O Globo
Empresário que o enfrentar internamente
sofrerá. O que se curvar terá o arsenal americano trabalhando para seu negócio
Um jantar de Estado é coisa séria. Um jantar de Estado em que se sentam o rei britânico, o presidente americano, e todos vestem fraque com gravata branca é, possivelmente, o ponto alto da tradição diplomática. Na quarta-feira passada houve um jantar desses, no Castelo de Windsor, com o rei Charles e sua mulher, Camilla, Donald Trump e a primeira-dama Melania logo à direita dos anfitriões. Os dois casais, evidentemente, no centro da mesa. Sentaram-se, na longa mesa retangular, mais 150 pessoas. Coisa grande. À esquerda do rei estavam o premiê britânico, Keir Starmer, e senhora. Conte cinco cabeças depois de Starmer, e lá estava o CEO da Nvidia, Jensen Huang. Aí Sam Altman, CEO da OpenAI. E Tim Cook, da Apple. E Satya Nadella, da Microsoft. Em jantares assim, nada nunca é acidental. Muito menos a distância de cada convidado para o rei.
Existe uma razão para, imediatamente depois
dos ministros do governo britânico, à esquerda, e do governo americano, à
direita, estarem os CEOs das mais importantes empresas do Vale do Silício. É
indício de poder. Eles têm poder. O jantar era sobre eles, mesmo que o assunto
no jantar não fosse tecnologia. Os Estados Unidos anunciaram
um investimento de £ 150 bilhões no setor tecnológico britânico, e aqueles CEOs
prometeram botar, por meio de suas companhias, £ 31 bilhões desse total. Dá
próximo de R$ 225 bilhões.
O dinheiro tem contrapartida. O governo Trump
abriu uma campanha mundial para combater a regulação de IA para empresas
americanas. O Reino Unido é
a porta de entrada para a Europa, mercado mais importante para essa indústria,
pois, evidentemente, é onde há mais dinheiro fora dos Estados Unidos e da China. O raciocínio
não tem nada de complexo. Criar dificuldades para a China, facilidades para o
Vale do Silício e dominar o espaço da tecnologia que deverá comandar o meio de
negócios nas próximas décadas.
Há apenas dois anos, Altman percorreu o mundo
para alertar os países sobre a necessidade de regulamentar a inteligência
artificial. Passou até pelo Rio de Janeiro. Conversou com políticos, com
advogados, com a sociedade civil. Deu uma palestra no Museu
do Amanhã. Pois é. A OpenAI gastou, só em lobby no Congresso americano, US$
620 mil no segundo trimestre deste ano. A Anthropic, uma de suas principais
rivais, gastou US$ 910 mil, quase US$ 1 milhão. É o maior valor já gasto por
ambas nessa atividade. Se parece pouco, outro número por certo impressionará:
ambas são sócias num fundo de US$ 100 milhões. Gastarão o dinheiro no ano que
vem, financiando a campanha de candidatos a deputado federal de ambos os
partidos nos Estados Unidos. Não importa se democratas ou republicanos, a
condição é uma só: que sejam contra regular IA.
A cena de todos esses mesmos CEOs num jantar
na Casa Branca ostensivamente elogiando Trump constrangeu muita gente que
assistiu. Afinal, em que tipo de país os empresários se sentem obrigados a
dizer em público que se sentem inspirados pela grande liderança do chefe
supremo do Estado? É em ditadura de segunda qualidade, claro. Xi Jinping não
se presta a isso. É coisa para Vladimir
Putin ou, pior, um Kim norte-coreano. Coisa de Muamar Kadafi. Só que
Trump espera isso. Que um Mark
Zuckerberg se dispusesse ao papel, tudo certo. Faz parte da tibieza do
personagem. Quando até Bill Gates,
estadista mais sênior da indústria se submete, é porque os Estados Unidos
viraram isso. Ou beija o anel do líder supremo, ou seu negócio sofrerá a
vingança. É triste, mas é o que temos para hoje.
Em troca, Trump oferece ao Vale do Silício
algo que nenhum outro governo americano ofereceria: todo o peso diplomático e
militar dos Estados Unidos trabalhando em nome do setor. É como se voltássemos
ao imperialismo do século XIX, aos Estados Unidos de antes de Theodore
Roosevelt. A Doutrina Monroe foi desenterrada. E é o que fez mudar a estratégia
dos empresários. Altman circulou o mundo pedindo regulação, pois, depois do
desastre causado nas democracias pelas redes sociais, compreendeu que não havia
chance de governos europeus, ou mesmo latino-americanos, não regularem. Era
melhor, então, estar do lado dos reguladores para poder influenciá-los.
Apresentar-se como interlocutor honesto dentro da indústria.
Trump oferece o que nenhum outro presidente
americano ofereceria. Sua versão da Doutrina Monroe, afinal, serve tanto para
dentro quanto para fora. Empresário que o enfrentar internamente sofrerá. O que
se curvar terá o arsenal americano trabalhando para seu negócio. Não há
escolha.
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