O Globo
Quem não assume cegamente um dos lados do conflito estará sujeito sempre a um nível de hostilidade
Tirei férias das atividades cotidianas na
televisão. Tempo de estudo tranquilo para chacoalhar a ignorância, matar a
curiosidade. A última semana foi intensa. Um longo júri no Brasil, Nepal em chamas,
tensão na França,
o assassinato de Charlie Kirk em Utah. Uma das questões que me vieram à cabeça
durante o julgamento de Bolsonaro: seria possível fazer júris simulados nas
universidades como organizávamos no passado?
Neles, os estudantes eram os defensores e
promotores. Pelos conflitos da mesma semana passada na Universidade Federal do
Paraná, creio que um júri desse tipo poderia terminar em pancadaria.
Sinto saudades do tempo em que se debatia com respeito pelas posições alheias. E a pergunta é esta: será que, diante da hostilidade atual, o gênio pode voltar para a lâmpada?
Um dos fatores novos é a existência da
internet. O algoritmo é apontado como estímulo à radicalização. Em seu livro
“Nexus: uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à
inteligência artificial”, Yuval Harari destaca a importância do Facebook no
massacre dos rohingyas. Foi por meio dos posts indignados que a mortandade
cresceu sem que os executivos da plataforma, na Califórnia, se dessem conta. O
importante para o algoritmo é aumentar o engajamento.
A resposta, no entanto, não pode se voltar ao
passado. A geração Z — que queima o Nepal ou se assusta com o assassinato de
Kirk nos Estados
Unidos — foi educada no meio digital. A Escócia tentou
um caminho por meio de ato contra o discurso de ódio. É apenas uma tentativa de
controle que não chega, no entanto, às raízes do ódio.
Nos Estados Unidos é difícil afirmar que a
morte de Kirk é simples produto do ódio no mundo digital. Na década de 1960, a
radicalização também inspirou atentados como o que matou John Kennedy. Num país
extremamente liberal quanto à venda de armas, o fator algoritmo pode não ter o
mesmo peso.
Outra questão importante: na impossibilidade
de atacar o problema do ódio político, qual o melhor caminho para sobreviver
nele?
Examinando a História, constato que algumas
figuras, como Albert Camus, trilharam um caminho difícil que, apesar do
contexto tão diferente, pode ser inspirador. Camus, na Independência da Argélia, adotou uma
posição humanitária, criticando a violência colonial e o terrorismo
nacionalista. Nos anos 1950, publicou “L’homme révolté” (“O homem revoltado”)
negando as justificativas da violência revolucionária. Assim foi avançando com
coerência ao criticar a pena de morte num ensaio sobre a guilhotina.
Dentro das possibilidades provisórias de
sobreviver no momento, é preciso considerar que as redes sociais ainda permitem
discussões respeitosas, sobretudo em grupos fechados, com algum nível de
homogeneidade e vigilância rigorosa dos participantes.
Tudo isso para mim é ainda matéria de
reflexão. A lembrança de Camus me ocorreu porque foi acusado de ingenuidade, e
as divergências arruinaram sua relação com Sartre.
O que revela algo talvez comum no tempo: quem
não assume cegamente um dos lados do conflito estará sujeito sempre a um nível
de hostilidade, menor que a reservada ao inimigo, uma espécie de complemento,
um excedente de raiva destinado a quem deveria estar do seu lado.
P.S.: Errei ao escrever na coluna da semana
passada que o Correio da Manhã não existe mais.
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