terça-feira, 16 de setembro de 2025

A força. Por Pedro Doria

O Globo

Não importa se Tyler Robinson é de direita ou de esquerda. Ele é movido a ódio

Existe uma razão para tanto a esquerda quanto a direita jogarem para o lado adversário o acusado do assassinato do ativista americano Charlie Kirk. É porque os sinais emitidos por Tyler Robinson, em sua vida, são mesmo confusos. Nas balas que estavam no rifle usado no crime havia inscrições como “Bella Ciao”, hino antifascista italiano, ou acenos em favor de pessoas trans. Ao mesmo tempo, ele vem de uma família profundamente trumpista, e em sua vida on-line está clara uma aproximação dos groypers, movimento de extremíssima direita. O certo é que Robinson, de 22 anos, é um gamer ativo nesses lugares da internet frequentados por muitos rapazes como ele. Solitários. Ressentidos. E, se paramos para reconhecer que ele simplesmente não tem ideologia definida, os sinais que emitiu podem nos trazer clareza não só sobre o assassinato, como também sobre o momento da política.

Está para sair na França em outubro “Foules ressentimentales: petite philosophie des trolls”, ou, numa tradução literal, “A massa ressentida, uma pequena filosofia dos trolls”. Nele, o filósofo pop Valentin Husson, de 37 anos, propõe uma interpretação original dos trolls e haters da internet. Em geral, os imaginamos como indivíduos solitários, moletom com capuz, comendo pizza e bebendo energético enquanto digitam em quartos escurecidos. A ideia de Husson é que os compreendemos melhor como uma massa de pessoas.

O ressentimento é um ódio que não encontra caminho para se exprimir. Aí é engolido, comprimido. Quando explode, explode de forma indiscriminada. É pura força destrutiva. Todos nós somos capazes de ter ressentimento, mas o que há hoje é algo um pouco diferente. O ódio, no passado, tinha foco. Era contra os judeus, ou contra a burguesia, ou contra a nobreza. Agora é difuso. Daí o apelo a grupos que ninguém nunca sabe bem quem representam. Donald Trump fala muito dos antifas, mas ninguém sabe quem são. Olavo de Carvalho se referia ao marxismo cultural — igualmente vago. À esquerda, não é diferente. Vai de slogans como “todo homem é um estuprador em potencial” aos fascistas, num mundo em que ninguém se diz fascista. O ódio dos radicais do passado era dirigido a grupos formados por pessoas facilmente reconhecíveis. O do presente é contra ideias genéricas demais. Colam em ninguém ou em quase todo mundo.

Na base desse ressentimento, que toma parte da população principalmente jovem e masculina, mas não apenas, há vazio e ansiedade. Total falta de perspectiva para o futuro. Sentem que vivem num mundo em que não há qualquer chance de construir uma vida e encontrar felicidade. Então querem destruir. A maneira fácil de dar vazão a essa raiva imensa é na forma de maldade on-line. Cancelar, atacar, expor. Nunca são movimentos individuais, mas sempre em grupo. Por vezes, mais raramente, esse movimento de organização on-line consegue mobilizar também no mundo real. Os coletes amarelos franceses atacaram o Arco do Triunfo. Os insurretos americanos, o Capitólio. Os “patriotas” brasileiros irromperam contra o Planalto, o Congresso e o Supremo. Sentem que as democracias promovem um mundo de que foram excluídos. Então é contra elas que agem.

Donald Trump e seu movimento cresceram justamente pela capacidade de explorar essa energia. Kirk explorava essa energia. O MBL, como Pablo Marçal, aqui no Brasil, vive de canalizar a mesma coisa. Os movimentos identitários, que existem apenas para promover cancelamentos, idem. O bolsonarismo, por evidente. Javier Milei, na Argentina. Porque a maneira mais fácil de o ressentimento gerar algum alívio para a dor é on-line. É partindo com raiva contra alguém. Mas esse é um alívio que dura muito pouco. Não faz passar a sensação profunda de impotência e o sentimento de exclusão.

O problema dessa força é que controlá-la é uma ilusão. Não importa se Tyler Robinson é de direita ou de esquerda. Ele é movido a ódio, e esse ódio cultivado nas entranhas da internet pode até ser dirigido por algum tempo. Mas, assim como o ataque diário a alguém na internet não sacia, não alivia, não faz parar de doer, a destruição de prédios muito menos. Alguns buscarão ações de impacto maior.

O ódio pode ter ficado sem direção no mundo de hoje. Ele segue destruindo vidas como fazia no passado.

 

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