O Globo
A blindagem dos parlamentares é um abuso tão
grande que é plausível ver, na rejeição maciça, apoio do cidadão comum
Há muito tempo não se veem manifestações tão fortes quanto as de domingo em todas as capitais do país, especialmente no Rio e em São Paulo. Foi uma resposta muito clara da sociedade aos congressistas. Caracterizá-las como “da esquerda” é menosprezar que os temas objetos dos protestos, especialmente a PEC da Blindagem, ofendem a cidadania, seja de esquerda ou de direita. O debate sobre a anistia tem, sim, caráter político e, segundo as pesquisas, divide os eleitores, como tudo nesse tópico no momento. Mas a blindagem dos parlamentares é um abuso tão grande que é plausível ver na rejeição maciça um apoio do cidadão comum. É absurdo achar que a esquerda, hoje em dia, pode mobilizar uma multidão como aquela.
As recentes tentativas da esquerda de reunir
povo na rua foram fracassadas, ela perdeu a capacidade de mobilização quando os
sindicatos perderam a força. O que mobilizou o povo no domingo foi a indignação
da cidadania aviltada. A PEC da Blindagem é uma ofensa ao cidadão comum, ao
cidadão eleitor. É uma prova de que os congressistas estão mais preocupados
consigo, e não com o país, e isso chegou ao limite, porque acontece há muito
tempo. Ficou provado que, quando se juntam esquerda, centro-direita e direita
moderada para repudiar atos como esses do Congresso, tem-se a maioria, que não
é nem bolsonarista, nem petista: é de cidadãos preocupados com o país.
Quanto à anistia, outro ponto polêmico que
trata de cuidar da proteção de Bolsonaro, seus aliados e seguidores envolvidos
na trama golpista de janeiro de 2023, a posição contraditória do Supremo
Tribunal Federal (STF) é que permite uma discussão do tema enveredando pelo
lado político. No julgamento do impeachment da então presidente Dilma Rousseff,
o Senado fez uma manobra surpreendente de última hora, capitaneada pelo senador
Renan Calheiros e avalizada pelo então presidente do Supremo, Ricardo
Lewandowski, que presidia a sessão de impeachment para, na teoria, garantir a
legalidade das decisões.
Pois o Senado entendeu haver crime de
responsabilidade, por isso cassou o mandato da presidente, mas sem torná-la
inelegível, como previsto na Constituição. Uma interpretação constitucional sem
base no texto legal, que foi aceita pelo Supremo. Coube ao eleitor mineiro
impedir que Dilma continuasse fazendo política partidária, derrotando-a na
eleição para senador. Para o constitucionalista Gustavo Binenbojm, a manobra
“atuou no âmbito da dosimetria da pena para reduzi-la”. Como a pena era
acessória à perda do cargo (a pena principal), o Senado fez uma espécie de
anistia, acatada pelo STF, reafirma Binenbojm.
No caso atual, a Constituição de 1988
estabelece expressamente, no artigo 5º, inciso XLIII, os crimes insuscetíveis
de graça ou anistia: terrorismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e
crimes hediondos. No inciso XLIV do mesmo artigo 5º, o constituinte diz apenas
que os crimes contra o Estado Democrático de Direito são “inafiançáveis e
imprescritíveis”. Ora, argumenta Binenbojm, “por uma singela interpretação
sistemática, conclui-se que o constituinte não proíbe graça ou anistia a crimes
contra o Estado Democrático de Direito. Isso pode ser indesejável do ponto de
vista político, mas não é inviável do ponto de vista jurídico”.
Portanto, não há base para a afirmação de
ministros do Supremo segundo a qual a anistia é inconstitucional. No julgamento
da Lei de Anistia de 1979, que abarcava inclusive crimes contra o Estado
Democrático de Direito (previstos na antiga Lei de Segurança Nacional), o STF
proclamou sua constitucionalidade. Finalmente, agora o Congresso cogita reduzir
penas dos condenados pelo Supremo em atos antidemocráticos. O acordo político
parece ser admitido por membros da Corte como saída para a crise política com o
Legislativo. Se o STF validou a Lei de Anistia de 1979, aceitou a solução da
exclusão da inelegibilidade à ex-presidente Dilma, relembra Binenbojm, “não
deveria ter dificuldade em aceitar a redução das penas dos condenados do núcleo
crucial e, por maior razão, dos arruaceiros do 8 de Janeiro”.
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