou-se num fardo que muitos relutam em carregar. Com poucas exceções, o que temos é uma oposição tímida, num Congresso Nacional cada vez mais submisso ao governo.

Três anos depois do escândalo do mensalão, a produtividade da Câmara dos Deputados melhorou, mas ainda é baixa. Em 2008, mais da metade das sessões tiveram a pauta trancada.

A participação das medidas provisórias em relação ao total de matérias apreciadas caiu em relação a 2007, quando representaram 42% de tudo o que foi votado. Mas elas continuam com destaque no balanço do que foi aprovado. De cada 4 matérias aprovadas pela Câmara dos Deputados em 2008, 1 é medida provisória.

A atuação do Poder Executivo no Legislativo também é registrada nos projetos discutidos: o governo federal encaminhou 40% dos projetos de lei aprovados e 37,5% dos projetos de lei complementar.

Neste ano, a capacidade da oposição -e, particularmente, do PSDB- para organizar uma ação coordenada será testada por uma agenda repleta de temas difíceis e até polêmicos.

A política terá uma dimensão maior, exigirá novas referências e uma concepção positiva. Já na volta das sessões da Câmara dos Deputados, a pauta incluirá a reforma tributária e o arremedo de reforma política proposto pelo governo. É importante saber o que realmente motiva tal proposta, em especial ao tratar ou não do fim da reeleição.

Entre os temas mais polêmicos para discussão estão ainda o fim do fator previdenciário e o reajuste salarial dos aposentados que ganham mais de um salário mínimo. Ainda no campo trabalhista, a crise internacional, que já mostra sérios reflexos no Brasil, deverá impulsionar o debate sobre a redução da jornada de trabalho. Outro tema que certamente provocará ainda muita discussão é a proposta de alteração no Código Florestal, que opõe ruralistas e ambientalistas, favoráveis e contrários à redução da área protegida na Amazônia.

São temas que não admitem meio termo nem devem servir de suporte para posições populistas. Todos terão impactos no país. Exigem, portanto, posicionamento firme, coerência e clareza. Qual será a posição da oposição? Vai se alinhar ao governo ou simplesmente se posicionar contra?

É necessário definir posições e firmar um discurso claro que permita à sociedade compreender que papel desempenha cada ator do cenário político nacional. Política se faz com identidade.

Nenhum partido ou candidato de trajetória dúbia pode pretender a confiança dos eleitores. Por mais personalista que seja o voto, ao fazer os cálculos que resultarão numa escolha política, o eleitor levará em conta o grau de identificação com determinado partido -o que naturalmente está relacionado com a orientação adotada por esse partido, a maneira como se posiciona diante de determinados temas e a sua prática cotidiana.

É necessário ter clareza, e a agenda que espera o Congresso Nacional em 2009 é uma excelente oportunidade para demonstrar até onde a oposição está disposta a fazer oposição.

Gustavo Fruet , 45, doutor em direito pela Universidade Federal do Paraná, é deputado federal (PSDB-PR) e vice-líder do seu partido na Câmara.

Como Pôncio Pilatos

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A candidatura do senador José Sarney à presidência do Senado não foi decidida na semana passada nem é fato que tenha contrariado o presidente Luiz Inácio da Silva nem chegado ao conhecimento dele no encontro que os dois tiveram dia 20 último.

É urdida há quase dois meses. A data da operação em si pode ser estabelecida a partir do dia 18 de dezembro quando o presidente do Senado, Garibaldi Alves, num movimento estranho, mas agora compreensível, foi lançado pelo PMDB à reeleição, a despeito dos questionamentos jurídicos.

Naquele mês, mais de um senador da base governista foi chamado ao gabinete de Renan Calheiros e ouviu que José Sarney seria o próximo presidente do Senado e, ele, Calheiros, líder do partido. O roteiro da trama é conhecido, mas poucos ousam revelá-lo e nenhum senador o faz sem a proteção do anonimato.

Articulador da candidatura por intermédio da qual volta ao poder e busca o prestígio perdido em meio a denúncias que lhe custaram a renúncia à presidência do Senado e um processo no Supremo Tribunal Federal, Renan Calheiros abriu o jogo na ocasião.

Disse que tiraria a liderança de Valdir Raupp, que no dia 20 de janeiro Sarney anunciaria a candidatura e que até lá seria necessário criar um fato para impedir a viabilização da candidatura do petista Tião Viana.

Dito assim, exatamente assim foi feito. O senador Garibaldi prestou-se ao papel de simular a retomada da ideia de se candidatar à reeleição e, desse modo, evitou que Viana se consolidasse, o que fatalmente ocorreria se ficasse sozinho no páreo.

Na ocasião, quem quis foi conferir o roteiro com Sarney. A conversa, meio atravessada como sempre, foi sendo conduzida para o desmentido, a negativa da candidatura. Até que Sarney fez uma vírgula, e disse o que de fato queria dizer: "Mas o Tião, nesse meio tempo, terá que decolar..."

Pois "nesse meio tempo", o PMDB tudo fez para que não decolasse. Lançou Garibaldi, manteve a possibilidade Sarney no ar e foi levando em banho-maria o momento de decisão que seria anunciada logo após o encontro com Lula.

Reunião de cartas marcadíssimas. O presidente explicou a Sarney que já havia tentado demover Tião Viana da candidatura, naquela altura irreversível, assumida no PT com o compromisso de ir até o fim, "dê o que der".

O senador, então, deu cartada final, dizendo ao presidente que, se ele pedisse, retiraria a candidatura. Lula respondeu que não "faria isso" com um "parceiro" leal e um político da estatura de Sarney. Estava, portanto, sacramentado o abandono de Tião Viana à própria sorte.

Destino, ademais, traçado por diversos companheiros que o alertaram para que não se iludisse, pois seria deixado no meio do caminho.

Feita a cena no dia 20, no dia 21 Sarney começou a procurar os colegas senadores. Comunicou a "revisão" daquela posição de não concorrer e relatou a conversa com o presidente. Só.

Não pediu voto, mas começou a negociar os cargos na Mesa, assegurando ao DEM logo a primeira-vice-presidência para o senador Heráclito Fortes, um dos mais aguerridos opositores do governo Lula.

Ao PSDB de maneira enviesada fez entender que os votos do partido poderiam levar o apoio do grupo aliado a Lula desde o primeiro momento da campanha pelo primeiro mandato para a candidatura José Serra a presidente em 2010.

Pelo que anda dizendo o presidente do partido, senador Sérgio Guerra, a seus pares, o tucanato acreditou.

Não teria tanta confiança assim, porém, se tivesse tido oportunidade de testemunhar a sem-cerimônia com que aliados de Sarney circulam por Brasília comemorando antecipadamente a vitória no Senado e apostando que, na Câmara, não se elege Michel Temer e sim Aldo Rebelo, cuja campanha, cumpre registrar, está mergulhada no silêncio e no mistério.

Ele atua fortemente, pedindo votos sob o argumento de que não interessa a ninguém, nem ao governo nem à oposição, ver o PMDB no comando total do Congresso.

O grupo de Michel Temer acusou o golpe desde o primeiro instante e passou a trabalhar contra Sarney. Eles não querem briga com o presidente da República (em nome dos cargos que ocupam desde a reeleição), mas já detectaram a evidência: para o Palácio do Planalto não seria de todo mau - ao contrário - que Temer seja derrotado.

Principalmente se Aldo Rebelo ganhar, abrindo-se a oportunidade para a compensação pela derrota para Arlindo Chinaglia, na eleição de presidente da Câmara em 2007, e a desistência da candidatura a prefeito de São Paulo para integrar, como vice, a chapa de Marta Suplicy.E qual o ganho da eventual derrota de Temer?

A perda do comando do partido, hoje presidido por ele, cuja máquina nacional é diamante para qualquer que seja o plano de Lula para 2010. Esse grupo, como se sabe, é próximo de José Serra, fez parte do governo Fernando Henrique Cardoso e, desde a adesão da seção paulista à candidatura de Gilberto Kassab, costeia perigosa, mas firmemente, o alambrado do campo adversário.

Crise, sucessão e um Congressodiferente na fase final do governo

Jarbas de Holanda

A conquista pelo PMDB dos comandos da Câmara e do Senado, já praticamente definida a menos de uma semana das duas eleições – em ambas numa aliança com a oposição, na segunda contra o PT e na primeira sem depender do apoio dele – poderá mudar significativamente a qualidade do relacionamento do Palácio do Planalto com o Congresso, terá algumas implicações no enfrentamento da crise econômica e, sobretudo, condicionará o processo da sucessão presidencial, em particular a campanha da candidata situacionista Dilma Rousseff.

A mudança da qualidade de tal relacionamento será facilitada ou propiciada por progressiva evolução do partido majoritário no Legislativo federal de uma postura que combinava a partilha do governo com a subordinação ao projeto sucessório de Lula para um posicionamento pragmático de persistência da partilha mas sem compromisso com o referido projeto e, mais que isso, aberto à exploração de duas alternativas: apoio a um candidato oposicionista, provavelmente o tucano José Serra, ou lançamento de um nome próprio (na hipótese, de difícil e incerta operação, da troca de legenda por Aécio Neves). Nos dois casos, com interrupção daquela partilha bem antes da disputa presidencial.

Manifestações previsíveis de tal mudança: com um PT enfraquecido, o presidente Lula dependerá decisivamente de um PMDB centrista para o enfrentamento dos efeitos da crise econômica no Legislativo e para a própria governabilidade, bem como para a montagem de seu projeto sucessório. Outras manifestações do gênero: o fechamento do caminho para proposta de um terceiro mandato presidencial consecutivo (que poderia reemergir com força num cenário – bem mais adiante – de manutenção de altos índices de popularidade de Lula e de precária afirmação de candidatura por ele patrocinada), que o PSDB reforça com cobrança de explicitação contrária por Sarney; e aumento das dificuldades enfrentadas pelo projeto oficial de ingresso da Venezuela de Hugo Chávez no Mercosul, carente de aprovação por um Senado com um presidente reiteradamente hostil à iniciativa. Mas tudo isso se processando por meio da ambigüidade própria do pragmatismo peemedebista, sem envolver iniciativas de ruptura com um presidente com alta taxa de popularidade e que conta ainda com dois anos de mandato.

Em relação à crise, o fortalecimento do PMDB centrista, em detrimento do esquerdismo do PT, poderá refrear propostas e ações de setores do governo para enfrentamento dela por meio de medidas de exacerbação populista, tais como nova escalada dos gastos com programas assistencialistas e das despesas de custeio (além das já contratadas para este e os próximos anos) ou o bloqueio político à negociações trabalhistas destinadas a minimizar a avalanche de demissões, sobretudo na indústria. Quanto a decisões tomadas pelo Planalto que têm sido questionadas – como a criação do Fundo Soberano, com recursos internos, e o uso de vultosas e subsidiadas verbas públicas para a capitalização do BNDES – o PMDB não tem posição contrária ou nada a opor. Como também em relação ao PAC e outros programas de investimentos, de cuja gestão buscará participar mais e colher melhor dividendos.

Especificamente a respeito da sucessão de 2010, a dependência maior de Lula para com o PMDB deverá traduzir-se num esforço da pré-candidatura Dilma Rousseff para associação dele a sua campanha. Que, por isso, enfrentará mais restrições no PT, restrições, porém, de um partido debilitado e sujeito ao comando do presidente Lula. A busca dessa associação terá a virtude de reduzir o esquerdismo histórico da chefe da Casa Civil, compelindo sua campanha a ampliar articulações com setores do empresariado em torno de propostas desenvolvimentistas nas quais ela disfarçará seu dirigismo estatizante e a serem combinadas com a capitalização dos programas assistencialistas de Lula. Pois, para disputar o apoio do PMDB, como uma candidatura a ser socialmente construída, Dilma terá de escudar-se num discurso moderado, capaz de sensibilizar o eleitorado centrista (ao contrário daquele que Lula fez no segundo turno da disputa com Geraldo Alckmin em 2006, ao usar retórica radical antiprivatização e anti-av.Paulista, esta como símbolo do empresariado da Fiesp).

A disputa para mostrar quem é mais miserável

Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO

"Vocês não vão para Serra Pelada? Vocês têm que ver a miséria lá. Lá é muito pior. Tem 800 casos de hanseníase para uma população de seis mil habitantes", incita o vereador Paulo Higino da Silva aos jornalistas e membros da comitiva do Fórum de Carajás promovido pelo MST, que levou cerca de 150 pessoas a percorrer quase 1,5 mil quilômetros dentro do Pará, de sábado até terça-feira, para ver mata que virou pasto e árvore que virou madeira, e muita miséria. Na curva do "S", onde há 15 anos a PM do Pará, no governo de Almir Gabriel (PSDB), emboscou milhares de sem-terra e matou 19, se o clima era mais amistoso do que há uma década - a Força Nacional estava lá para proteger a comitiva, que tinha muitos estrangeiros; a prefeitura recebeu com festa; o palanque foi destinado a poemas de músicas da "luta pela terra"; a inauguração de um monumento aos mortos de Carajás foi feita pelo MST, que descerrou a placa com a sua bandeira -, o desfile de misérias individuais e coletivas não deveria ser diferente. Higino insistia que os olhos internacionais vissem a degradação da parte de Curionópolis que já foi a maior mina de ouro do mundo e hoje é o maior índice de lepra do Brasil. Tem também prostituição infantil, insiste o vereador. Mais adiante, moradores de Parauapebas, município que sedia Carajás, reivindicavam ao seu município o mais alto índice de HIV e de câncer de pênis do país (atribuído a hábitos de higiene precários), além de um dos mais altos custos de vida do Estado. Parauapebas tem 110 mil habitantes e prevê que, em três anos, chegará a 300 mil. Oitenta por cento de seus habitantes são maranhenses - a Vale do Rio Doce atrai levas de migrantes pobres que incham a periferia da cidade, lá se incorporam às tarefas de peões da mineradora, ou ficam desempregados e engrossam as filas do MST.

Mil e quinhentos quilômetros de estrada, onde se alternam projetos grandiosos e miséria igualmente grandiosa, são suficientes para convencer qualquer um que o grande problema da Amazônia ainda é o fundiário. O Pará é, hoje, uma fronteira que está sendo empurrada - e os tratores das madeireiras e os bois transitam e comercializam áreas de grilagem, do Estado e da União, sem serem incomodados. É terra sem lei, mas dono, na verdade, ela tem. São a União e o Estado. A União, todavia, tem quase 70%. Aliás, em quase toda a Amazônia Legal a União é a grande proprietária de terras públicas, porque o governo militar, na década de 70, desapropriou cem metros à margem das rodovias e saiu abrindo picadas no meio da mata e fazendo projetos de colonização que distribuíram muita isenção fiscal a grandes empresas sem nenhuma vocação para o agronegócio; atraiu levas de nordestinos e largou-os no meio da floresta; e botou combustível numa região de mais alto e antigo conflito de terras do país. Na região amazônica, portanto, a questão fundiária é principalmente um problema federal.

Essa situação tem um custo que vem sendo empurrado governo a governo após a redemocratização. Não existe solução possível para a preservação da Amazônia, para a erradicação da miséria na região e para a redução da desigualdade social que não passe por uma definição clara de um projeto do governo para a questão agrária. A primeira questão, urgente, é a regularização fundiária. Existe uma enorme controvérsia sobre o assunto, mas talvez isso ocorra por causa das omissões sucessivas dos governos, inclusive do próprio presidente Lula, que não foi diferente nessa questão. Há uma divergência profunda entre o que querem os movimentos sociais - que estão empenhados em estabelecer limites à regularização da grande propriedade - e o que desejam o Congresso e o governo federal, que definiram a regularização de propriedades de até 15 módulos (1,5 mil hectares).

Essa é uma questão polêmica porque a concentração de terras na região nas mãos dos grileiros têm ocorrido, desde os anos 70, com a conivência de agentes públicos. Quem está fora do processo não imagina por que razão um deputado ou senador da região sempre fez tanta questão de indicar o responsável pelo Incra estadual. Nem todos os presidentes dos Incras estaduais fizeram isso, é lógico, mas ao longo do tempo essa troca de favores entre governo federal e sua base parlamentar foi proporcionando poder aos mal intencionados para regularizar grilagens em troca de dinheiro.

Segundo um integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no início do governo Lula foi feito um acordo entre o governo, os movimentos sociais e o próprio grupo do PT que comanda desde o início o Ministério do Desenvolvimento Agrário, para que os Incras estaduais não fossem moedas de troca com a base de apoio de governo. A idéia era substituir a indicação política pela indicação técnica, para que fosse quebrada a relação entre o poder local e a grilagem. Não foi o que aconteceu. Agora, quando a questão da regularização fundiária entrou, enfim, na pauta do governo, a sirene parece ter soado alto. Tanto a agência especial proposta pelo ministro Mangabeira Unger, como a força especial formada pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), que foi a fórmula vitoriosa, são um reconhecimento de que a regularização fundiária é impossível num Incra cujas estruturas estaduais foram apropriadas pela base aliada. Jorram interesses aí, que simplesmente imobilizam o Incra nacional.

O governo Lula demorou seis anos para resolver essa contradição. A outra que tem que resolver é o que fazer com os milhões de miseráveis que vêm para a região em busca de uma oportunidade, nos grandes projetos de mineração ou hidrelétricos. Hoje eles vivem do Bolsa Família, dão votos a Lula, são mão-de-obra de madeireiras, alvo fácil de fazendeiros que usam trabalho escravo e candidatos a conviver com os esgotos a céu aberto das cidades que são sede de grandes projetos. Isso não é projeto para o futuro.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

O grande estelionato mercadista

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Mercado se anima com rumor de que Obama pode comprar dívida podre da banca, dando anistia à farra de Wall Street

BARACK OBAMA , o "cavaleiro da esperança", vai mesmo doar dinheiro para donos de bancos? Tão importante quanto o pacotão fiscal (gastos em obras, energia, educação, saúde e ciência) é a menos popular "fase dois" do pacote de salvação do sistema financeiro.

Mesmo que seus efeitos práticos apareçam apenas daqui a um ano, o pacotão fiscal pode ter a utilidade de insinuar a consumidores e empresas que a situação não deve degringolar em depressão, reanimando os espíritos. Mas o pacotão funciona como o empurrão que faz um carro "pegar no tranco". Se o carro tem um defeito mecânico ou está sem combustível, porém, vai parar de novo. A pane nas finanças é uma das piores a afetar o carro da economia.

Obama terá de consertar as finanças. Ficou mais evidente que os bancos não têm capacidade de comprar nem pechinchas miúdas no mercado de instituições quase falidas. Não vão sair do chão puxando os cabelos. O problema é que, diz o rumor, o plano Obama para as finanças pode ressuscitar o plano Paulson-Bush, um presente para grandes acionistas e gestores da banca. O mercado ficou animadinho ontem por causa disso.

No plano Paulson, o governo compraria a dívida podre dos bancos por um preço alto e esperaria até que, no dia de são Nunca, ela voltasse a valer algo. Isto é, no mínimo, o governo daria a acionistas de bancos um quase trilionário empréstimo de pai para filho, com seguro grátis.

Alternativa? Desapropriar, estatizar a preços módicos e revender os bancos que sobrarem quando tiver sido limpa a porqueira de Wall Street.

Caso ocorra a mãe de todas as socializações do prejuízo, é bom que se faça um registro, para o bem do serviço de prevenção da patranha, da bravata e do estelionato ideológicos:

1) O "cavaleiro da esperança", Obama, terá dado dinheiro a ricos;

2) Ficará gravado em pedra que a grande finança não apenas depende de normas e seguros estatais para funcionar: também tem o direito de ser ressarcida pelo público em caso de lambança, ficando com todos os lucros do período da farra;

3) A grande farra financeira ocorreu na década em que o crescimento médio dos EUA superou apenas o dos anos 1930, da Grande Depressão (mesmo excluídos 2008 e 2009; considerado o período que começa em 1930). Na década da farra, a renda do trabalho estagnou e a desigualdade aumentou nos EUA. Apenas mercadistas vulgares e estelionatários continuam a repetir que a finança desembestada foi a responsável pelo "período mais próspero da história" (ou a nova camarilha chinesa na verdade era toda composta de agentes de Wall Street?).

Menos importação de besteiras

O governo não vinha fazendo grande besteira na crise. Até agora há pouco. Ameaça fazê-las, seguindo o ministro do Trabalho, ao condicionar empréstimos à manutenção de emprego. Ou pisando na jaca podre, como o fez ao impor barreiras burocráticas à importação, tolice antieconômica, que suscita favorecimentos e é, enfim, contraproducente. Teve de rever a medida.

É hora de impor barreiras à emissão de disparates. Mais comentário sobre a bobajada das importações no blog desta coluna:

''Concessão de refúgio é atuação partidária''

Daniel Bramatti
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Para Roberto Romano, doutor em filosofia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França) e professor da Universidade Estadual de Campinas, a concessão do refúgio político a Cesare Battisti foi ideológica e partidária. A seguir, trechos de entrevista concedida por telefone:

O governo agiu certo ao conceder o refúgio político a Battisti?

Não. Neste episódio, como tem sido a norma no governo Lula, o Brasil abriu mão de sua tradição diplomática. O Itamaraty sempre teve pauta independente do presidente, sobretudo de sua ideologia. Em vez de diplomacia, houve atuação partidária em escala internacional.

O sr. acha que o ministro Tarso Genro fez um juízo de valor indevido sobre o Judiciário italiano ao dizer que Battisti não teve direito a ampla defesa?

Sim. Foi um juízo não fundamentado na leitura do processo, inclusive do processo histórico. Ao julgar um indivíduo, não se pode olhar apenas os papéis, é preciso ver o contexto. Aquela facção (Proletários Armados pelo Comunismo) estava, na época, em guerra, praticando assaltos a banco e uma série de atividades ilegais que não cabem no sistema democrático.

Como o sr. avalia a reação das autoridades italianas?

Mesmo em se tratando de um processo que, da parte brasileira, foi profundamente desastrado, a reação de parte da imprensa italiana, da opinião pública e do próprio governo me pareceu em um tom demasiado elevado. Deveria haver mais frieza por parte da Itália em relação ao Brasil.

Na opinião pública italiana havia uma avaliação demasiadamente positiva de Lula e de seu governo. Então a decepção trouxe essa acidez, que no meu entender é excessiva, inclusive em termos diplomáticos.

Há outros casos de italianos envolvidos na luta armada que ficaram no Brasil por decisão do Supremo Tribunal Federal. O sr. acha que Battisti teria sido extraditado se a decisão ficasse nas mãos do STF?

Creio que sim. O Supremo é uma corte com pessoas altamente gabaritadas, algumas nomeadas pelo atual presidente da República, mas que têm mostrado autonomia nos julgamentos. Apesar de a lei dizer que o Poder Executivo pode conceder o refúgio, a prudência recomendava ouvir a maior autoridade judiciária do País.

O paradoxo de Davos

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


DAVOS. O paradoxo de defender o livre mercado e o sistema capitalista e, ao mesmo tempo, admitir que somente uma vasta intervenção dos governos nacionais poderá tirar o mundo da crise sistêmica em que se encontra, é a marca dessa edição do Fórum Econômico Mundial. O que se vê aqui em Davos é uma imensa catarse, com temas como regulação do mercado financeiro, que já foram considerados tabus, agora sendo prioritários. Não há quem discuta a necessidade de maior transparência no mundo financeiro, ou de um controle regulador que devolva a confiança no mercado internacional. E todos estão convencidos de que, no momento, apenas os governos nacionais têm condições de sustentar o mercado financeiro e dar credibilidade ao sistema.

Mas foi George Soros, o megainvestidor, quem melhor definiu como os sustentáculos do sistema capitalista veem essa intervenção maciça dos governos na economia: "Os governos são péssimos agentes econômicos. Assim que tudo estiver normalizado, eles têm que sair de cena, deixando para as entidades privadas o papel de tocar a economia".

Para se ter uma ideia do ambiente em que o fórum se desenrola, basta verificar a pergunta mais frequente: quanto você perdeu até agora? Duas respostas são exemplares. O escritor brasileiro Paulo Coelho diz que não perdeu nada por que só aplica em renda fixa. Já o megainvestidor George Soros declarou-se feliz por estar conseguindo preservar o que tem e ficar "levemente positivo", o que, no atual "colapso", considera "digno de comemoração".
Foi, aliás, de Soros a melhor resposta sobre a crise. Não tem a menor importância saber quanto tempo ela vai durar, disse, mas "o que vamos fazer para sair dela". E ele deu duas ideias, polêmicas, mas pelo menos inovadoras. Uma sugestão de Soros é a formação de um imenso fundo, financiado pelos países desenvolvidos e controlado pelo FMI, a fim de restabelecer linhas de crédito para os países emergentes.

Para proporcionar solidez ao sistema bancário internacional, Soros propõe um imenso Proer. Ele se anunciou disposto a investir no que chamou de "bancos bons", que seriam aqueles livres dos investimentos podres, que ficariam nos "bancos ruins", que ficariam com os governos.
Os bancos, de maneira generalizada, defendem essa tese, que lhes garantiria a segurança necessária para restabelecerem o fluxo de crédito internacional. A "aversão ao risco" seria compensada por garantias governamentais.

Mas não foram as entidades privadas que provocaram esse "colapso"? Para um encontro que supostamente reúne as melhores cabeças e os líderes do sistema capitalista, não ter captado a crise que se avizinhava é uma lição de humildade que vem sendo cuidadosamente aproveitada este ano, com a admissão tardia, mas fundamental, de que o mercado por si só não é capaz de corrigir seus excessos.

Não se via tanto mea-culpa desde que, em outubro passado o ex-presidente do Banco Central americano Alan Greenspan, confrontado por um congressista americano, admitiu, "chocado", que o modo de vida capitalista não deu certo, e se disse "surpreso" de constatar que o mercado não conseguiu se autorregular, e que as pessoas não conseguiram trabalhar em seu próprio benefício, refreando os excessos do sistema financeiro.

Recebi do Ministro da Justiça, Tarso Genro, a seguinte mensagem: "Lendo tua coluna de do dia 27 último, verifico comentário sobre os dois boxeadores cubanos que deixaram a delegação do Pan. Estás correto ao lembrar que um deles finalmente conseguiu viver na Alemanha. Mas equivocado quando afirmas que "entreguei" os dois atletas a Cuba. À época do Pan, ambos deixaram a delegação justamente com a promessa de viver na Alemanha. Ficaram alguns dias em uma pequena praia do Rio, sem que o empresário que os procurara fizesse qualquer contato.

"Desiludidos, pediram a um pescador local que fizesse contato com a polícia, que os levou à Polícia Federal. Lá foram ouvidos por duas vezes, com o acompanhamento de advogado representante da OAB-RJ e de um procurador do Ministério Público do Rio.

"Nos dois depoimentos, afirmaram o desejo de volta a Cuba. Foi-lhes oferecido asilo, que recusaram. Tudo está registrado em documentação da Polícia Federal. Mas quero lembrar outros dois fatos: um treinador de handball (Rafael Capote) e um ciclista (Michel Fernandez Garcia) também deixaram a delegação cubana no Pan. Pediram refúgio no Comitê Nacional para os Refugiados, o que foi concedido.

"Mais recentemente, quatro músicos de um grupo cubano que se apresentava no Brasil também pediram refúgio no Conare. Hoje vivem em Recife. Naturalmente, a Embaixada de Cuba protestou, o que não impediu que mantivéssemos a decisão. E outra informação: há 123 cubanos vivendo no Brasil, sob refúgio político.

"Portanto, não posso concordar com tua afirmação, de que o governo brasileiro adotou "uma atitude ignóbil, tão marcada de ideologia que não merece discussão sobre soberania brasileira.

"Mais recentemente, já no governo Sarkozy, a França negou a extradição para a Itália da ex-brigadista Marina Petrella. Sem clamores por parte de seu país de origem. Finalmente, reitero: o que me levou a conceder refúgio a Cesare Battisti foi reconhecer que havia fundado temor de perseguição política, conforme preceitua a lei brasileira."

Registro a mensagem do Ministro da Justiça, mas continuo achando que considerar que há "fundado temor de perseguição política" num governo democrático como o da Itália, onde a livre imprensa existe e o Judiciário é um poder autônomo como deve ser nas democracias, é uma atitude política, e não técnica, do governo brasileiro, que nada tem a ver com a soberania do país.

O capitalista e o comunista

Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


DAVOS - Pode-se acusar George Soros de tudo ou de quase tudo, menos de não saber ganhar dinheiro.

Mesmo sabendo, é o único grande capitalista que tem feito críticas sólidas ao capitalismo.Sua análise sobre a presente crise é irrebatível nesse aspecto. Começa por dizer que a decantada eficiência do mercado "foi desmentida", assim como foi desmentida a tese de que os mercados, deixados por sua conta, "tendem ao equilíbrio". Na verdade, Soros usou o verbo "desproved", que, em português, seria "não provado/a", mas fica esquisito, não é?

O megainvestidor lembra, de novo com toda a razão, que não foi um "choque exógeno" que levou aos "distúrbios" no sistema financeiro.

Ou seja, os "distúrbios" nasceram no próprio sistema financeiro e acabaram por levá-lo ao "colapso", sempre na análise de Soros.

Ele se recusa a fazer previsões sobre o tamanho e o tempo de duração da recessão provocada pelos "distúrbios" (ou "colapso", você escolhe). Diz que não é importante.

Ou que de fato importante seria reconstruir o sistema que entrou em colapso, o que exige uma fantástica, quase incalculável, injeção de dinheiro para capitalizar os bancos em coma.De onde virá o dinheiro? Óbvio: de papai-Estado, o único que tem recursos para fazê-lo, nem que seja preciso imprimi-lo.

Soros também defende o que a maioria de seus pares rejeita: a regulação do sistema financeiro. Não que acredite na capacidade de o Estado fazer direito as coisas. Mas "tem que fazê-lo, mesmo que tenda ao erro, porque, se errar, o mercado reage e permite corrigir o erro", que no caso seria de calibragem da regulação.

Prefiro Soros a um suposto comunista, o premiê chinês Wen Jiabao, que só ontem se lembrou de que, ao reler os dois clássicos de Adam Smith, encontrara apenas uma única menção à justiça social.

Governo recua e elimina restrição a importação

Martha Beck, Eliane Oliveira e Cássia Almeida
DEU EM O GLOBO

Após protesto de empresários, Mantega nega intenção protecionista e diz que a medida foi mal-interpretada

BRASÍLIA. Atordoado com a péssima repercussão no meio empresarial da medida que, desde a última segunda-feira, exigia licença prévia de importação para cerca de três mil itens, o governo recuou ontem e suspendeu os efeitos da nova regra a partir de hoje. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, veio a público explicar que a ideia era acompanhar o comportamento da balança comercial, que vem apresentando um desempenho ruim no primeiro mês do ano, e não impor uma barreira não-tarifária.

- O Ministério do Desenvolvimento resolveu tomar uma medida para poder fazer um monitoramento mais preciso do que estava acontecendo na balança comercial. Essa medida foi mal-entendida, causou ruídos, foi mal-interpretada. Por isso, concordamos pela sua suspensão - disse Mantega.

A restrição acabaria tornando mais lento o desembaraço das mercadorias, alertaram representantes da classe empresarial. O ministro, porém, indicou que a preocupação do governo era com a entrada no país de produtos que pudessem causar concorrência predatória e prejudicar as empresas nacionais, num momento em que as exportações estão em baixa. Em outras palavras, ele admitiu que o déficit que vem se concretizando este mês, depois de sete anos em que não é registrado um único saldo negativo mensal, pesou na decisão:

- A crise internacional provocou uma redução da demanda de commodities e, portanto, uma diminuição das exportações brasileiras. Causou uma preocupação em relação ao desempenho da balança comercial.

Sob fortes críticas, o governo já havia começado a reduzir o número de produtos que estavam na lista desde a última terça-feira. Trigo, autopeças, plásticos e derivados e alguns bens de capital foram retirados.

Para o vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, a revogação "foi uma demonstração de bom-senso do governo". O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Jackson Schneider, afirmou:

- Qualquer tipo de apreensão referente a dificuldades no que diz respeito ao processo de produção não é bom.

Para entidade, governo teve sensibilidade

Schneider esteve anteontem com Mantega. Uma fonte do governo disse que o setor automotivo ajudou a convencer o governo a voltar atrás, alegando que poderia haver problemas na escala de produção se houvesse dificuldades na importação de peças e plásticos.

A Associação Brasileira da Indústria Elétrica Eletrônica (Abinee) comemorou a decisão. Muito dependente das importações para sua produção, o setor levou suas queixas diretamente ao ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, em viagem pela África, por meio do presidente Humberto Barbato. Para a entidade, "o governo demonstrou sensibilidade".

Segundo fontes, a imposição da licença prévia foi acertada diretamente pela Fazenda com o Palácio do Planalto. O Ministério do Desenvolvimento fora encarregado de executá-la. A nova regra saiu justamente quando nem Miguel Jorge nem o secretário de Comércio Exterior (Welber Barral) estavam no país. Apreensivo com a possibilidade de outros países questionarem a medida na Organização Mundial do Comércio (OMC), o Itamaraty sequer foi consultado.

Também pesou na decisão de exigir licença prévia o risco de uma invasão de produtos da China, em diversos casos com fraudes e subfaturamentos nas aduanas, e a tendência protecionista da Argentina.

Crise deixará 51 milhões sem trabalho, diz OIT

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Mais de 51 milhões de pessoas podem perder o emprego em 2009 em decorrência da crise, segundo relatório da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

O estudo do órgão das Nações Unidas estima que o número de desempregados pode aumentar entre 18 e 30 milhões e pode chegar a "51 milhões se a situação seguir se deteriorando".No melhor dos cenários, a taxa média de desocupação passaria de 5,7% em 2007 para 6,1% em 2009, o que significa 191 milhões de pessoas sem trabalho. "A mensagem da OIT é realista, não alarmista. Nós enfrentamos uma crise global do emprego", afirmou o diretor-geral da OIT, Juan Somavia.

A previsão anterior da OIT, divulgada em outubro, era de que 20 milhões de empregos iriam desaparecer ao fim de 2009. No pior dos casos previstos pela OIT, a crise pode ainda fazer com que 200 milhões de trabalhadores sejam levados para abaixo da linha da pobreza, principalmente nos países em desenvolvimento.

Na América Latina, as previsões sugerem que a taxa de desemprego na região pode chegar a 8,3% neste ano.

FMI derruba previsão de crescimento para o Brasil

Patrícia Campos Mello
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O Fundo Monetário Internacional (FMI) reduziu de 3% para 1,8% a estimativa de crescimento do Brasil em 2009. Foi a segunda vez em quatro meses que o FMI baixou a projeção, que era inicialmente de 3,5%. Apesar disso, o desempenho do País deve ficar acima da média da economia global - que, de acordo com o Fundo, deverá crescer apenas 0,5%. A taxa é a mais baixa desde a Segunda Guerra Mundial. Outro que vê dificuldades para o Brasil é o economista Nouriel Roubini, célebre por ter previsto a crise financeira global. Ele acha que o País sofrerá forte desaceleração, relata de Davos, na Suíça, o enviado especial Fernando Dantas. "O crescimento do Brasil pode ser próximo de zero, pode ser 1% ou até acabar sendo negativo", disse Roubini, uma das estrelas do Fórum Econômico Mundial.

Brasil vai crescer só 1,8%, prevê FMI

Fundo revê previsão de expansão, que era de 3% há quatro meses

O Fundo Monetário Internacional (FMI) voltou a revisar para baixo a estimativa de crescimento do PIB do Brasil em 2009, que passou de 3% para 1,8%. Essa é a segunda vez em quatro meses que o Fundo revê a projeção de crescimento mundial. Para o Brasil, a previsão inicial de expansão em 2009 era de 3,5%. Em 2010, o País vai crescer 3,5%, prevê o FMI.

Já a economia mundial deve ficar "virtualmente paralisada" em 2009, nas palavras de Olivier Blanchard, economista-chefe do Fundo. O crescimento mundial deve ficar em 0,5% em 2009, a taxa mais baixa desde a Segunda Guerra Mundial (a estimativa em novembro era de 2,2%). Nos países ricos, haverá contração de 2% , sendo -1,6% nos EUA, -2% na União Europeia e -2,6% no Japão em 2009.

Os países emergentes terão crescimento, mas de apenas 3,3% neste ano - na China, considerada a locomotiva do mundo, o crescimento será de 6,7% - a metade do que foi há dois anos.

Segundo Charles Collyns, vice-diretor no departamento de pesquisas do Fundo, a América Latina está sendo afetada pela crise por três canais de transmissão: redução nos fluxos de capital estrangeiro, queda no preço das commodities e redução nas exportações. "Mas a América Latina tem muito mais espaço de manobra desta vez, pode absorver choques com as taxas de câmbio flutuantes, tem grandes volumes de reservas para lidar com problemas de liquidez e menor endividamento", disse. "Não vamos ver a região mergulhando em uma crise grave, como ocorreu em outros casos."

Caso políticas de combate à crise sejam adotadas logo, o Fundo espera que o mundo volte a crescer no fim de 2009. Até lá, as condições financeiras terão melhorado, já vão ser sentidos os efeitos dos pacotes de estímulo fiscal e o mercado imobiliário americano estará mais estável, acreditam os economistas do Fundo. Para 2010, o FMI prevê crescimento de 1,1% nos países ricos, 5% nos emergentes e 3% no mundo.

A estimativa de expansão mundial noa ano foi reduzida em 1,75 ponto porcentual desde a última previsão. Para Blanchard, o Fundo revisou as estimativas de novo porque "os efeitos da crise global são cada vez maiores, operando por canais diferentes". Nos países ricos, a turbulência abalou a confiança dos consumidores e empresas e aumentou o custo do crédito. Já os países emergentes foram afetados por canais externos: a queda na demanda externa levou ao colapso nas exportações, o aperto global de crédito dificultou e encareceu os empréstimos e a queda nos preços das commodities afetou a receita desses países.

Segundo Blanchard, as políticas adotadas até agora para lidar com a crise não são suficientes. "Ainda não foi implementado um programa para restabelecer a saúde financeira e lidar com ativos podres", disse .

REAÇÃO DO GOVERNO

O Ministério da Fazenda ignorou a previsão do Fundo. "Deixa o FMI! Vamos esperar até o final do ano para ver quem está certo", comentou um assessor.

Mundo crescerá este ano 0,5%, menor taxa desde o pós-Guerra, segundo FMI

DEU EM O GLOBO

Projeção anterior era expansão de 2,2%. Para organismo, Brasil avançará 1,8%

WASHINGTON. A economia mundial vai ficar praticamente estagnada este ano, à medida que mais de US$2 trilhões de ativos podres travam o sistema financeiro, revelou ontem o Fundo Monetário Internacional (FMI), em seu relatório sobre a economia. De acordo com o documento, a economia mundial vai crescer apenas 0,5% este ano, a expansão mais fraca desde a Segunda Guerra Mundial, o que representa uma queda acentuada em relação à previsão anterior, feita em novembro, de um crescimento de 2,2%. Naquela ocasião, o FMI achava que as economias emergentes conseguiriam conter a desaceleração dos países ricos. Essa perspectiva, porém, mudou a partir do momento em que nações como Brasil, Índia, China e Rússia passaram a acusar os efeitos da crise. Na mesma comparação, a previsão de crescimento em 2009 para o Brasil caiu de 3%, em novembro, para 1,8% agora.

O FMI disse, em dois relatórios, que a crise financeira atual está restringindo o crédito para empresas e consumidores, e esta é a razão principal das dificuldades atuais da economia global. O Fundo também elevou sua estimativa de perdas totais para os bancos e outras instituições financeiras para US$2,2 trilhões, por causa das hipotecas subprime (com alto risco de inadimplência) nos EUA. Em sua previsão de outubro, esse valor era de US$1,4 trilhão.

"Uma recuperação econômica não será possível até que a funcionalidade do setor financeiro seja restaurada e os mercados de crédito, destravados", disse o Fundo em seu relatório. A instituição revelou ainda que os governos devem tomar uma série de medidas para enfrentar a crise, inclusive injetar capital para tornar viáveis as instituições e retirar os ativos podres dos bancos.

Apesar dos esforços, tais como o pacote de US$700 bilhões do governo dos EUA e outras iniciativas similares no exterior, "os riscos da instabilidade financeira se intensificaram desde outubro", apontou o relatório.

Segundo a nova estimativa, a economia americana vai encolher 1,6%, contra a previsão feita em novembro de recuo de 0,7%. Já as 16 nações da zona do euro verão uma contração de suas economias de 2%, contra apenas 0,5% previsto em novembro. No Japão, a mesma comparação mostra piora de perspectiva de -0,2% para -2,6%, agora.

Para o FMI, governos têm que agir com rapidez
"A não ser que as severas restrições e incertezas financeiras sejam resolvidas, o círculo vicioso entre a atividade real e os mercados financeiros vai se intensificar, levando a ainda mais efeitos tóxicos no crescimento global", aponta o relatório.

O presidente americano, Barack Obama, negocia um pacote de estímulo, que inclui corte de impostos e mais investimento público em infraestrutura, para tentar ajudar a maior economia do mundo, que amarga uma recessão há 13 meses, a voltar a crescer. O pacote passou ontem na Câmara, enxugado de US$825 milhões para US$819 milhões, e deve seguir para o Senado semana que vem.

O Banco Central Europeu (BCE) cortou sua taxa básica de juros em mais da metade desde o início de outubro, para 2%. Os governos também estão começando a flexibilizar suas políticas fiscais, para tentar sair da pior recessão já vivida pelo bloco desde a sua criação.

O FMI afirmou que "o processo de reestruturação pode exigir dinheiro do contribuinte. Para o Fundo, os governos devem agir com rapidez para recapitalizar os mercados e eliminar os papéis podres.

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1223&portal=

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Battisti, uma questão italiana

Roberto Cotroneo *
Por:
L'Unità & Gramsci e o Brasil.

Não há nada a fazer, o caso Cesare Battisti não é mais um problema diplomático entre Itália e Brasil, está se tornando algo muito mais grave. Hoje [27 de janeiro], o embaixador italiano no Brasil voltará à Itália para consultas. É um ato duríssimo e sob certos aspectos clamoroso. Neste momento, a tensão entre os dois países, com uma longa tradição de boas relações diplomáticas, parece pelo menos surpreendente. Nesta altura, Batisti certamente terminará como refugiado político no Brasil, porque nenhum país no mundo expõe-se com um parecer do seu presidente e depois recua das suas decisões. E é francamente impensável, sendo o Brasil uma das maiores potências do mundo, que a Itália interrompa as relações diplomáticas.

Mas não é no Brasil que a partir deste momento se joga a partida, mas sim na Itália. Porque o caso Battisti vai reexpor o nó da solução política sobre o terrorismo dos anos setenta na Itália. E é um nó que ninguém é capaz de cortar ou desatar. O que fazer? Aceitar que um país soberano e importante conceda e legitime os homicídios de Battisti, reconhecendo que aqueles homicídios eram só a parte mais extrema e violenta de uma guerra civil, de um projeto político? Não era assim e não pode ser assim. O único argumento seria este: passados trinta anos, tendo mudado de vida, tornando-se um senhor que vive como escritor, que sentido tem reabrir um caso do gênero? Pode-se não estar de acordo, mas tem uma lógica.

Pena, e aqui está de fato o problema, que Battisti não peça uma solução política com base numa reflexão dolorosa e lúcida sobre a luta armada. Todos sabemos que jamais disse uma só palavra sobre suas vítimas, jamais pediu desculpas aos familiares, mas de algum modo, por conta deste caso, tornou-se um testimonial da inevitabilidade da luta armada na Itália e do fato de que esta luta armada podia levar ao homicídio.

Tudo isso é realmente inaceitável, e o é ainda mais porque avalizado por um país soberano, importante, entre os maiores do mundo. Aceitar esta decisão significa uma derrota para todos nós, e talvez algo mais: implica a idéia de que pegar em armas contra um país, contra toda uma sociedade civil, contra cidadãos comuns, pode ser um mal inevitável ou, pior, uma necessidade. O caso Battisti afasta para sempre do nosso cenário a solução política sobre o terrorismo dos anos setenta, faz-nos recuar, nos aniquila. Não servem mais para nada anos e anos de reflexões de todos os protagonistas sobre a luta armada na Itália, as palavras de perdão que dirigiram aos familiares das vítimas, o arrependimento autêntico de quem viveu aqueles anos e provocou vítimas, a reflexão crítica dos que se dissociaram da luta armada ou até de quem quis acertar até o fim suas contas com a justiça. Está tudo cancelado, naquele sorriso zombeteiro que Battisti mostra diante dos flashes dos fotógrafos.

* Roberto Cotroneo é jornalista de L'Unità, que foi durante décadas o orgão oficial do Partido Comunista Italiano.

O caso Cesare Battisti

Almir Pazzianotto Pinto
Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Ao leigo, relevam-se juízos ligeiros e apaixonados sobre complexas questões de direito civil, trabalhista, penal e internacional. Aos que se dedicam à ciência jurídica, e dela fazem profissão de fé, jamais. Cesare Battisti pertence à espécie daqueles que atraem a solidariedade do esquerdismo mais extremado, pois é um dos seus. Fosse alguém sem tumultuado passado político, teria permanecido no anonimato desde o instante em que se viu identificado e preso pela Polícia Federal, até o momento da devolução ao país de origem.

Afinal, quem é a lombrosiana figura que tantos cuidados desperta no governo petista? Como todos os brasileiros, tomei conhecimento daquilo que tem sido divulgado pela imprensa, ou está à nossa disposição na internet. Cesare Battisti nasceu em Sermoneta, pequena comunidade da região de Lazio, na Itália central, em 1954. Abandonou a escola em 1971 e, desde então, teria sido recolhido várias vezes, como ladrão e autor de outros delitos. Libertado em 1976, ingressou no grupo terrorista Proletários Armados do Comunismo (PAC), surgido das Brigadas Vermelhas. O termo armados desnuda a índole dos quadrilheiros.

Acusado da morte de quatro pessoas — Antonio Santoro, agente penitenciário; Pierluigi Torregiani, joalheiro; Livio Sabatini, açougueiro; e Andréa Campagna, policial —, a primeira assassinada em 1976 e as demais em 1979, Cesare Battisti foi condenado à prisão perpétua. Por ser fugitivo, o julgamento dos dois últimos crimes correu-lhe à revelia, recurso processual legítimo, adotado em nossa lei.

Durante os anos de fuga, o criminoso percorreu diversos países, para, afinal, refugiar-se no Brasil, até ser localizado e preso em 2007. Antecipando-se à decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o pedido de extradição formulado pela Itália, o ministro da Justiça, Tarso Genro, conferiu a Cesare Battisti o status de asilado político.

O que sei sobre o perigoso indivíduo é o que acabam de ler. Dois ângulos da polêmica questão, sinto-me apto a analisar, porque independem de consulta aos autos do processo, e envolvem fatos incontroversos. Um deles tem tudo a ver com nossa Constituição, que dedica à matéria os incisos LI e LII do art. 5º. O primeiro prescreve que não se extraditará brasileiro nato; o segundo veda a extradição de estrangeiro “por crime político ou de opinião”. Afastada por razoes óbvias a primeira hipótese, ao caso Batttisti não cabe o benefício da segunda.

Crimes políticos foram os que vitimaram o imperador Júlio César, em 44 a.C. e Aldo Moro, sequestrado e executado pelas Brigadas Vermelhas, em 1978. Qualificar como de cunho político a morte, a frio e a tiros, do agente penitenciário, do joalheiro, do açougueiro e do policial, significa rebaixar a dimensão da incomum figura delituosa, e usá-la como pretexto para acoitar perigoso facínora. Salvatore Giuliano, o bandido que aterrorizou a Sicília, teria sido criminoso político? A Máfia e a Camorra, quando trucidam juízes e policiais, por discordarem das condenações, cometem crimes políticos?

Em situações especialíssimas pode ocorrer certa dificuldade na distinção do crime político, do crime comum. Ambos, porém, pertencem ao submundo dos sequestros, do terror, dos explosivos, das armas de fogo. Qualquer que seja o perfil ideológico de quem analisa o caso, Cesare Battisti, matador de cidadãos de bem, não se encaixa na estreita moldura do criminoso político.

Teria sido vítima de erro judicial? Se disso é que se cogita, qual a competência do governo brasileiro para anular decisões do Poder Judiciário italiano? Estaria equiparando a Itália a regimes ditatoriais, que perseguem, prendem e calam os opositores? Do fascismo, aqui sobrevivente no corporativismo sindical, a Itália nada preserva. É exemplo de república democrática, onde reina a liberdade de opinião, vigora o princípio do devido processo legal e se assegura amplo direito de defesa aos acusados.

O Brasil é famoso pela impunidade. Réus confessos e condenados transitam pelas ruas, aterrorizando a população indefesa. Espero que ao governo não ocorra a idéia de garantir a liberdade de criminosos que nos procuram para se ocultar, como fez Cesare Battisti. Criminosos?

Bastam os nossos.

O caso Battisti

Janio de Freitas
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O aumento da animosidade tem a ver com a má condução do caso, em relação ao governo da Itália, pelo governo do Brasil

O CASO DO italiano Cesare Battisti, entre o refúgio e a extradição, tomou a um só tempo o melhor e o pior caminhos. O governo, porém, vai mal nos dois.

A decisão do governo italiano de chamar a Roma o seu embaixador no Brasil, "para consultas" como consta no jargão diplomático, evidencia que a reação deixou de ser apenas palavrosa na Itália, ante o status de refugiado concedido a Battisti pelo governo brasileiro. É o governo Berlusconi que entra e assume o problema, em nome da contestada Justiça italiana que sentenciara Battisti à prisão perpétua, sob acusação de autoria e coautoria em quatro homicídios alegadamente políticos.

O aumento da animosidade tem a ver com a má condução do caso, em relação ao governo italiano, pelo governo brasileiro. Desde as primeiras reações pessoais de parlamentares e integrantes do governo em Roma, com farta repercussão na imprensa e TV, em vez de explicações e justificativas o governo brasileiro dirigiu-lhes poucas e impróprias palavras.

Sempre com base em duas ideias: a concessão de refúgio feita pelo ministro Tarso Genro "foi um ato legal" e "de soberania brasileira". Duas ideias básicas de um parecer do jurista Dalmo Dallari favorável ao pedido de Battisti e, tudo indica, bastante influente na concessão assinada pelo ministro da Justiça com a cobertura prévia de Lula.

A soberania do Brasil para decidir, entre o refúgio de Battisti e a extradição pedida pela Itália, tornou-se o argumento também de Lula, em suas referências públicas ao caso e na resposta à carta que lhe enviara o presidente italiano, Giorgio Napolitano: "Foi um ato de soberania do Estado Brasileiro", respondeu Lula.

Os ares de resposta altiva nem sequer fazem, no caso, uma resposta à reação italiana. Em nenhum momento a soberania brasileira foi posta em questão nas queixas italianas, fossem pessoais ou oficiais. Os italianos manifestam, desde o início, contrariedade ou inconformismo com a rejeição brasileira ao inquérito da polícia e do Ministério Público e à decisão da Justiça da Itália. Reação esperável e de compreensão sem maior dificuldade. Tanto que, aqui mesmo, a Procuradoria Geral da República e o Conare (Comitê Nacional para Refugiados) recomendaram ao ministro da Justiça a extradição, em concordância com o inquérito e a sentença judicial italiana.

Assim como a soberania não foi questionada, também não o foi o enquadramento legal da atitude de Tarso Genro. Nem ao menos para lembrar que um ato não é correto e bom só por refletir soberania e não ser ilegal. Os exemplos em contrário enchem a pequena e a grande histórias.

O primeiro-ministro Berlusconi e seu governo são destemperados o suficiente para tornar imprevisíveis os futuros lances do caso Battisti. O outro caminho tomado pelo problema oferece, no entanto, uma solução. Primeiro, por levar o caso para o conveniente julgamento coletivo do Supremo Tribunal Federal, entre refúgio e extradição. Além disso, porque a decisão do STF estará baseada em arrazoados que, se em maioria confirmarem o refúgio para Cesare Battisti, darão ao governo e aos queixosos italianos a resposta adequada que não receberam do governo brasileiro.

Os argumentos de Tarso Genro

Cláudio Gonçalves Couto
DEU NO VALOR ECONÔMICO

O imbróglio em torno da concessão do asilo político ao ex-guerrilheiro italiano, Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua em seu país, assumiu nos últimos dias tons mais dramáticos e, ao mesmo tempo, ares de ópera bufa. A dramaticidade ficou por conta da convocação para consultas do embaixador italiano no Brasil - um ato diplomático que se toma em momentos de tensão entre duas nações, como demonstração de grave contrariedade. Já o lado bufão foi-nos propiciado pelo Sr. Alfredo Mantica, subsecretário italiano de Relações Exteriores, que como forma de retaliação tentou anular o amistoso entre os selecionados de futebol dos dois países, marcado para o dia 10 de fevereiro; mas felizmente alguém foi mais sensato e não perderemos esse grande jogo.

Num momento próximo o governo Lula deverá avaliar se valeu a pena todo o desgaste que este episódio provocou ao relacionamento com um parceiro como a Itália - país democrático e com profundos laços estabelecidos conosco, particularmente em decorrência do profundo imbricamento cultural que a imigração italiana nos proporcionou. Estragos como este não se consertam também com alegações que apresentam meras constatações de fatos como se fossem justificativas políticas. Neste sentido, não foi das mais felizes a afirmação, feita pelo presidente Lula, de que a concessão do asilo foi um ato soberano do Brasil, cuja aceitação seria a única alternativa disponível aos italianos. Ainda mais porque um dos principais argumentos que o ministro Tarso Genro utilizou para embasar sua decisão de concessão do asilo foi uma crítica ao funcionamento dos sistemas judicial e político italiano: Battisti não teria tido condições de se defender adequadamente por vícios de processo e pelo clima político na Itália à época em que foi julgado. Ora, este tipo de arrazoado é uma evidente intromissão em assuntos internos da Itália e, portanto, um desrespeito à sua soberania. Quer dizer que nosso ministro da Justiça pode avaliar a qualidade da justiça e da democracia italianas, mas a Itália deve aceitar passivamente nossas decisões soberanas? Tanto pior diante do reconhecimento, pelo próprio ministro Genro, de que a Itália é um Estado democrático de direito. Caso não fosse, talvez tivéssemos justificativas para a concessão do asilo, pois haveria aí uma assimetria no tratamento que regimes distintos - um, democrático; outro, não - concedem a seus cidadãos.

Todavia, o debate político não se encerrou na discussão sobre o caso específico de Battisti. Diante das críticas, o ministro da Justiça, Tarso Genro, saiu-se com esta explicação:

- No momento em que a grande bandeira do neoliberalismo sucumbiu, que era a nossa submissão total ao capital financeiro e às suas necessidades desregulamentadoras, os próprios promotores e ideólogos desse modelo precisavam de um outro argumento para fazer oposição e se apegaram nesse do Battisti. Não é de pasmar que 99% dessas pessoas defendem impunidade para os torturadores. As mesmas pessoas são favoráveis que se entregue o senhor Battisti, mesmo o Brasil não tendo entregue outras pessoas que estavam na mesma situação - acrescentou. (http://oglobo.globo.com, 26/01/2009).

Aqui o ministro mistura várias coisas e, para piorar, recorre a uma falácia clássica, o argumento "ad hominem" - aquele que busca desqualificar as idéias proferidas pelo contendor num debate em função do pertencimento dele a um grupo, pelas suas convicções ou simplesmente por ele ser quem é. No caso, as críticas à sua decisão seriam viciadas porque proferidas por neoliberais. Será mesmo? Seriam também neoliberais os membros do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) que não recomendaram a concessão do asilo? E o procurador-geral da República?

Também é problemática a comparação que Genro estabelece com a defesa da não-punição de torturadores que estariam protegidos pela Lei da Anistia, cuja revisão é defendida pelo ministro. Tarso Genro compara coisas distintas: no caso de Battisti, houve o uso de violência na vigência de um Estado democrático de direito e a condenação daquele que a usou na vigência desse mesmo Estado. No caso dos torturadores do regime militar autoritário, houve um processo de transição para a democracia que teve como peça chave um pacto, que concedeu anistia aos que usaram da violência dos dois lados do conflito; rever esta lei agora seria trair esse pacto. Portanto, defender simultaneamente a punição a Battisti e a preservação da anistia aos torturadores (assim como aos que pegaram em armas contra o regime autoritário) significa defender o respeito a regras democráticas e a pactos políticos que permitiram a democratização. Isto não tem a ver nem com "neoliberalismo" (idéia fora do lugar nesta discussão), nem com uma idéia de justiça parcial - "aos amigos tudo, aos inimigos a lei".

É também inaceitável o argumento do ministro Genro, de que a concessão do asilo a Battisti segue a mesma lógica dos anteriormente concedidos aos paraguaios Alfredo Stroessner e Lino Oviedo, envolvidos respectivamente com uma ditadura longeva e com atos de violência política.

Em primeiro lugar porque, em ambos os casos, a concessão do asilo obedecia aos interesses estratégicos brasileiros, de receber a ambos como forma de facilitar a pacificação política do país vizinho. Em segundo lugar porque, se por acaso essas concessões de asilo tivessem se dado de forma condenável (proteção a quem cometeu crimes contra a humanidade), não caberia justificar a atual concessão do resguardo a Battisti com base nelas. Tanto mais difícil de aceitar a decisão do ministro da Justiça se consideramos seu histórico recente: lembremos o tão mal explicado episódio dos boxeadores cubanos, que após pedir asilo teriam mudado de idéia e pedido para regressar a seu país, mas pouco tempo depois fugiram de Cuba para a Alemanha, tendo lá declarado que foram forçados pelas autoridades brasileiras a voltar para Cuba. Em quem deveríamos acreditar nesse outro episódio?

Por estas razões, e para além do prejuízo diplomático que este episódio acarreta, fica difícil acreditar que os critérios do ministro Genro sejam outros que não a distinção dos que cometem atos de violência por estarem à direita ou à esquerda. Aos torturadores direitistas da ditadura militar, mesmo que anistiados num pacto de transição, cabe a punição; ao guerrilheiro esquerdista Battisti, mesmo que tendo violentado uma democracia, cabe o perdão. De que justiça se trata?

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da PUC-SP e da FGV-SP.

Esquerda, volver!

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


O Palácio do Planalto trabalha para consolidar a candidatura de Dilma como a herdeira de um projeto nacional-desenvolvimentista, cuja pedra de toque é a forte intervenção do Estado na economia

A presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Fórum Social Mundial, em Belém, onde pululam representantes de movimentos sociais, de minorias e das esquerdas de todos os matizes, é um gesto simbólico. Resgata para o governo velhas bandeiras de esquerda exumadas pelo PT, com objetivo de vestir de vermelho a candidatura da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Pela mesma razão, como uma inhambu que recusa convite de jacu, Lula também esnoba a reunião do Fórum Econômico Mundial, em Davos. Quer se livrar do “mais do mesmo”, a política econômica-financeira que encampou e está sendo volatilizada pela “globalização”.

Contradições

Diante do impacto da crise mundial, ficou difícil manter o equilíbrio entre os grupos de interesse em conflito dentro do governo. Os choques são reveladores. Os ministros da Agricultura, Reinhold Stephanes, e o do Meio Ambiente, Carlos Minc, batem boca pela tevê. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, trocam farpas nas entrevistas coletivas como num duelo de floretes. O ministro da Justiça, Tarso Genro, virou mais uma pedra no sapato do Itamaraty. O ministro do Trabalho, Carlos Lupi, fala grosso contra as demissões, enquanto seu colega do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Miguel Jorge, zela pelas grandes empresas em dificuldades. O fogo amigo do ministro de Assuntos Estratégicos , Mangabeira Unger, com suas críticas ao “pobrismo”, atinge em cheio o Bolsa Família. E o ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, aperta o cerco contra o governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), amigo dileto de Lula.

Velhas contradições hibernavam no governo sobre o manto da política de compromisso. Agora, despertaram com o barulho da crise. Num governo de ampla coalizão, o discurso de união nacional, cujo leito natural é a velha política de conciliação, se encaixaria como uma luva para manter os parceiros coesos. Lula até cede, constrangido, o controle do Congresso Nacional ao PMDB, o partido de patronato político brasileiro. Essa é uma estratégia de acomodação, que garante a estabilidade política do governo, mas também facilita a vitoria da oposição na sucessão de 2010. Não é esse, porém, o desejo de Lula.

Guinada

O Palácio do Planalto trabalha para consolidar a candidatura de Dilma como a herdeira de um projeto nacional-desenvolvimentista, cuja pedra de toque é a forte intervenção do Estado na economia e a existência de políticas sociais voltadas para as parcelas mais pobres da população.

Seu lastro era a expansão da economia. Com o apoio das centrais sindicais e os instrumentos de que dispõe, como a Petrobras, as agências reguladoras e os fundos de pensão, o governo Lula atuava no sentido de reorganizar o capitalismo brasileiro, numa parceria do setor público com os grandes oligopólios privados, alguns dos quais fortalecidos graças às verbas federais, como ocorre na telefonia. Um modelo diferente daquele que foi esboçado com as privatizações do governo de FHC, cujo objetivo foi acabar com a inflação e se integrar à economia globalizada.

A crise financeira mundial fortaleceu ideologicamente esse projeto do governo, dando à candidatura de Dilma Rousseff um conteúdo programático que vai muito além da simples execução das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em contrapartida, na política, a convivência entre seus agentes econômicos e sociais se tornou mais difícil. O ambiente de retração econômica esgarça as relações entre seus atores e faz emergir demandas antagônicas, que dificultam a acomodação. Como manter a política de elevação do salário real com o desemprego batendo à porta e os empresários propondo a redução da jornada de trabalho, dos salários e a flexibilização da legislação trabalhista? Como financiar as fusões de grandes empresas e as exportações quando o crédito para a compra de bens de consumo simplesmente sumiu? A agenda da crise é outra, reflete contradições que estavam adormecidas.

Pressionado, o governo deriva à esquerda, para preservar suas bases sociais. Os aliados mais importantes, entretanto, preferem uma política centrista.

O que não faz sentido

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Noves fora o já notório senso de (des) proporção do ministro da Justiça, Tarso Genro, ele se faz lógico quando assegura que o sistema político brasileiro não desaba se o PMDB ganhar as presidências da Câmara e do Senado.

De fato, nada vai acontecer que abale o anacronismo de uma engrenagem tão enferrujada. A organização (no sentido empresarial) fica no comando da máquina de produzir fisiologismo em que se transformou o Congresso Nacional, enquanto PT e PSDB vão tratar da sucessão presidencial.

Cada um com seu cada qual de modo a que as tarefas e os quinhões fiquem distribuídos como sempre. Ganhando a presidência da República PT ou PSDB, o PMDB estará cumprindo o seu destino do camarote.

Michel Temer da presidência da Câmara, José Sarney no comando do Senado, um elogio ao mesmo, zero de possibilidade de algo se modernizar. Portanto, o que menos pode haver é ruptura, abalos contundentes.

Pois se é isso, se o ministro da Justiça ainda assim vê necessidade de enunciar o óbvio, se o presidente do PT quase admite que o candidato do partido à presidência do Senado concorre por honra da firma, se o PT acha mesmo que é praticamente impossível ganhar a parada de José Sarney, por que a confusão, por que insiste em concorrer?

Só pelo prazer do conflito? Não faz sentido. Se o partido obedece a Lula e cala sobre candidaturas à Presidência em 2010, acomodando-se sob o guarda-chuva Dilma Rousseff, não é de se imaginar que contrarie a vontade do chefe porque resolveu fazer afirmação partidária com a candidatura de Tião Viana ao Senado.

Da mesma forma foge à percepção a razão pela qual o PT mantém acesa a chama da possibilidade de “traição” do acordo firmado com o PMDB na Câmara, se oficialmente seu presidente garante os votos da bancada em Michel Temer.

Caso seja uma jogada, de duas uma: ou está muito bem engendrada e, no fim, revelar-se-á genial ou por algum motivo o PT resolveu dar ao PMDB um pretexto para briga, à falta de algo melhor para fazer em plena crise econômica e início de um processo eleitoral que pode significar a volta para a oposição.

Uma terceira hipótese é a de que o desentendimento seja apenas um desentendimento, fruto de inexperiência, desconexão, ausência de rumo. É improvável, porém, visto que suas excelências não brincam nesse tipo de serviço.

São ciosas do poder. José Sarney, por exemplo. Não negaria a candidatura peremptoriamente para depois entrar na disputa apenas, como dizem seus - nessa altura, mais prudente qualificá-los como supostos - adversários dentro do partido, porque foi convencido por Renan Calheiros a confrontar.

Aos 80 anos de idade, uma Presidência da República e mais de cinco décadas dedicadas ao exitoso ofício de dar nó em pingo d’água, é difícil acreditar que José Sarney possa ser convencido por alguém a entrar numa enrascada da envergadura de uma rasteira no presidente da República.

Presidente este com 80% de popularidade e dois anos de mandato pela frente. Não faz o menor sentido, mas algum sentido há de haver.

Aparências

Reunião ministerial marcada para 2 de fevereiro para “discutir a crise financeira” não influi nos efeitos da crise nem contribui para o real objetivo: dar a impressão de que o governo labuta, distanciado das eleições das novas Mesas da Câmara e do Senado.

Um lance é inútil e o outro, por pueril, resulta ineficaz.

No limite

A proposta do subsecretário de Relações Exteriores da Itália, Alfredo Mantica, de cancelamento do jogo amistoso com o Brasil em protesto contra o refúgio concedido a Cesare Battisti, põe o governo italiano na fronteira do perigoso terreno da boçalidade.

Daí para cair no ridículo e perder a razão é um passo.

Estatutos

Talvez os ministros Reinhold Stephanes, da Agricultura, e Carlos Minc, do Meio Ambiente, não saibam, mas o Código de Ética da Alta Administração Pública proíbe “a crítica pública sobre a honorabilidade ou desempenho funcional de qualquer autoridade do Executivo”.

É provável que os ministros desconheçam as normas porque muito possivelmente nem saibam que, no ato das respectivas posses, juraram obediência ao código.

Dois pesos

É a diferença entre o compromisso e o falta de compromisso. A ministra Dilma Rousseff não participará do Fórum Econômico Mundial em Davos, mas fará palestra no figurino de candidata à Presidência da República em Belém, no Fórum Social Mundial.

Na Suíça não caberia uma performance; seria preciso que Dilma fosse, sob todas circunstâncias, a candidata do presidente Lula à sucessão e assim, sacramentada, parecesse ao mundo onde a objetividade dos fatos fala mais alto que o voluntarismo ideológico.

A democracia, afinal, ‘pegou’

Luiz Weis
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Parece fora de dúvida que existe uma relação de causa e efeito entre a melhora das condições de vida do povo nos últimos anos e a adesão recorde à democracia, registrada pelo Datafolha na mais recente de suas sondagens sobre o regime preferido pelos brasileiros. Hoje são 61% os que consideram a democracia a melhor forma de governo, sempre. Para 19% tanto faz e apenas 11% acham que “às vezes” a ditadura pode ser uma boa.

Quando o instituto começou a pesquisar o assunto, em 1989, pouco antes da primeira eleição direta para presidente em três décadas, os democratas eram 43%. Nos anos seguintes, o índice ganhou um punhado de pontos, mas só a partir de 2003 passaria a representar a maioria absoluta das opiniões. Os resultados eram ainda mais desencorajadores na série do instituto chileno Latinobarómetro, indicando que o apreço dos brasileiros pela democracia era um dos mais baixos no continente.

“A população se deu conta de que a democracia política pode gerar democracia social”, interpreta o historiador José Murilo de Carvalho, citado pela Folha de S.Paulo. “Os pobres estão percebendo que o voto pode alterar positivamente a política pública e não apenas gerar vantagens individuais.” O argumento bate com o andar dos números. Foi entre os que só cursaram o ensino fundamental e entre aqueles com renda de até cinco salários que o apoio à democracia aumentou para valer: de 49% para 56% no primeiro caso e de 53% para 61% no segundo.

Fosse isso e nada mais, talvez não houvesse muito a comemorar. Se a preferência pelo regime só dependesse do estado do bolso de cada qual, não teria cabimento considerar consolidada na sociedade a democracia como valor político. Mas é exatamente a firmeza de sua implantação que a pesquisa atesta. Sim, muita gente pode ter ficado “mais democrata” por entender que, graças ao voto, elegeu um presidente que fez a vida melhorar. Essa talvez não seja, porém, a principal explicação para a boa nova.

A sua face mais visível é a incorporação do voto - a primeira palavra que ocorre a 11 em cada 10 pessoas quando se lhes pergunta o que entendem por democracia - aos usos e costumes nacionais. Desde 1992, a cada dois anos o brasileiro sai de casa para escolher do prefeito ao presidente, do vereador ao senador. E se pegou gosto pela coisa é por ter-se dado conta, com o passar das eleições, de que o jogo é à vera: apesar de todas as lambanças, o sistema funciona.

Essa percepção se cristalizou a ponto de, pela primeira vez, a maioria se declarar favorável ao voto obrigatório. São 53% os seus defensores - chegando, não está claro por quê, a 60% na população que vive com até dois salários mínimos e a 59% entre os mais jovens. De toda maneira, se o ato de votar fosse visto antes como um encargo do que como um direito - e, principalmente, uma oportunidade -, o voto facultativo continuaria prevalecendo na série iniciada pelo Datafolha em 1994.

Mas por que “o sistema funciona”? Porque, tudo indica, tem raízes fundas na cultura política nacional. Desde o Império, as elites decidiram e se habituaram a tirar a limpo as suas diferenças nas urnas - embora tardasse uma eternidade até que elas se tornassem limpas, competitivas, regulares e universais. Voto censitário, a bico de pena, de cabresto, restrito, indireto, manipulado, roubado, o que se queira, o fato é que só durante o Estado Novo, de 1937 a 1945, não houve eleições no Brasil. Nem nos 21 anos da ditadura militar o voto popular foi de todo abolido.

Cientistas políticos chamam isso de “institucionalização do sufrágio como mecanismo preferencial de resolução da disputa política”. Pode soar pedante, mas pouca coisa não é - e basta olhar em volta para entender o quanto é incomum essa tradição brasileira, com todos os seus vícios, deformações e adulteração da vontade da maioria. O padrão predominante na história da América Latina é o da institucionalização da força, não do voto, como mecanismo preferencial, etc., etc.

Às vezes é constrangedor lembrar que o Brasil não conheceu período de estabilidade democrática tão prolongado como este, que começou quando o último dos generais de 1964, aquele que preferia cheiro de cavalo ao do povo, saiu pelos fundos do Palácio do Planalto, em 1985. Ainda assim, um luxo, comparado com a folha corrida dos vizinhos, salvo as luminosas exceções do Uruguai (à parte Bordaberry), Chile (à parte Pinochet) e Costa Rica (à parte ninguém).

Ainda não é tudo. Contrastando com a vizinhança, são raros os episódios em que forças políticas brasileiras apostaram em atirar o povo contra as instituições para chegar lá ou lá se manter.

Quem são os equivalentes nacionais de Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa, senhor e senhora Kirchner e, leva jeito, Fernando Lugo? E aqui se percebe o logro embutido nas acusações que governo e oposição têm trocado entre si. Ainda bem que elas não resistem a um sopro de realidade.

A direita passou a vida e a atual temporada no deserto chamando Lula e o PT de populistas.
Poderiam ter sido, num universo paralelo, mas nunca foram neste em que se vive. O maior partido popular da história brasileira, com todas as suas toneladas de denúncias retóricas contra “isso que está aí”, quando o seu líder máximo ainda estava ali, e apesar dos arreganhos de festim do “Fora FHC”, jogou invariavelmente a cartada democrática, a da via eleitoral, como se falava quando a esquerda imaginava que pudesse haver outra, não menos legítima.

Lula, é verdade, acusava o Congresso de abrigar “300 picaretas”. Para fechá-lo? Ou para eleger mais companheiros? Mas o que fez o lulismo depois que entraram em cena, pela ordem, o mensalão e o dossiê? Acusou a oposição (e a mídia) de golpista, sabendo que não tinha bala na agulha, muito menos vontade de sacar para ver. Afinal, o próprio pefelê, saído das entranhas da ditadura, entrou no jogo democrático e hoje se chama “Democratas”.

Luiz Weis é jornalista

À sombra de Obama

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


DAVOS. O grande balizador de posições dos debates na reunião anual do Fórum Econômico Mundial, que se realiza na sofisticada estação de esportes de inverno de Davos, na Suíça, será o novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Embora ausente do encontro, estará representado pelo presidente de seu Conselho Nacional de Economia, Larry Summers, e praticamente todos os temas de destaque do evento, que supostamente define o panorama econômico do ano que se inicia e traça as perspectivas futuras do capitalismo, têm a ação do novo governo americano como ponto de partida.

Com o tema deste ano "Definindo o mundo pós-crise", o encontro que começa hoje tem tudo para ser dos mais importantes já realizados, inclusive porque a crise econômica que já estava desenhada em janeiro do ano passado não foi detectada pelo Fórum do ano anterior, e se impôs aos debates oficiais quase que de maneira paralela.

Naquela ocasião, o tema central era "O poder da inovação cooperativa", como se o mundo não caminhasse para o caos econômico em que mergulhou.

Os "senhores do universo", cerca de dois mil executivos, empresários, ministros, profissionais ligados à ciência e tecnologia, dirigentes de ONGs, jornalistas, sindicalistas, reitores das principais universidades do mundo, e nada menos que 41 chefes de Estado e de governo estarão tentando definir o que será do mundo após a crise econômica e, antes disso, como sair dela sem comprometer a credibilidade do capitalismo.

A agenda imediata vai das reformas econômicas à mudança climática e aos combustíveis alternativos. A reunião deste ano será a maior já realizada, diante da enormidade dos desafios que se apresentam.

Uma reunião preparatória foi feita em novembro, em Dubai, já em plena vigência da crise econômica internacional, cujo detonador foi a quebra do banco Lehman Brothers em setembro - com 700 membros de 69 conselhos de agendas globais para definir a agenda do encontro anual do Fórum Econômico.

Uma primeira conclusão é a de que a complexidade e interdependência não são apenas características da globalização, mas também as raízes da crise sistêmica que estamos vivenciando.

Os organizadores do encontro consideram que, com a mudança radical do ambiente internacional diante da crise econômica, países, empresas e comunidades estão sendo forçados a rever seus objetivos de futuro e repensar as estratégias, e essa mudança de rumo é o ponto de partida para os debates deste ano.

A partir de agora, as soluções futuras terão que ser desenvolvidas de maneira interdisciplinar e abrangente, que os especialistas em gestão empresarial chamam de "visão holística", para assegurar que os interesses dos investidores e acionistas estão protegidos.

Será imperativo, de acordo com os organizadores de Davos, saber "ligar os pontos" para entender a relação entre os assuntos, interesses e as instituições para chegar a soluções de longo termo.

Em vários pontos dos temas centrais, surge sempre a idéia de que a crise econômica internacional provou que as mudanças necessárias, tanto à regulamentação do mercado financeiro quanto à recuperação da confiança no sistema capitalista como um todo, dependerá de uma mudança nos fóruns internacionais, que terão que incluir o G-20, grupo formado para uma reunião em Washington no início da crise e que representaria os principais países do mundo, entre desenvolvidos e emergentes.

Um ou outro país pode vir a ser substituído - a Espanha, por exemplo, participou em caráter especial e deveria ser parte permanente, enquanto a Argentina não teria razão para fazer parte de grupo tão seleto - mas a ampliação do G-8 para um grupo maior, entre 15 e 20 países, se impõe neste momento de crise interligada.

O tema "Definindo o mundo pós-crise" será explorado em seis caminhos:

- Estabilidade e crescimento - Como promover a estabilidade no sistema financeiro e reviver o crescimento econômico global.

- Governança efetiva - Como assegurar a governança efetiva de longo prazo em termos globais, nacionais e regionais.

- Sustentabilidade e desenvolvimento - Como enfrentar o desafio do desenvolvimento sustentável.

- Valores e liderança - Definir os princípios dos valores e da liderança para o mundo pós-crise.

- A próxima onda - Como aproveitar a próxima onda de crescimento através da inovação, ciência e tecnologia.

- O impacto da indústria - Entender as implicações da crise no modelo de negócio industrial.

A propósito da esdrúxula decisão do ministro da Justiça, Tarso Genro, de conceder refúgio político ao ex-terrorista italiano Cesare Battisti, o procurador regional da República aposentado e advogado criminal Cosmo Ferreira lembra que nem mesmo a paternidade de um filho brasileiro, ao contrário do que sugere minha coluna de ontem, impede a extradição do estrangeiro (artigo 77, da lei 6.815, de 19 de agosto de 1980 - Estatuto dos Estrangeiros), mas, sim, a sua expulsão (artigo 75, inciso II, alínea b).

Buscar respaldo na negativa de extradição de Salvatore Cacciola pela Itália, para endossar a decisão do Tarso Genro, "é má fé ou burrice", diz ele, pois os Estados, regra geral, não extraditam seus nacionais.

A decisão de dar refúgio a Cesare Battisti implica afirmar que o Estado democrático italiano persegue seus nacionais "por suas opiniões políticas" e, ainda, que Battisti teria sofrido uma condenação injusta motivada por suas convicções políticas.

Não corresponde à "soberania brasileira" avaliar decisões do Poder Judiciário de um país democrático.

A medida apenas explicita a distorção dos critérios do governo Lula, que considera que a Venezuela tem democracia demais e a Itália, democracia de menos.

Bancos estatais seguram o crédito

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Qualidade do endividamento da pessoa física piora, "spread" sobe ainda mais e bancos privados batem em retirada

O AUMENTO dos recursos emprestados à praça em dezembro foi quase todo devido à atuação dos bancos estatais. O custo de captação de dinheiro pelos bancos, na média, foi menor do que antes da explosão da crise, em agosto, mas os juros continuam a subir. Entre as pessoas físicas, aumentou o endividamento em linhas de crédito de custo catastrófico, como é o caso do cheque especial e o da rolagem de dívidas no cartão de crédito.

É o que se depreende dos dados divulgados ontem pelo Banco Central sobre as operações de crédito do setor financeiro. O panorama do crédito em dezembro, em quase toda parte, é ruim, embora a atuação dos bancos públicos possa não ser tão arriscada e/ou danosa quanto os mercadistas mais afoitos apregoam.

O estoque de crédito para as pessoas jurídicas, o total de dinheiro emprestado e ainda por pagar, cresceu pouco em dezembro. Foi o menor incremento do ano, desconsiderados os habitualmente mais fracos janeiro e fevereiro. E cerca de 77,5% do incremento do estoque de novembro para dezembro caiu na conta do setor financeiro público. Na média do ano "pré-crise", até setembro, o aumento médio mensal do estoque de crédito na conta do setor público era de 33,5%. O setor financeiro privado se retraiu demais.

A taxa média de juros para as pessoas físicas caiu de 58,2% ao ano para 58%. Pífio. Mas o "spread" cresceu. Desde agosto, os bancos pagam 1,6 ponto percentual a menos pelo dinheiro que emprestam à pessoa física. Mas a taxa que cobram subiu 5,9 pontos percentuais. Como os impostos não aumentaram e como o compulsório diminuiu, os bancos estão antecipando enorme inadimplência, que é a justificativa restante para o aumento do "spread". A ver.

O total de novos empréstimos concedidos às pessoas físicas cresceu R$ 3,8 bilhões -mas havia caído R$ 5,8 bilhões em outubro e novembro. A parcela de novos empréstimos nas linhas de cheque especial e cartão de crédito subiu para 68% do total de novas concessões de financiamentos -era de 62% em agosto. A fatia dos financiamentos para veículos caiu de 8,1% em agosto para 5,9% em dezembro. Caiu bem a qualidade do endividamento, pois.

A inadimplência subiu de fato entre pessoas físicas e, dadas as notícias sobre demissões, devem crescer mais. Mas entre as pessoas jurídicas tal indicador continua bem comportado. De certo modo, isso deveria atenuar, ao menos por ora, os temores quanto à atuação dos bancos públicos. A reação estereotipada diante da substituição do crédito dos bancos privados pelo oferecido pelos estatais em geral limita-se a observar que, sob pressão do governo, estatais podem fazer empréstimos ruins e que a conta acabe no Tesouro, em suma, dos contribuintes. Porém um exagero contracionista dos bancos privados pode provocar também danos generalizados.

O problema aí é dosar o contrapeso estatal. De resto, o BC pode checar a qualidade do crédito dos estatais. Enfim, não há como evitar a queda do crescimento; mas não se pode deixar a inércia do medo carregar o país para um resultado do PIB ruim demais. Saber a dose certa é que é dose. Mas deixar tudo na mão do mercado pode ser tão ruim quanto confiar no governo.